Humanidades

DNA antigo reconta a história do primeiro povo do Caribe, com algumas reviravoltas na história
Uma equipe internacional liderada por David Reich da Harvard Medical School analisou os genomas de 263 indivíduos no maior estudo de DNA humano antigo nas Amanãricas atéhoje.
Por Natalie Van Hoose - 23/12/2020


A pesquisa arqueola³gica e a tecnologia do DNA antigo podem trabalhar lado a lado para iluminar a história passada. Este navio, feito entre 1200-1500 DC na atual República Dominicana, mostra uma figura de sapo, associada a  deusa da fertilidade na cultura Taino. Crédito: Kristen Grace / Florida Museum

A história dos ilhanãus originais do Caribe ganha um foco mais na­tido em um novo estudo da Nature que combina décadas de trabalho arqueola³gico com avanços em tecnologia genanãtica.

Uma equipe internacional liderada por David Reich da Harvard Medical School analisou os genomas de 263 indivíduos no maior estudo de DNA humano antigo nas Amanãricas atéhoje. A genanãtica traz duas grandes ondas migrata³rias no Caribe por dois grupos distintos, separados por milhares de anos, revelando um arquipanãlago colonizado por pessoas altamente ma³veis, com parentes distantes geralmente vivendo em ilhas diferentes.

O laboratório de Reich também desenvolveu uma nova técnica genanãtica para estimar o tamanho da população anterior, mostrando que o número de pessoas que viviam no Caribe quando os europeus chegaram era muito menor do que se pensava anteriormente - provavelmente na casa das dezenas de milhares, em vez do milha£o ou mais relatado por Columbus seus sucessores.

Para o arqueólogo William Keegan, cujo trabalho no Caribe se estende por mais de 40 anos, o DNA antigo oferece uma nova ferramenta poderosa para ajudar a resolver debates antigos, confirmar hipa³teses e destacar os mistanãrios restantes.

Isso "move nossa compreensão do Caribe para frente dramaticamente de uma são vez", disse Keegan, curador do Museu de Hista³ria Natural da Fla³rida e co-autor saªnior do estudo. "Os manãtodos desenvolvidos pela equipe de David ajudaram a responder a questões que eu nem sabia que podera­amos responder."

Os arqueólogos costumam confiar nos restos da vida doméstica - cera¢mica, ferramentas, restos de ossos e conchas - para juntar as pea§as do passado. Agora, os avanços tecnola³gicos no estudo do DNA antigo estãolana§ando uma nova luz sobre o movimento de animais e humanos, especialmente no Caribe, onde cada ilha pode ser um microcosmo aºnico de vida.

Embora o calor e a umidade dos tra³picos possam decompor rapidamente a matéria orga¢nica, o corpo humano contanãm uma caixa-chave de material genanãtico: uma parte pequena e extraordinariamente densa do osso que protege o ouvido interno. Usando principalmente essa estrutura, os pesquisadores extraa­ram e analisaram o DNA de 174 pessoas que viviam no Caribe e na Venezuela entre 400 e 3.100 anos atrás, combinando os dados com 89 indivíduos previamente sequenciados.

A equipe, que inclui acadaªmicos do Caribe, recebeu permissão para realizar a análise genanãtica de governos locais e instituições culturais que atuaram como zeladores dos restos mortais. Os autores também envolveram representantes de comunidades inda­genas do Caribe em uma discussão de suas descobertas.
 
A evidência genanãtica oferece novos insights sobre o povoamento do Caribe. Os primeiros habitantes das ilhas, um grupo de usuários de ferramentas de pedra, viajaram de barco para Cuba hácerca de 6.000 anos, expandindo-se gradualmente para o leste para outras ilhas durante a Idade Arcaica da regia£o. De onde eles vieram ainda não estãoclaro - embora sejam mais parentes dos norte-americanos e centrais do que dos norte-americanos, sua genanãtica não corresponde a nenhum grupo inda­gena especa­fico. No entanto, artefatos semelhantes encontrados em Belize e Cuba podem sugerir uma origem centro-americana, disse Keegan.

Cerca de 2.500 a 3.000 anos atrás, fazendeiros e oleiros aparentados com os falantes de arawak do nordeste da Amanãrica do Sul estabeleceram um segundo caminho para o Caribe. Usando os dedos da Bacia do Rio Orinoco na Amanãrica do Sul como rodovias, eles viajaram do interior para a costa da Venezuela e avana§aram para o norte no Mar do Caribe, colonizando Porto Rico e, finalmente, movendo-se para o oeste. Sua chegada marcou o ini­cio da Idade da Cera¢mica na regia£o, marcada pela agricultura e pela ampla produção e uso da cera¢mica.

Com o tempo, quase todos os traa§os genanãticos de pessoas da Idade Arcaica desapareceram, exceto por uma comunidade resistente no oeste de Cuba que persistiu atéa chegada dos europeus. O casamento entre os dois grupos era raro, com apenas três indivíduos no estudo mostrando ascendaªncia mista.

Muitos cubanos, dominicanos e porto-riquenhos de hoje são descendentes de pessoas da Idade da Cera¢mica, bem como de imigrantes europeus e africanos escravizados. Mas os pesquisadores observaram apenas evidaªncias marginais da ancestralidade da Idade Arcaica em indivíduos modernos.

Alguns arqueólogos apontarammudanças drama¡ticas nos estilos de cera¢mica do
Caribe como evidência de novas migrações. Mas a genanãtica mostra que todos os
estilos foram criados por um grupo de pessoas ao longo do tempo. Esses vasos de
efa­gies pertencem ao tipo de cera¢mica Saladoid, ornamentados e difa­ceis de
modelar. Crédito: Corinne Hofman e Menno Hoogland

"Isso éum grande mistanãrio", disse Keegan. "Para Cuba, éespecialmente curioso que não vejamos mais ancestrais arcaicos."

Durante a Idade da Cera¢mica, a cera¢mica caribenha passou por pelo menos cincomudanças marcantes de estilo ao longo de 2.000 anos. Cera¢mica vermelha ornamentada decorada com desenhos pintados de branco deu lugar a vasos simples de cor amarelada, enquanto outros vasos eram pontuados com pequenos pontos e incisaµes ou tinham rostos de animais esculpidos que provavelmente funcionavam como ala§as. Alguns arqueólogos apontaram essas transições como evidência de novas migrações para as ilhas. Mas o DNA conta uma história diferente, sugerindo que todos os estilos foram desenvolvidos por descendentes das pessoas que chegaram ao Caribe há2.500-3.000 anos, embora possam ter interagido e se inspirado em pessoas de fora.

"Essa era uma pergunta que podera­amos não saber se não tivanãssemos um especialista em arqueologia em nossa equipe", disse a co-autora Kendra Sirak, pa³s-doutoranda no Reich Lab. "Na³s documentamos essa nota¡vel continuidade genanãtica atravanãs dasmudanças no estilo da cera¢mica. Falamos sobre 'potes vs. pessoas' e, atéonde sabemos, são apenas potes."

Destacando a interconectividade da regia£o, um estudo de cromossomos X masculinos revelou 19 pares de "primos genanãticos" vivendo em ilhas diferentes - pessoas que compartilham a mesma quantidade de DNA que primos biola³gicos, mas podem estar separados por gerações. No exemplo mais nota¡vel, um homem foi enterrado nas Bahamas enquanto seu parente foi sepultado a cerca de 600 milhas de distância, na República Dominicana.

"Mostrar relacionamentos em diferentes ilhas érealmente um passo incra­vel", disse Keegan, que acrescentou que a mudança dos ventos e das correntes pode dificultar a passagem entre as ilhas. "Fiquei realmente surpreso ao ver esses pares de primos entre as ilhas."

Descobrir uma proporção tão alta de primos genanãticos em uma amostra de menos de 100 homens éoutro indicador de que o tamanho total da população da regia£o era pequeno, disse Reich, professor de genanãtica no Instituto Blavatnik em HMS e professor de biologia evolutiva humana em Harvard.

“Quando vocêcoleta uma amostra de dois indivíduos modernos, não costuma descobrir que eles são parentes pra³ximos”, disse ele. "Aqui, estamos encontrando parentes em todo o lugar."

Uma técnica desenvolvida pelo co-autor do estudo Harald Ringbauer, um pa³s-doutorado no Reich Lab, usou segmentos compartilhados de DNA para estimar o tamanho da população anterior, um manãtodo que também poderia ser aplicado a estudos futuros de povos antigos. A técnica de Ringbauer mostrou que cerca de 10.000 a 50.000 pessoas viviam em duas das maiores ilhas do Caribe, Hispaniola e Porto Rico, pouco antes da chegada dos europeus. Isso fica muito aquanãm do milha£o de habitantes que Colombo descreveu aos seus patronos, provavelmente para impressiona¡-los, disse Keegan.

Mais tarde, o historiador Bartoloméde las Casas, do século 16, afirmou que a regia£o abrigava 3 milhões de pessoas antes de ser dizimada pela escravida£o e doenças europeias. Embora isso também seja um exagero, o número de pessoas que morreram como resultado da colonização continua sendo uma atrocidade, disse Reich.

“Este foi um programa sistema¡tico de apagamento cultural. O fato de o número não ser de 1 milha£o ou milhões de pessoas, mas sim dezenas de milhares, não torna esse apagamento menos significativo”, disse ele.

Para Keegan, a colaboração com os geneticistas deu-lhe a capacidade de provar algumas hipa³teses que defendeu durante anos - enquanto derrubava outras.

"Neste ponto, não me importo se estou certo ou errado", disse ele. "a‰ muito emocionante ter uma base mais firme para reavaliar como olhamos para o passado no Caribe. Um dos resultados mais significativos deste estudo éque ele demonstra a importa¢ncia da cultura na compreensão das sociedades humanas. Os genes podem ser distintos, mensura¡veis unidades, mas o genoma humano éculturalmente criado. "

 

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