Humanidades

Quino se juntou ao panteão de Cortazar, Borges e Sabato
O cartunista, que faleceu no último dia 30, e sua criação mais famosa, Mafalda, são indissocia¡veis e tem um papel fundamental na cultura latino-americana que vai muito além da HQ
Por Marcello Rollemberg - 02/10/2020


Quino e sua personagem mais famosa, a garota Mafalda osFotos: Romina Santarelli / Secretara­a de Cultura de la Presidencia de la Nacia³n via Wikimedia Commons

No começo dos anos 1970, ao ser questionado por um jornalista sobre o que pensava da personagem Mafalda, criada pelo cartunista Quino, o escritor argentino Julio Cortazar osque, ao lado de Jorge Lua­s Borges e Ernesto Sabato, formava a “santa­ssima trindade” das letras portenhas osnão titubeou: “O que eu penso da Mafalda não importa. O importante éo que ela pensa de mim”. A resposta sincera do criador de obras seminais como Jogo de Amarelinha e Todos os Fogos o Fogo deu a exata dimensão da releva¢ncia que aquela menina de 6 anos de idade, cabeluda, bochechuda, que odiava sopa e amava os Beatles e osmais do que qualquer coisa osadorava um questionamento tinha alcana§ado na cultura argentina. Mais do que isso: na cultura latino-americana. O que Mafalda pensava, fazia e inquiria era importante, mesmo ela sendo um personagem de história em quadrinhos. Porque Mafalda vai muito além da HQ, assim como Joaqua­n Lavado, o Quino, que morreu no último dia 30 aos 88 anos, foi muito além de um cartunista. A esta altura, ele já fazia parte hámuito tempo daquele panteão no qual estavam Cortazar, Borges e Sabato.

Mafalda estreou nas pa¡ginas portenhas em 29 de setembro de 1964 osha¡ exatos 56 anos osquase que por acaso. Na verdade, Quino a havia criado dois anos antes para uma campanha publicita¡ria de eletrodomanãsticos que acabou não indo adiante. Assim, a menina foi engavetada osatéque um amigo do cartunista perguntou a ele se teria algum material para publicar no semana¡rio Primera Plana. Quino abriu seu portifa³lio e dali saa­ram Mafalda, Manolito, Felipe, Suzanita… Todos prontos para ganhar corações e mentes mundo afora. E foi exatamente o que fizeram. Da primeira história, quase seis décadas atrás, atéa última que Quino publicou, em 25 de junho de 1973, foram exatas 1.928 tirinhas protagonizadas por Mafalda e seus amigos. E, junto a elas, um sucesso que nem seu criador esperava: tradução em mais de 35 idiomas, um reconhecimento planetario e uma atualidade que se mantanãm atéhoje.

Nãoéa  toa que sua esta¡tua no bairro de San Telmo, em Buenos Aires, atrai uma romaria de turistas e admiradores todos os dias ostodos querendo tirar uma foto com a menina no banco de praça. E Mafalda, antes de mais nada, éatemporal e seu sucesso também reside aa­ oso que pode nos levar a pensar que talvez o mundo e a pola­tica que ela tanto criticava mudaram muito pouco nesses anos todos. Vai saber. “Nãoera minha intenção que Mafalda durasse tanto tempo. Esperava que o mundo melhorasse, mas a pola­tica liberal estãoconvertendo os ricos em cada vez mais ricos e os pobres em cada vez mais pobres”, afirmou ele em uma entrevista ao jornal Folha de S. Paulo em 1999.


”Nãoera minha intenção que Mafalda durasse tanto tempo. Esperava que o mundo melhorasse, mas a pola­tica liberal estãoconvertendo os ricos em cada vez mais ricos e os pobres em cada vez mais pobres”


De qualquer forma, e apesar de todo o sucesso, Quino acabou abrindo ma£o de desenhar Mafalda. A raza£o? A menina tinha uma personalidade muito forte. “Mafalda éa personagem que me fez famoso. a€s vezes tenho carinho por ela, outras tenho raiva”, disse ele, certa vez, revelando sua relação de amor e a³dio com a menina inquisidora. “Mafalda éuma ditadora. Por isso, vou desenhar apenas cartuns daqui por diante”, afirmou, garantindo ainda que respirou aliviado com a decisão. Dos anos 1970 até2009, ele fez uma infinidade de cartuns, publicados em mais de uma dezena de livros ossempre com sucesso, sempre com humor e uma reflexa£o por vezes ca¡ustica sobre a realidade. Mas nunca se livrou, de fato, da Mafalda.


”Mafalda éa personagem que me fez famoso. a€s vezes tenho carinho por ela, outras tenho raiva”


Porque a menina de classe média baixa portenha, que desmaiou ao ver chegar a  sua casa a primeira televisão e via seu pai juntando dinheiro para comprar um carro, éa representação de toda uma realidade latino-americana que vai muito além de anãpocas. Mafalda discutia causas como a imprensa, o pacifismo e defendia temas feministas, digamos assim, antes de o assunto ganhar os jornais e as ruas ose, coincidaªncia ou não, um livreto com suas tiras feministas saira¡ no Brasil no final do ano. Nãoa  toa, Quino chegou a pensar em dar a ela um irmão mais velho quando criou a historinha, mas desistiu. Ele queria que uma menina desse o recado. E o recado muitas vezes vinha de forma ira´nica e desconcertante, como quando, ao ser visitada por um vendedor que pedia para falar com “o chefe da fama­lia”, ela responde: “Aqui não temos chefes, somos uma cooperativa”. Ou quando perguntou a  ma£e, que lavava roupa no tanque: “Mama£e, o que vocêgostaria de ser se tivesse uma vida?”.


”Eu já criei um pai para ela na história. Ela não precisa de outro”


Além do mais, foi com ela que Quino acabou por influenciar gerações de cartunistas mundo afora, como a cartunista brasileira Laerte. Nada mal para um rapaz ta­mido que nasceu em Mendoza, filho de espanha³is republicanos e que passou boa parte da infa¢ncia falando andaluz, que via no igualmente ta­mido Felipe oso amigo sonhador e avesso a  escola da Mafalda osquase como seu alterego, que não gostava de dar entrevistas e que não aceitava ser chamado de “pai” da personagem osuma tentação fa¡cil de se cair. Ele era o “criador” de Mafalda. E a explicação era bem simples: “Eu já criei um pai para ela na história. Ela não precisa de outro”. Faz sentido.

“Quino registrou pensamentos atemporais sobre a Amanãrica Latina” 


Criador da Mafalda deu visibilidade a questões latino-americanas, diz professor Waldomiro Vergueiro, da USP

Por Marcus de Rosa

A importa¢ncia de Quino ultrapassa os limites dos quadrinhos. Atravanãs da sua personagem Mafalda, ele registrou pensamentos atemporais sobre a realidade da Amanãrica Latina, com forte teor pola­tico e consciência social. Quino colocou o quadrinho latino-americano no mundo.

a‰ dessa forma que o professor Waldomiro Vergueiro, coordenador do Observatório de Hista³rias em Quadrinhos da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, se refere ao cartunista argentino Joaqua­n Salvador Lavado, o Quino, criador da Mafalda osa garotinha pensadora e cra­tica -, que morreu, aos 88 anos, na cidade de Mendoza, na Argentina, va­tima de um acidente vascular cerebral (AVC).

“a‰ difa­cil listar quem não se inspirou no Quino”, afirma Vergueiro. “No Brasil, Laerte, Ada£o Iturrusgarai, na própria Argentina o Caloi, a Maitena Burundarena, todos os mais jovens claramente se inspiraram nele e em sua obra.” Para o professor, a maior importa¢ncia de Quino foi dar voz aos pensamentos e questões latino-americanas. “A forma como ele pensava as questões sociais e políticas era intrinsecamente latina. Um europeu ou um norte-americano não pensariam assim. Sa³ um latino poderia ter a visão que ele tinha.”

Vergueiro ressalta a atemporalidade das situações que Mafalda apresentava. “Ele nunca criticava uma questãopontual, especa­fica. Era sempre sobre questões amplas, duradouras. O que ele fez há30 anos continua va¡lido hoje.” O professor cita a ampla utilização das tiras e quadrinhos da Mafalda na educação, deixando claro que elas eram, principalmente, uma obra pola­tica.

”Mafalda sempre foi um quadrinho que podia ser lido tanto pelas criana§as quanto pelos adultos, e os dois o entendiam. Nele vocêtem todos os esteria³tipos da sociedade latino-americana da anãpoca, o empresa¡rio, o ingaªnuo, a dona de casa burguesa, e principalmente o desejo de liberdade de toda a Amanãrica Latina.”


Esse teor pola­tico não vinha apenas dos personagens, mas da progressão do quadrinho de acordo com a passagem do tempo e com asmudanças na pola­tica e na sociedade latino-americanas, segundo Vergueiro. “Ha¡ uma evolução da Mafalda, que representava um espa­rito mais liberal. Quando ela se esgota, nasce uma personagem mais jovem, a Libertad, que claramente tem ideias mais de esquerda.”

Vergueiro destaca que a importa¢ncia de Quino não se restringe ao sucesso de Mafalda. O quadrinista argentino foi também um dos mais importantes cartunistas da atualidade. “O papel dos pola­ticos, a divisão de classes, a pola­tica externa, a desigualdade social, tudo isso era objeto de cra­tica dele”, conta o professor. “A própria Mafalda criticava muito o papel da mulher na sociedade, principalmente por meio da ma£e. Foi uma das primeiras personagens feministas do continente, e isso influenciou toda uma geração. a‰ muito comum dizer que a Burundarena éa ‘Mafalda crescida’.”

Para Vergueiro, o esta­mulo a uma visão cra­tica e aguda da realidade, questionando constantemente as situações que permeiam o cotidiano, éo grande legado de Quino. “O seu cartum era sempre sobre o homem comum se deparando com as situações da realidade”, relembra.

”Quino foi talvez o último grande cartunista latino. Eu me recuso a terminar de ler a Mafalda, porque, quando não tiver mais ela, o que éque eu vou fazer?”


 

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