O cartunista, que faleceu no último dia 30, e sua criação mais famosa, Mafalda, são indissocia¡veis e tem um papel fundamental na cultura latino-americana que vai muito além da HQ

Quino e sua personagem mais famosa, a garota Mafalda osFotos: Romina Santarelli / Secretaraa de Cultura de la Presidencia de la Nacia³n via Wikimedia Commons
No começo dos anos 1970, ao ser questionado por um jornalista sobre o que pensava da personagem Mafalda, criada pelo cartunista Quino, o escritor argentino Julio Cortazar osque, ao lado de Jorge Luas Borges e Ernesto Sabato, formava a “santassima trindade†das letras portenhas osnão titubeou: “O que eu penso da Mafalda não importa. O importante éo que ela pensa de mimâ€. A resposta sincera do criador de obras seminais como Jogo de Amarelinha e Todos os Fogos o Fogo deu a exata dimensão da releva¢ncia que aquela menina de 6 anos de idade, cabeluda, bochechuda, que odiava sopa e amava os Beatles e osmais do que qualquer coisa osadorava um questionamento tinha alcana§ado na cultura argentina. Mais do que isso: na cultura latino-americana. O que Mafalda pensava, fazia e inquiria era importante, mesmo ela sendo um personagem de história em quadrinhos. Porque Mafalda vai muito além da HQ, assim como Joaquan Lavado, o Quino, que morreu no último dia 30 aos 88 anos, foi muito além de um cartunista. A esta altura, ele já fazia parte hámuito tempo daquele panteão no qual estavam Cortazar, Borges e Sabato.
Mafalda estreou nas pa¡ginas portenhas em 29 de setembro de 1964 osha¡ exatos 56 anos osquase que por acaso. Na verdade, Quino a havia criado dois anos antes para uma campanha publicita¡ria de eletrodomanãsticos que acabou não indo adiante. Assim, a menina foi engavetada osatéque um amigo do cartunista perguntou a ele se teria algum material para publicar no semana¡rio Primera Plana. Quino abriu seu portifa³lio e dali saaram Mafalda, Manolito, Felipe, Suzanita… Todos prontos para ganhar corações e mentes mundo afora. E foi exatamente o que fizeram. Da primeira história, quase seis décadas atrás, atéa última que Quino publicou, em 25 de junho de 1973, foram exatas 1.928 tirinhas protagonizadas por Mafalda e seus amigos. E, junto a elas, um sucesso que nem seu criador esperava: tradução em mais de 35 idiomas, um reconhecimento planetario e uma atualidade que se mantanãm atéhoje.
Nãoéa toa que sua esta¡tua no bairro de San Telmo, em Buenos Aires, atrai uma romaria de turistas e admiradores todos os dias ostodos querendo tirar uma foto com a menina no banco de praça. E Mafalda, antes de mais nada, éatemporal e seu sucesso também reside aa oso que pode nos levar a pensar que talvez o mundo e a polatica que ela tanto criticava mudaram muito pouco nesses anos todos. Vai saber. “Nãoera minha intenção que Mafalda durasse tanto tempo. Esperava que o mundo melhorasse, mas a polatica liberal estãoconvertendo os ricos em cada vez mais ricos e os pobres em cada vez mais pobresâ€, afirmou ele em uma entrevista ao jornal Folha de S. Paulo em 1999.
â€Nãoera minha intenção que Mafalda durasse tanto tempo. Esperava que o mundo melhorasse, mas a polatica liberal estãoconvertendo os ricos em cada vez mais ricos e os pobres em cada vez mais pobresâ€
De qualquer forma, e apesar de todo o sucesso, Quino acabou abrindo ma£o de desenhar Mafalda. A raza£o? A menina tinha uma personalidade muito forte. “Mafalda éa personagem que me fez famoso. a€s vezes tenho carinho por ela, outras tenho raivaâ€, disse ele, certa vez, revelando sua relação de amor e a³dio com a menina inquisidora. “Mafalda éuma ditadora. Por isso, vou desenhar apenas cartuns daqui por dianteâ€, afirmou, garantindo ainda que respirou aliviado com a decisão. Dos anos 1970 até2009, ele fez uma infinidade de cartuns, publicados em mais de uma dezena de livros ossempre com sucesso, sempre com humor e uma reflexa£o por vezes ca¡ustica sobre a realidade. Mas nunca se livrou, de fato, da Mafalda.
â€Mafalda éa personagem que me fez famoso. a€s vezes tenho carinho por ela, outras tenho raivaâ€
Porque a menina de classe média baixa portenha, que desmaiou ao ver chegar a sua casa a primeira televisão e via seu pai juntando dinheiro para comprar um carro, éa representação de toda uma realidade latino-americana que vai muito além de anãpocas. Mafalda discutia causas como a imprensa, o pacifismo e defendia temas feministas, digamos assim, antes de o assunto ganhar os jornais e as ruas ose, coincidaªncia ou não, um livreto com suas tiras feministas saira¡ no Brasil no final do ano. Nãoa toa, Quino chegou a pensar em dar a ela um irmão mais velho quando criou a historinha, mas desistiu. Ele queria que uma menina desse o recado. E o recado muitas vezes vinha de forma ira´nica e desconcertante, como quando, ao ser visitada por um vendedor que pedia para falar com “o chefe da famaliaâ€, ela responde: “Aqui não temos chefes, somos uma cooperativaâ€. Ou quando perguntou a ma£e, que lavava roupa no tanque: “Mama£e, o que vocêgostaria de ser se tivesse uma vida?â€.

â€Eu já criei um pai para ela na história. Ela não precisa de outroâ€
Além do mais, foi com ela que Quino acabou por influenciar gerações de cartunistas mundo afora, como a cartunista brasileira Laerte. Nada mal para um rapaz tamido que nasceu em Mendoza, filho de espanha³is republicanos e que passou boa parte da infa¢ncia falando andaluz, que via no igualmente tamido Felipe oso amigo sonhador e avesso a escola da Mafalda osquase como seu alterego, que não gostava de dar entrevistas e que não aceitava ser chamado de “pai†da personagem osuma tentação fa¡cil de se cair. Ele era o “criador†de Mafalda. E a explicação era bem simples: “Eu já criei um pai para ela na história. Ela não precisa de outroâ€. Faz sentido.
“Quino registrou pensamentos atemporais sobre a Amanãrica Latinaâ€Â
Criador da Mafalda deu visibilidade a questões latino-americanas, diz professor Waldomiro Vergueiro, da USP
Por Marcus de Rosa
A importa¢ncia de Quino ultrapassa os limites dos quadrinhos. Atravanãs da sua personagem Mafalda, ele registrou pensamentos atemporais sobre a realidade da Amanãrica Latina, com forte teor polatico e consciência social. Quino colocou o quadrinho latino-americano no mundo.
a‰ dessa forma que o professor Waldomiro Vergueiro, coordenador do Observatório de Hista³rias em Quadrinhos da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, se refere ao cartunista argentino Joaquan Salvador Lavado, o Quino, criador da Mafalda osa garotinha pensadora e cratica -, que morreu, aos 88 anos, na cidade de Mendoza, na Argentina, vatima de um acidente vascular cerebral (AVC).
“a‰ difacil listar quem não se inspirou no Quinoâ€, afirma Vergueiro. “No Brasil, Laerte, Ada£o Iturrusgarai, na própria Argentina o Caloi, a Maitena Burundarena, todos os mais jovens claramente se inspiraram nele e em sua obra.†Para o professor, a maior importa¢ncia de Quino foi dar voz aos pensamentos e questões latino-americanas. “A forma como ele pensava as questões sociais e políticas era intrinsecamente latina. Um europeu ou um norte-americano não pensariam assim. Sa³ um latino poderia ter a visão que ele tinha.â€
Vergueiro ressalta a atemporalidade das situações que Mafalda apresentava. “Ele nunca criticava uma questãopontual, especafica. Era sempre sobre questões amplas, duradouras. O que ele fez há30 anos continua va¡lido hoje.†O professor cita a ampla utilização das tiras e quadrinhos da Mafalda na educação, deixando claro que elas eram, principalmente, uma obra polatica.
â€Mafalda sempre foi um quadrinho que podia ser lido tanto pelas criana§as quanto pelos adultos, e os dois o entendiam. Nele vocêtem todos os esteria³tipos da sociedade latino-americana da anãpoca, o empresa¡rio, o ingaªnuo, a dona de casa burguesa, e principalmente o desejo de liberdade de toda a Amanãrica Latina.â€
Esse teor polatico não vinha apenas dos personagens, mas da progressão do quadrinho de acordo com a passagem do tempo e com asmudanças na polatica e na sociedade latino-americanas, segundo Vergueiro. “Ha¡ uma evolução da Mafalda, que representava um esparito mais liberal. Quando ela se esgota, nasce uma personagem mais jovem, a Libertad, que claramente tem ideias mais de esquerda.â€
Vergueiro destaca que a importa¢ncia de Quino não se restringe ao sucesso de Mafalda. O quadrinista argentino foi também um dos mais importantes cartunistas da atualidade. “O papel dos polaticos, a divisão de classes, a polatica externa, a desigualdade social, tudo isso era objeto de cratica deleâ€, conta o professor. “A própria Mafalda criticava muito o papel da mulher na sociedade, principalmente por meio da ma£e. Foi uma das primeiras personagens feministas do continente, e isso influenciou toda uma geração. a‰ muito comum dizer que a Burundarena éa ‘Mafalda crescida’.â€
Para Vergueiro, o estamulo a uma visão cratica e aguda da realidade, questionando constantemente as situações que permeiam o cotidiano, éo grande legado de Quino. “O seu cartum era sempre sobre o homem comum se deparando com as situações da realidadeâ€, relembra.
â€Quino foi talvez o último grande cartunista latino. Eu me recuso a terminar de ler a Mafalda, porque, quando não tiver mais ela, o que éque eu vou fazer?â€