Humanidades

Nova tradução dos Evangelhos busca ecos dos textos originais
Versão de Marcelo Cavallari evita termos que ganharam novos sentidos depois de escritos, como “anjo” e “Cristo”
Por Roberto C. G. Castro - 17/12/2020


O quadro Sa£o Joa£o Batista, de Leonardo da Vinci: o profeta échamado de “Joa£o, o que mergulha” na tradução de Cavallari osFoto: Wikipedia

“E falou a eles o naºncio: ‘Nãotemais, pois osVaª! osbem-anunciamos a va³s uma alegria grande a qual serápara todo o povo porque foi parido para va³s hoje um salvador que éungido senhor em cidade de Davi. E este sinal para va³s: achareis um bebaª envolvido em cueiros e deitado em cocho’.”

Assim foi anunciado o nascimento de Jesus Cristo, segundo o Evangelho de Lucas, na versão do jornalista e tradutor Marcelo Musa Cavallari. a‰ um trecho extraa­do do livro Os Evangelhos osUma Tradução, recentemente publicado pela Ateliaª Editorial, em coedição com a Editora Mnema. Bila­ngue (grego-portuguaªs), a obra traz a tradução, direta do grego original, dos quatro Evangelhos osMateus, Marcos, Lucas e Joa£o -, feita por Cavallari, que também éautor da apresentação e das notas.

Na apresentação, Cavallari explica os critanãrios que orientaram a sua tradução, em que não aparecem termos comuns nas versaµes tradicionais dos Evangelhos, como “anjo” e “batismo”. “Nãohábsolutamente nada de errado com essas palavras do ponto de vista do significado que vieram a ter ao longo dos séculos de cristianismo”, escreve o jornalista. “Elas são, no entanto, simples transliterações de palavras gregas. Quando foram escolhidas pelos evangelistas, tinham significados conhecidos por todos e não era o significado tanãcnico ou teola³gico que se cristalizou em torno delas.”

a‰ por isso que, em sua versão dos textos sagrados do cristianismo, Cavallari substituiu “anjo” por “naºncio” (mensageiro), por exemplo, e, em vez de grafar “Cristo”, utilizou “ungido”. “Preteri a palavra ‘anjo’, que vem etimologicamente de a¡ngelos, ou, antes, éuma simples transliteração da palavra grega, porque ela não significa ‘mensageiro’ em portuguaªs. Significa ‘anjo'”, explica o jornalista numa das 591 notas que acompanham a tradução.

Quanto a  palavra “Cristo”, trata-se apenas de uma transliteração. “‘Cristo’ vem de khrista³s, partica­pio perfeito do verbo khra­o, em seu sentido de ‘untar’. Os escolhidos de Deus para o sacerda³cio, como Ara£o, ou para reinar sobre Israel, como Davi, eram ungidos com azeite, assim como o altar dos sacrifa­cios, para são então exercer suas funções. Jesus éo ungido por excelaªncia.”


Os anjos anunciam o nascimento de Jesus Cristo: na tradução de Cavallari,
eles são chamados “naºncios” osFoto: Wikipedia

A palavra “fanã” ospa­stis em grego ostambém não aparece nos quatro Evangelhos, de acordo com a tradução de Cavallari. No lugar dela, surge o termo “confiana§a”, como no trecho em que Jesus recomenda a seus disca­pulos: “Amanãm de fato digo a va³s: quando tenhais confianção como gra£o de mostarda, direis a este monte: ‘Anda daqui para la¡â€™, e andara¡. E nada seráimpossí­vel para va³s”. “Embora as duas palavras tenham a mesma raiz, ‘fanã’ adquiriu um sentido mais estritamente religioso que pa­stis não tinha”, justifica o jornalista.

Em vez de “batismo”, laª-se “mergulho” na versão de Cavallari. Citado nos quatro Evangelhos, o profeta Joa£o é“Joa£o, o que mergulha” ose não “Joa£o Batista” -, e as multidaµes que va£o a ele eram “mergulhadas” no rio Jorda£o. Quando o pra³prio Jesus se encaminha para Joa£o, a s margens do Jorda£o, o profeta lhe diz: “Eu tenho necessidade de por ti ser mergulhado e tu vens a mim?”. Cavallari sustenta: “‘Mergulhar traduz o termo bapta­zo. O termo se refere a mergulhar alguma coisa em um la­quido e era muito presente na linguagem de alguns ofa­cios, como o dos tintureiros e ferreiros. Mergulhando o tecido numa tinta cheia de corante, mudava-se a cor do tecido. Mergulhando-se a ferramenta de ferro recanãm-forjada ainda quente na a¡gua, transformava-se o ferro em aa§o. a‰ possivelmente por seu cara¡ter de mudar instantaneamente algo, a cor do tecido ou a natureza da matéria, que se usa o termo para o ritual institua­do por Joa£o, que ‘mudava a mente'”.


A nova tradução dos quatro Evangelhos
 Foto: Reprodução

Já “pecado” estãopra³ximo do latim peccatum e distante do grego. Nas versaµes tradicionais, essa palavra traduz o termo original hamarta­a, que Cavallari verte simplesmente para “erro”. Por isso, as palavras que Jesus dirige a um parala­tico na aldeia de Cafarnaum soam assim na versão do jornalista: “Coragem, filho, teus erros se foram”.

“Nãotenho nenhuma pretensão de que minha tradução seja mais correta do que outras que usam todas essas palavras”, afirma Cavallari, ainda na apresentação da sua tradução, referindo-se aos termos utilizados nas versaµes tradicionais dos Evangelhos que ele dispensou. “Apenas quis fazer soar aos ouvidos de um leitor da la­ngua portuguesa as mesmas ressona¢ncias e ecos de significado que o leitor de grego experimenta diante do texto original.”

Nascido em Sa£o Paulo em 1960, Cavallari éformado em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, onde foi aluno de dois grandes mestres do grego e do latim, Isis Borges Belchior da Fonseca e JoséCavalcante de Souza, a quem ele dedica postumamente a sua tradução dos Evangelhos. Ali também teve como mestre o professor Joa£o Angelo Oliva Neto, autor do prefa¡cio do volume lana§ado pelas Editoras Ateliaª e Mnema. Como jornalista, trabalhou na Folha de S. Paulo e na revista a‰poca.

Os Evangelhos osUma Tradução, edição bila­ngue (grego-portuguaªs), tradução, apresentação e notas de Marcelo Musa Cavallari, Ateliaª Editorial e Editora Mnema, 512 pa¡ginas, R$ 125,00.

 

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