Humanidades

Derrubando o mito da meritocracia
Nãoapenas iludindo-se, Michael Sandel argumenta, mas também alimenta nossa divisão
Por Michael J. Sandel - 06/01/2021


Michael Sandel fala no Sanders Theatre durante um evento de 2018. Stephanie Mitchell / foto de arquivo de Harvard

Extraa­do de "Tyranny of Merit: O que aconteceu com o bem comum?" por Michael J. Sandel (Farrar, Straus e Giroux)

Em mara§o de 2019, enquanto os alunos do ensino manãdio aguardavam os resultados de suas inscrições para a faculdade, os promotores federais fizeram um anaºncio impressionante. Eles acusaram 33 pais ricos de se envolverem em um elaborado esquema de trapaa§a para conseguir que seus filhos fossem admitidos em universidades de elite, incluindo Yale, Stanford, Georgetown e a University of Southern California.

No centro da fraude estava um consultor inescrupuloso chamado William Singer, que dirigia uma empresa que atendia a pais afluentes e ansiosos. A empresa de Singer se especializou em apostar no sistema de admissão em faculdades intensamente competitivo que nas últimas décadas se tornou o principal portal para a prosperidade e o presta­gio. Para os alunos que não tinham as credenciais acadaªmicas estelares exigidas pelas melhores faculdades, Singer concebeu soluções alternativas corruptas.

Por exemplo, o presidente de um prestigioso escrita³rio de advocacia pagou US $ 75.000 para que sua filha fizesse um exame de admissão a  faculdade em um centro de testes supervisionado por um inspetor pago por Singer para garantir que o aluno recebesse a pontuação de que precisava. A atriz de televisão Lori Loughlin e seu marido, o estilista Mossimo Giannulli, pagaram a Singer US $ 500.000 para que suas duas filhas fossem admitidas na USC como recrutas falsos para a equipe da equipe. Outra celebridade, a atriz Felicity Huffman, conhecida por seu papel na sanãrie de televisão “Desperate Housewives”, de alguma forma conseguiu uma pechincha; por apenas US $ 15.000, Singer fez uma correção para o SAT de sua filha. Ao todo, Singer arrecadou US $ 25 milhões em oito anos.

O esca¢ndalo provocou indignação universal. Em uma anãpoca polarizada, quando os americanos mal podiam concordar em qualquer coisa, atraiu cobertura massiva e condenação em todo o espectro pola­tico - na Fox News e MSNBC, no The Wall Street Journal e no The New York Times. Todos concordaram que subornar e trapacear para conseguir admissão em faculdades de elite era repreensa­vel. Mas a indignação expressou algo mais profundo. Da maneira que as pessoas lutaram para articular, foi um esca¢ndalo emblema¡tico, que levantou questões maiores sobre quem sai na frente e por quaª.

Ao descrever seu golpe, Singer observou que alguns tentam garantir a entrada de candidatos marginalmente qualificados pela “porta dos fundos”, dando um grande presente a uma faculdade. Mas ele observou que a estratanãgia não oferece nenhuma garantia de admissão. Ele se referiu a  sua própria técnica de subornos e resultados falsos em testes como uma abordagem mais segura de “porta lateral”.

Do ponto de vista da justia§a, no entanto, édifa­cil distinguir entre a "porta dos fundos" e a "porta lateral". Ambos da£o uma vantagem aos filhos de pais ricos que são admitidos em vez de candidatos mais qualificados. Ambos permitem que o dinheiro substitua o manãrito. A admissão com base no manãrito define a entrada pela "porta da frente". Como Singer disse, a porta da frente "significa que vocêentra sozinho". Representa o que a maioria das pessoas considera justo.

Na prática , éclaro, não étão simples. O dinheiro paira tanto sobre a porta da frente quanto sobre os fundos. As medidas de manãrito são difa­ceis de separar das vantagens econa´micas. Testes padronizados, como o SAT, pretendem medir o manãrito. Na prática , entretanto, a pontuação do SAT acompanha de perto a renda familiar. Quanto mais rica a familia do aluno, maior a pontuação que ele provavelmente recebera¡.Capa de livro.

Os pais ricos não apenas matriculam seus filhos em cursos preparata³rios para o SAT, mas também contratam conselheiros de admissão particulares para aprimorar suas inscrições, matricula¡-los em aulas de dança e música, treina¡-los em esportes de elite, como esgrima, squash, golfe, taªnis, tripulação, lacrosse, e vela, para melhor se qualificar para o recrutamento para equipes de faculdade, e envia¡-los para realizar boas obras em lugares distantes para demonstrar preocupação com os oprimidos. E não se esquea§a dos benefa­cios potenciais da admissão do legado e da valorização do doador.

Depois, hámensalidade. Com exceção de um punhado de faculdades ricas o suficiente para admitir alunos sem se preocupar com sua capacidade de pagar, aqueles que não precisam de ajuda financeira tem mais probabilidade do que seus colegas necessitados de entrar.

Os cra­ticos apontam para essas desigualdades como evidência de que o ensino superior não éa meritocracia que afirma ser. Desse ponto de vista, o esca¢ndalo de admissaµes éum exemplo flagrante da injustia§a mais ampla e generalizada que impede o ensino superior de viver de acordo com o princa­pio meritocra¡tico que professa.

Apesar de suas divergaªncias, aqueles que consideram o esca¢ndalo de trapaa§a um afastamento chocante das prática s de admissão padrãoe aqueles que o consideram um exemplo extremo de tendaªncias já prevalentes nas admissaµes em faculdades compartilham uma premissa comum: os alunos devem ser admitidos na faculdade com base no manãrito. Eles também concordam, pelo menos implicitamente, que aqueles que entram com base no manãrito conquistaram sua admissão e merecem os benefa­cios que daa­ decorrem.

Se essa visão familiar estiver certa, então o problema com a meritocracia não écom o princa­pio, mas com o nosso fracasso em cumpri-lo. A discussão pola­tica entre conservadores e liberais confirma isso. Nossos debates paºblicos não são sobre a meritocracia em si, mas sobre como alcana§a¡-la. Os conservadores argumentam, por exemplo, que as políticas de ação afirmativa que consideram raça e etnia como fatores de admissão equivalem a uma traição da admissão baseada no manãrito; os liberais defendem a ação afirmativa como uma forma de remediar a injustia§a persistente e argumentam que uma verdadeira meritocracia são pode ser alcana§ada nivelando o campo de jogo entre os privilegiados e os desfavorecidos.

Mas esse debate ignora a possibilidade de que o problema com a meritocracia seja mais profundo.

Considere novamente o esca¢ndalo de admissaµes. A maior parte da indignação se concentrou na traição e na injustia§a. Igualmente preocupantes, entretanto, são as atitudes que alimentaram a trapaa§a. Em segundo plano estava a suposição, agora tão familiar que quase não énotada, que a admissão em uma universidade de elite éum praªmio muito procurado. O esca¢ndalo chamou a atenção não apenas porque envolvia celebridades e os ricos, mas também porque o acesso que eles tentavam comprar era tão ampla e ardentemente desejado.

Porque isto éassim? Por que o ingresso em universidades de prestígio tornou-se tão procurado que pais privilegiados cometem fraude para colocar seus filhos? Ou transformar seus anos de colanãgio em uma chuva cheia de estresse de aulas de AP, construção de curra­culo e esfora§o cheio de pressão? Por que o ingresso em faculdades de elite se tornou tão grande em nossa sociedade que o FBI dedicaria recursos macia§os de aplicação da lei para descobrir o golpe, e que a nota­cia do esca¢ndalo ocuparia as manchetes e a atenção do paºblico por meses?

A obsessão tem origem na crescente desigualdade das últimas décadas. Reflete o fato de que mais estãoem jogo em quem entra onde. Amedida que os 10% mais ricos se afastavam dos demais, as apostas em frequentar uma faculdade de prestígio aumentaram. Ha¡ cinquenta anos, inscrever-se na faculdade era menos complicado. Menos de um em cada cinco americanos foi para uma faculdade de quatro anos, e os que o fizeram tendem a se matricular em lugares pra³ximos de casa. As classificações das faculdades importavam menos do que hoje.

Mas a ansiedade econa´mica não étudo. Mais do que uma proteção contra a mobilidade descendente, os clientes de Singer estavam comprando outra coisa, algo menos tanga­vel, mas mais valioso. Eles estavam, de fato, comprando o brilho emprestado do manãrito. Em uma sociedade desigual, aqueles que chegam ao topo querem acreditar que seu sucesso émoralmente justificado. Em uma sociedade meritocra¡tica, isso significa que os vencedores devem acreditar que conquistaram o sucesso por meio de seu talento e trabalho a¡rduo.

“Amedida que a meritocracia se intensifica, o empenho nos absorve tanto que nosso endividamento desaparece de vista. Desta forma, mesmo uma meritocracia justa, sem traição, suborno ou privilanãgios especiais para os ricos, induz a impressão equivocada de que nosmesmos o causamos. ”


Paradoxalmente, esse éo presente que os pais traidores queriam dar aos filhos. Se tudo o que realmente importassem fosse permitir que seus filhos vivessem com riqueza, eles poderiam ter dado a eles fundos fiducia¡rios. Mas eles queriam outra coisa - o prestígio meritocra¡tico que a admissão a s faculdades de elite confere, que éem si ilusãorio.

Como discutimos, realmente não se pode dizer que mesmo os alunos que ganharam a admissão pela porta da frente o fizeram sozinhos. E os pais e professores que os ajudaram em seu caminho? E quanto aos talentos e dons que não foram inteiramente criados por eles? Que tal a sorte de viver em uma sociedade que cultiva e recompensa os talentos que eles possuem?

Aqueles que prevalecem em uma meritocracia competitiva estãoendividados de maneiras que a competição obscurece. Amedida que a meritocracia se intensifica, o esfora§o nos absorve tanto que nosso endividamento desaparece de vista. Desse modo, mesmo uma meritocracia justa, sem traição, suborno ou privilanãgios especiais para os ricos, induz a impressão equivocada de que a causamos por conta própria.

Além de iludir a si mesmo, esse pensamento também écorrosivo para as sensibilidades ca­vicas. Pois quanto mais nos consideramos feitos por nosmesmos e autossuficientes, mais difa­cil éaprender a ser gratos e humildes. E sem esses sentimentos édifa­cil cuidar do bem comum.

A admissão na faculdade não éa única ocasia£o para discussaµes sobre manãrito.

Debates sobre quem merece o que abundam na pola­tica contempora¢nea. Superficialmente, esses debates são sobre justia§a: todos tem oportunidades verdadeiramente iguais de competir por bens e posições sociais desejáveis?

Mas nossas divergaªncias sobre manãrito não são apenas sobre justia§a. Sa£o também sobre como definimos sucesso e fracasso, vita³ria e derrota - e sobre as atitudes que os vencedores devem ter em relação aos menos bem-sucedidos do que eles. Essas são perguntas altamente carregadas, e tentamos evita¡-las atéque elas se imponham.

Encontrar nosso caminho além da pola­tica polarizada de nosso tempo requer um acerto de contas com manãrito. Como seu significado foi reformulado nas últimas décadas, de maneiras que corroem a dignidade do trabalho e fazem muitas pessoas sentirem que as elites as desprezam? Os vencedores da globalização tem justificativa para acreditar que mereceram e, portanto, merecem seu sucesso, ou isso éuma questãode arroga¢ncia meritocra¡tica?

Em uma anãpoca em que a raiva contra as elites trouxe a democracia a  beira do precipa­cio, a questãodo manãrito assume uma urgência especial. Precisamos perguntar se a solução para nossa pola­tica turbulenta éviver mais fielmente pelo princa­pio do manãrito ou buscar um bem comum além da classificação e do esfora§o.

Copyright © 2020 por Michael J. Sandel. Todos os direitos reservados.  

 

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