A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicalios Contanua (PNAD Contanua) realizada pelo IBGE, aponta que cerca de 7 milhões de mulheres deixaram seus postos de trabalho no inicio da pandemia, 2 milhões a mais do que o número de homens na mesma s

Pandemia impacta mais a vida das mulheres. Foto: Antonio Scarpinetti
Quando os primeirospaíses começam o isolamento, a ONU Mulheres lançou um alerta mundial, advertindo autoridades políticas, sanita¡rias e organizações sociais sobre a forma como a pandemia da Covid-19 e o isolamento social poderiam afetar as mulheres - tanto atravanãs da sobrecarga de trabalho como atravanãs do incremento dos andices de violência doméstica e diminuição de acesso a servia§os de atendimento. De fato, dados recentes, apontam aumento de 22% nos casos de feminicadio no Brasil, segundo levantamento do Forum Brasileiro de Segurança Paºblica (FBSP), entre os meses de mara§o e abril. Já a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicalios Contanua (PNAD Contanua) realizada pelo IBGE, aponta que cerca de 7 milhões de mulheres deixaram seus postos de trabalho no inicio da pandemia, 2 milhões a mais do que o número de homens na mesma situação.Â
“O documento da ONU aponta que, na história da humanidade, toda crise social atingiu com mais intensidade as mulheresâ€, observa Simone Mainieri Paulon, psica³loga, professora e coordenadora do Programa de Pa³s-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A pesquisadora também coordena o projeto Clanica Feminista na Perspectiva Interseccional da UFRGS, no qual acompanha mulheres em situação de vulnerabilidade e, desde o inicio da pandemia, percebeu que as mulheres sofreriam um grande impacto. Nesta entrevista, Simone com a participação da psica³loga Maralia Jacoby, especialista em Atendimento Clanico e Mestre em Psicologia Social que coordena o projeto Clanica Feminista juntamente com Simone P, analisam os intensos impactos da pandemia na vida de mulheres.Â
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A realidade do home office imposta pela pandemia poderia, em princapio, ser considerada uma situação amena, afinal, trabalhar de casa poderia ser considerado um ganho. Passados mais de quatro meses, quais os efeitos desta nova realidade?
Simone Paulon: Sem daºvidas que, com o ritmo acelerado da vida moderna, trabalhar de casa pode trazer benefacios para a qualidade de vida, com melhor otimização do tempo dedicado a s atividades laborais e a s demandas familiares e domésticas. Contudo, esta éuma realidade que precisa ser relativizada a partir de marcadores que resultam em diferentes atividades e condições de vida desiguais entre as mulheres.Â
Considerando as mulheres que podem manter suas atividades profissionais de forma remota e permanecer em isolamento, o modo repentino como a exigaªncia do home office ocorreu trouxe dificuldades adicionais. As famalias precisaram adequar Espaços privativos para trabalho e estudo. Além disso, existe a lógica da produtividade a qualquer custo. Se não tivermos cuidado para estabelecer fronteiras claras entre o hora¡rio de trabalho e o tempo para demais insta¢ncias da vida, o trabalho pode acabar tomando um espaço excessivo e indevido. Neste sentido, temos ouvido relatos de mulheres que somaram a carga hora¡ria de suas atividades em ambiente virtual, todo trabalho domanãstico, as atividades escolares dos filhos e os cuidados com parentes idosos que estãoisolados. Além disso, mulheres ainda se deparam com as cobrana§as para não negligenciar os cuidados com a própria saúde e aparaªncia física.Â
Ha¡ que se ter cuidado para não cair na cilada de que o home office implique disponibilidade absoluta, pois a tendaªncia éque todo dia fique com cara de segunda-feira. Manter uma rotina organizada, procurar estabelecer limites entre trabalho e rotinas familiares, preservar Espaços para contatos afetivos e cuidados pessoais, parece ser a saada mais salutar e produtiva. E, principalmente, baixar as exigaªncias sobre si mesmas pretendendo dar conta do mundo em um momento em que esse mesmo mundo estãode pernas para o ar.
De acordo com o que vocaªs tem verificado na clanica ou em pesquisas, o isolamento social ésentido de forma diferente para homens e mulheres? Em caso afirmativo, épossível trazr uma relação com o machismo estrutural?
Simone Paulon: Sim, o impacto émaior nas mulheres e isso estãoligado ao machismo estrutural. A sobrecarga e acaºmulo de funções, a carga mental invisível, a violência doméstica e de gaªnero são produtos hista³ricos da cultura patriarcal e machista na qual nos encontramos.
As discrepa¢ncias entre o tempo dedicado por homens e mulheres a s atividades domésticas éabissal. Segundo dados do IBGE de 2018, antes da pandemia as mulheres já dedicavam o dobro de horas semanais ao trabalho domanãstico e/ou cuidado com pessoas, se comparado aos homens.
A pesquisa recente “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia†(realizada pela ONG “Gaªnero e Naºmero†e pela Organização Feminista “Semprevivaâ€), concluiu que entre as 2.641 mulheres entrevistadas, 47% afirmaram ser responsa¡veis pelo cuidado de outra pessoa: 57% são responsa¡veis por filhos de até12 anos, 6,4% afirmaram ser responsa¡veis por outras criana§as, 27% afirmaram ser responsa¡veis por idosos e 3,5% por pessoas com alguma deficiência. Essa pesquisa fornece elementos importantes para olharmos as dina¢micas sexistas do cotidiano dos domicalios, e compreendermos que a pandemia pa´s em foco a intensificação e o aprofundamento de dina¢micas de desigualdade que estruturam a sociedade brasileira e são sentidas no dia a dia das mulheres.
A violência de gaªnero também se agravou no contexto da pandemia. A situação de isolamento fasico intensifica, por exemplo, a masculinidade ta³xica e uma resposta violenta ao conflito.
Um indicador interessante são os servia§os de disque-denaºncia (como o 180). A Ita¡lia, que iniciou o isolamento social mais cedo, registrou um aumento de 161,71% nas denaºncias entre os dias 1º e 18 de abril, de acordo com órgãos oficiais. O serviço argentino teve um aumento de 39% na segunda quinzena de mara§o. No Brasil, o aumento foi de 14% no primeiro quadrimestre, com o a¡pice em abril, registrando aumento de 37,6% em relação ao ano anterior. Isso equivale a 37,5 mil denaºncias apenas nos quatro primeiros meses.Â
a‰ preciso, ainda, contextualizar que mesmo antes da pandemia, o Brasil já era o 5ºpaís do mundo no andice de feminicadios, hános figura entre os piores em termos de desigualdade de renda e éconsiderado opaís que mais mata pessoas LGBTQI+.Â
Atentas a esses desafios, desde o maªs de mara§o comea§amos a nos organizar para um possível auxalio emergencial a mulheres em situação de violência doméstica durante a quarentena. Transformamos as atividades presenciais do então recente projeto “Clanica Feminista na perspectiva da Interseccionalidade†em atividades remotas, e, junto a ONG Themis - Justia§a de gaªnero e Direito Humanos - disponibilizamos canais de escuta sistema¡tica - tanto em grupos como individualmente - a s mulheres que trazem marcas desta desigualdade.
Atravanãs dos canais no Facebook e Instagram oferecemos Espaços de acolhimento e promoção de saúde mental, e também orientações elementares (como o funcionamento dos canais de acesso a justia§a e dos servia§os da rede pública de atendimentos na área de saúde e justia§a), dicas culturais e possibilidades de encontros remotos. a‰ importante que as mulheres em situação de vulnerabilidade por violência doméstica não confundam o isolamento fasico com isolamento afetivo e busquem contatos sociais que rompam seus sentimentos de solida£o e sofrimento individual. Â
Tipos de violência doméstica sofrida por mulheres brasileiras
durante a pandemia. Fonte: Relata³rio Pesquisa Sem Parar: o trabalho e a vida das
mulheres na pandemia
A dificuldade da mulher na obtenção de reconhecimento, tatulos e postos semelhantes aos dos homens éhista³rica. Essa invisibilidade tem sido atribuada ao preconceito, machismo e poder controlador. Qual o impacto da pandemia na vida da mulher-ma£e quanto a produtividade e progressão da carreira?
Simone Paulon: O que temos percebido éa repetição de uma condição hista³rica, num contexto atapico. Com a pandemia, a tendaªncia éque este quadro se agrave e isto já tem aparecido, por exemplo, na diminuição do número de artigos cientaficos submetidos por mulheres em relação a queles submetidos por homens nesse período. Levantamento recente do projeto brasileiro Parent in Science indica que 40% das mulheres sem filhos e 52% das mulheres com filhos não concluaram seus artigos neste período, contra 20% e 38% de homens na mesma situação. A média de manuscritos tendo mulheres como primeira autora foi de 37% entre 2016 e 2020, mas caiu para 13% neste 1º trimestre de 2020.
Vivemos em uma sociedade na qual as mulheres ainda recebem, em média, 30% a menos que os homens para desempenho de uma mesma função de trabalho, e que ocupam menos de 1/4 de cargos de liderana§a ou chefia, seja no serviço paºblico ou privado.
Outro indicativo da cultura colonial-racista-patriarcal no mundo do trabalho, diz respeito a s crescentes desigualdades observadas em carreiras que já foram tradicionalmente masculinas. Um exemplo cla¡ssico éa carreira juradica. Quando se avalia a distribuição de bacharanãis de direito na magistratura, os números são assustadoramente desiguais. As mulheres são apenas 35,9% dos membros da magistratura, percentual que diminui nos cargos mais altos do Poder Judicia¡rio: no esta¡gio inicial da carreira (juiz substituto) 42,8%, Juazas Titulares diminui para 36,6%, Desembargadoras 21,5% e Ministras de tribunais superiores somente 18,4%.Â
Todos esses dados indicam que as desigualdades que já existiam no campo de trabalho se agravaram com a crise econa´mica resultante da pandemia. Â
Muitas mulheres abandonaram o trabalho ou os estudos por não terem ajuda no cuidado com filhos ou porque passaram a ser cuidadoras de familiares idosos. Nesse contexto, que marcas a pandemia deixara¡ nessas mulheres?
Maralia Jacoby: Este éum ponto muito importante que ratifica a necessidade imperiosa de que nossa leitura e estratanãgias de intervenção estejam pautadas pelo reconhecimento das desigualdades sociais e das desigualdades de gaªnero que nos atravessam de forma tão contundente enquanto sociedade. a‰ preciso que exercitemos cotidianamente o reconhecimento de nossa ‘localização’ no social e o modo como se conformam os marcadores de raça, gaªnero e classe em nossas realidades pessoais e nas realidades das mulheres que escutamos.Â
Assim como assinalamos anteriormente preocupações com os impactos da sobrecarga nas mulheres em trabalho remoto e circunscritas ao circuito das demandas domésticas e familiares, também não podemos deixar de enxergar os privilanãgios que se escancaram no contexto da pandemia (privilanãgios que operam como construção hista³rica e social de longa data). Para muitas, infelizmente, a proteção do isolamento não foi opção. As urgências do cotidiano e das necessidades ba¡sicas imperaram, expondo-as de variadas formas, reiterando para essas mulheres a marca do desamparo, da ausaªncia de proteção social e de políticas públicas efetivas.
O racismo éuma marca hista³rica pungente no Brasil e temos nas mulheres negras sua face mais atroz, estando elas na condição de maior vulnerabilidade social e psaquica. Construir frentes de trabalho que atuem de modo incisivo no enfrentamento ao racismo deve ser condição prima¡ria de uma atuação clanica feminista.
Baseado no trabalho da Clanica Feminista épossível inferir as perspectivas que as mulheres tem sobre a vida e os Espaços que elas ocupara£o após a pandemia? E o que as mulheres podem fazer coletivamente para enfrentar as dificuldades que o futuro pa³s-pandaªmico reserva?Â
Simone Paulon: O que mais tem nos impactado desde que iniciamos os grupos com mulheres em situação de vulnerabilidade éa capacidade organizativa e solida¡ria que elas rapidamente desenvolvem para lidar com as inaºmeras adversidades. Contrariando a caricatura competitiva, o que vemos são mulheres aprendendo a cuidarem de si para se fortalecerem mutuamente e seguirem cuidando de quem depende delas. Mulheres inventando formas de sobrevivaªncia cotidiana que va£o desde a troca de farinha nas janelas atémovimentar redes imensas de doações de cestas, confecção de máscaras e busca de conexões com gente dopaís todo para ampliarem seus limites de cuidar.Â
Essa generosidade e capacidade de organização podem ser os mais importantes aprendizados que a pandemia nos trara¡. Mas isso precisa ser potencializado, apoiando coletivos feministas, transformando concretamente os Espaços de representação polatica em Espaços de todos, apoiando candidaturas de mulheres negras - as mais atingidas pelas desigualdades dopaís - e cobrando das instituições públicas o devido investimento nas políticas sociais que vão sendo violentamente desmontadas.Â
a‰ uma verdadeira reprodução da violência que o patriarcado já imputa a s mulheres, ao longo da história, que segmentos estatais responsa¡veis pelos direitos da mulher, pela defesa de direitos humanos, de saúde pública e de educação inclusiva, incluindo as políticas afirmativas, venham sendo sistema¡tica e planejadamente desconstituados no processo de recuo democra¡tico que vivemos no Brasil. O enfrentamento a s violências de todas as ordens, marcadamente as violências de gaªnero, não se dara¡ sem uma ruptura radical com a lógica colonial, racista e machista que estrutura nossa sociedade. Contudo, os pilares dessa sociedade estãotardiamente abalados, pois quando as mulheres va£o a s ruas éa potaªncia da criação que pede passagem. E como nos ensinou Angela Davis: “Precisamos nos esforçar para erguer-nos enquanto subimos". Em outras palavras, devemos subir de modo a garantir que todas as nossas irmãs e irmãos subam conosco.