Humanidades

Para projetar 'mundos possa­veis', épreciso repensar o tempo, propaµe Conceição Evaristo
Escritora criticou afa£ produtivista e 'modus vivendi' do capitalismo em palestra no Festival de Invern
Por Ewerton Martins Ribeiro - 19/09/2020


Conceição Evaristo foi professora na UFMG em 2013 - Foto: Arquivo pessoal

“Maria Vicaªncio ouviu as palavras de Naªngua Kainda e concordou. Para que desafiar o tempo, aconselhava a Velha, com a sua voz sussurro, feita mais de silaªncios falantes do que de sons. O humano não tem força para abreviar nada e, quando insiste, colhe o fruto verde, antes de amadurar. Tudo tem o seu tempo certo. Nãovaª a semente? A gente semeia e épreciso esquecer a vida guardada debaixo da terra, atéque um dia, no momento exato, independentemente do querer de quem espalhou a semente, ela arrebenta a terra desabrochando o viver. Nada melhor que o fruto maduro, colhido e comido no tempo exato, certo.”

Com esse trecho de Poncia¡ Vicaªncio, seu mais famoso romance e um dos mais importantes livros da literatura brasileira contempora¢nea, Conceição Evaristo ilustrou o tema da sua conferaªncia no 52º Festival de Inverno UFMG, ministrada na entrada da noite desta quinta-feira, 17: o tempo. Sob a mediação de Marcos Anta´nio Alexandre, professor da Faculdade de Letras, a escritora belo-horizontina radicada no Rio de Janeiro disse que participar do Festival, mesmo a distância, era como “retornar a Minas, retornar a casa”. “E também pela relação afetiva que tenho com vários amigos e professores da universidade, como o Marcos Alexandre”, disse ela, que foi professora da Universidade em 2013.

Em palestra de menos de uma hora, mas seguida de intensa troca de ideias com as centenas de alunos, professores e leitores que participaram da atividade, a escritora tratou quase que exclusivamente da tema¡tica temporal, em uma perspectiva que transitou entre a literatura, a filosofia e a pola­tica econa´mica osmais especificamente, abordou a experiência capitalista em tempos de pandemia e as possibilidades de reinventar esse tempo, de reestrutura¡-lo, por meio da atuação micropola­tica.

Conceição Evaristo fez uma conferaªncia centrada na ideia de que imaginar qualquer “mundo possí­vel” ostema da atual edição do Festival de Inverno ospara a vida pa³s-pandemia passara¡ necessariamente por imaginar ose defender, fomentar, fazer acontecer osuma nova relação do ser humano com o seu tempo interior e com o tempo capitalista. “Pensar no tempo, repensar o tempo vai ser o primeiro exerca­cio para pensar esse mundo possí­vel”, disse. Para Conceição, “esse momento de adoecimento global veio mostrar que o mundo que a gente vivia, a vida que a gente vivia, e tomava como normal, não era um ‘mundo possí­vel’ ostanto éque todos nosperdermos o cha£o”.

Sua mensagem, nesse sentido, foi a de que o tempo presente demanda mais do que nunca que busquemos formas “alternativas” de resistir ao jugo do capitalismo, que faz de todo tempo um tempo de produção ose que, onipresente e culturalmente dominante, talvez são possa mesmo ser enfrentado por meio de ações de resistência localizadas, individuais e pequeno-coletivas. “Que cultura produz o nosso modus vivendi moderno? a‰ a cultura capitalista, sem sombra de daºvida. A pergunta então seria sobre como pensar outros modos de vida em um mundo que, de fato, éextremamente capitalista”, insistiu, convocando o paºblico a refletir sobre a necessidade de não se buscar nem um retorno ao antigo normal nem a instauração do “novo normal”, mas uma revisão abrangente do cara¡ter impossí­vel do modo de vida capitalista estabelecido para si pela humanidade moderna.

Tempo (não) édinheiro

“Por que inicio minha fala dizendo do tempo? Porque, nesse estilo [capitalista] de vida em que viva­amos atéagora, era corrente esse pensamento de que tempo édinheiro, era corrente dizer que o tempo valia dinheiro. Poranãm, esse mundo era um mundo de vida e vivaªncia impossa­veis para várias pessoas, de vida e vivaªncia impossa­veis para vários mundos. Vou ser mais expla­cita: o mundo de umpaís capitalista éum mundo que torna impossí­vel a vida e a vivaªncia dos mundos que estãosendo explorados pelo capitalismo”, disse, exemplificando essa ideia com os povos inda­genas e quilombolas. “Então a questãoanã: como pensar um ‘mundo possí­vel’, se as nossas referaªncias vão desse mundo impossí­vel em que a gente vivia? Como vamos ficar livres desse paradigma de organização da vida que se baseia na ideia de que tempo vale dinheiro, de que temos de produzir, de que não podemos parar de produzir?”

Menos respostas, mais perguntas

“Neste momento, a humanidade inteira estãose perguntando sobre o futuro, sobre ‘mundos possa­veis’. Com certeza, eu também tenho muito mais daºvidas e questionamentos que respostas sobre o que seria esse mundo possí­vel. Mas acho que, para pensarmos esse mundo possí­vel, antes de tudo tera­amos de fazer uma revisão sobre a forma como nospensamos o tempo”, insistiu. “Porque eu não vejo como vencer essa estrutura, em termos maiores. Mas eu acredito que a gente possa, como sujeitos individuais, e como coletivo, criar formas alternativas de romper com esse paradigma capitalista, que éo que a gente tem feito atéagora; tudo o que a gente faz énas brechas. Então, em termos individuais, a gente pode fazer alguma coisa sim. Como pessoas, a gente pode participar de frentes de luta para diminuir determinados efeitos ao nosso redor.”

Tornar-se humano

“Atéentão, tudo significava produção. E, quanto mais se produzisse num curto espaço de tempo, melhor era ainda. Mas que necessidade éessa que temos de ‘preencher o tempo’? As pessoas tem falado muito que a pandemia estãonos fazendo mais humanos. Ora, como a gente poderia ter então um mundo em que a gente saa­sse a s ruas e são encontrasse ‘humanos’? Como seria isso? Talvez isso pudesse se dar a partir da nossa própria conversão em pessoas humanas”, provocou.

Cultura do supanãrfluo, afa£ de produtividade

“Para muitas pessoas, talvez para muitos de nós, essa pandemia nos trouxe também a consciência de que o mundo capitalista vivia de produzir o supanãrfluo ose também na cultura: noscompra¡vamos esse supanãrfluo e pensa¡vamos que não vivera­amos sem ele. Então, a pergunta anã: no mundo que vamos criar, seráque vamos continuar comprando esse supanãrfluo, seráque vamos continuar produzindo esse supanãrfluo? Eu pergunto como criar outros modos de vida, outras estruturas possa­veis dentro do sistema capitalista”, disse. “Porque não podemos pensar o capitalismo longe de nós: também estamos viciados [nele]. Vejo muito professor, por exemplo, falando ‘a gente tem de produzir, a gente tem de produzir, a gente tem de produzir.’ a‰ texto para a revista tal, a quantidade de bancas etc. Então épreciso perceber que o va­cio capitalista também já nos contaminou profundamente [referindo-se a  academia e a s artes].”

Capitalismo: o exemplo das lives

“Um exemplo de como estamos viciados [no modus vivendi capitalista, de natureza produtivista] são essas nossas maneiras de produção no mundo virtual [remetendo indiretamente a  própria live que foi convidada a fazer]. Sanãrio, tem gente que vai morrer de tanto fazer live. Falo porque corro esse risco”, ri. “Hoje, como a palestra não pode ser ao vivo, como não podemos dar aulas, achamos que temos de manter, de alguma forma, esse dinamismo que ta­nhamos. Então eu acho que a gente precisa fazer uma revisão muito grande [desse afa£ produtivo] tanto no plano individual como no plano de organização da cidade, da geraªncia pola­tica. a‰ necessa¡ria uma revisão também das filosofias de educação, das nossas estruturas acadaªmicas. Essa dina¢mica que vimos atéagora éde uma estrutura capitalista em que uma pessoa émedida pela quantidade de produção. a€s vezes, não énem pela qualidade, mas pela quantidade de produção. Para pensar em outro mundo possí­vel, tera­amos de romper [dentro de nós] com essa pra¡xis capitalista.”

 

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