Humanidades

Livro propaµe reflexões sobre a educação no Brasil
Fruto de semina¡rio, realizado na Faculdade de Educaça£o da USP, obra reaºne textos sobre a crise do ensino paºblico
Por Luiz Prado - 19/01/2021


Fotomontagem da capa do livro com imagem da FE ao fundo osFotos: Divulgação e FE/USP

Um precioso panorama de reflexões sobre a escola de hoje, que sugere projetos de educação para todos, considerando as conquistas e contradições da atualidade e os desafios para a realização plena de uma escola democra¡tica.

a‰ assim que os organizadores definem A escola pública em crise, livro lana§ado pela Editora Livraria da Fa­sica e também dispona­vel para download gratuito no Portal de Livros Abertos da USP. A obra éfruto do I Semina¡rio Internacional da Educação: a escola pública em crise osinflexaµes, apagamentos e desafios. Realizado em 2019, o evento acompanhou as comemorações dos 50 anos da Faculdade de Educação (FE) da USP e os 60 anos de sua Escola de Aplicação (até1973, quando passou a integrar a FE, a escola esteve vinculada ao Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Sa£o Paulo Professor Queiroz Filho).

Publicado em tempos de pandemia, o livro éuma coleta¢nea de textos sobre os maºltiplos debates que animaram o semina¡rio e permanecem atuala­ssimos, orientados pela reflexa£o sobre a pola­tica e a educação e o lugar social da escola pública.

“Entendemos que o campo da Educação e a escola pública mais especificamente vivem uma crise sem precedentes na história de nossopaís. Quisemos interpelar esse problema”, escrevem na apresentação do volume os organizadores e também professores da FE Carlota Boto, Vini­cio de Macedo Santos, Vivian Batista da Silva e Zaqueu Vieira Oliveira.

a‰ o professor emanãrito da Unicamp Dermeval Saviani que inicia a coleta¢nea, com o artigo Escola e democracia no Brasil do século XXI. Partindo de referenciais do materialismo hista³rico e dialanãtico, Saviani comea§a analisando o lugar estratanãgico da educação na construção da democracia moderna: um instrumento pola­tico para transformar os antigos saºditos feudais em cidada£os dos regimes liberais burgueses.

Em seguida, o autor relata como esse ideal liberal de formação para o exerca­cio da cidadania foi atropelado, na Amanãrica Latina, pelas ditaduras militares das décadas de 1960 e 1970 e viu um ressurgimento com as redemocratizações.

“Se no período autorita¡rio a educação foi despojada de sua função de formação para a participação pola­tica, limitando-se ao papel de preparar recursos humanos para o desenvolvimento”, escreve Saviani, “com a abertura pola­tica passou-se a discutir mais intensamente não apenas a questãoda democratização da escola, mas também a importa¢ncia da educação no processo de democratização da sociedade”. O problema, conforme aponta o professor, éque na atual conjuntura essa tendaªncia corre riscos de uma nova ruptura.

Para o futuro dessa relação entre escola e democracia, Saviani imagina duas possibilidades contradita³rias. A primeira éa prevalaªncia da tendaªncia atual, na qual o mercado tensiona cada vez mais seus grilhaµes. a‰ a realidade já expressa na ação dos conglomerados econa´micos que transformam a escola em investimento capitalista, nas políticas pedaga³gicas orientadas pelo neoprodutivismo e na fetichização das novas tecnologias, como éo caso daquelas vinculadas a  educação a distância.

A segunda possibilidade vislumbrada por Saviani vincula-se justamente a  reversão dessa primeira tendaªncia, o que seria possí­vel atravanãs de uma revolução da ordem atual. Nesse cena¡rio, a escola se voltaria para uma formação unita¡ria, que desenvolvesse ao ma¡ximo as potencialidades dos indiva­duos. Imaginada de maneira sintanãtica por Marx e mais bem elaborada por Gramsci, essa escola unita¡ria se orientaria pelo conceito do trabalho como princa­pio educativo.

O professor desanuvia um pouco o que seria a educação unita¡ria ao comentar sobre as diretrizes da estruturação do ensino manãdio nesse projeto. “O horizonte que deve nortear a organização do ensino manãdio éo de propiciar aos alunos o doma­nio dos fundamentos das técnicas diversificadas utilizadas na produção, e não o mero adestramento em técnicas produtivas”, afirma. “Nãoa formação de técnicos especializados, mas de politécnicos.”

Curra­culo cultural e defesa da universidade pública

Em outra chave propositiva o atual diretor da FE, Marcos Garcia Neira, defende a possibilidade de um curra­culo no qual os conhecimentos trazidos para a escola pelos estudantes sejam considerados lega­timos e integrados em sala de aula pelos professores. “O curra­culo cultural e a afirmação das diferenças” faz a apresentação dessa perspectiva, que reconhece nos estudantes sujeitos capazes e vaª em seus saberes o potencial para novos conhecimentos.
 

“Em sentido oposto ao que propaµe a pola­tica curricular vigente, no curra­culo cultural não hácomo prever com antecedaªncia quais conhecimentos sera£o efetivamente abordados nas aulas”, explica Neira no texto. “Em termos práticos, o docente toma nota dos pronunciamentos dos estudantes, organiza uma ou mais atividades para problematiza¡-los, o que se torna possí­vel mediante a recorraªncia a discursos provenientes de variadas fontes. Os detalhes de um caso narrado por uma criana§a ou as informações contidas em uma nota­cia na internet devem ser tratados com a mesma seriedade que os conceitos obtidos por intermanãdio de pesquisas acadaªmicas.”

 
Demostrando a diversidade de abordagens que o livro congrega, o texto Em defesa da universidade, dos cientistas e das ciências humanas dirige sua atenção para o ensino paºblico superior. O ponto de partida do também professor da FE Bruno Bontempi Jaºnior éuma bizarra proposta de ideia legislativa publicada em 2018 por um cidada£o no site do Senado Federal que sugeria a extinção dos cursos de ciências humanas em universidades públicas.

Ao longo do artigo, Bontempi desconstra³i os sensos comuns e fala¡cias da proposta, recorrendo a dados quantitativos e matérias jornala­sticas. O que poderia soar apenas como o exerca­cio de um jovem advogado desmontando o discurso de seu adversa¡rio, entretanto, éusado pelo professor para desnudar a ocorraªncia desse tipo de argumentação no pra³prio governo Jair Bolsonaro.

Segundo o autor, nesse tipo de discurso e ação háuma tentativa de silenciar fila³sofos, artistas, historiadores, socia³logos, gea³grafos e educadores, cujas atividades se prestam justamente a recursar determinismos, desnaturalizar desigualdades sociais e duvidar das razões de Estado e dos dogmas da fanã. a‰ a visada cra­tica e problema¡tica que acompanha essas vocações o alvo de empreitadas como a proposta de ideia legislativa discutida.
 

“a‰ por isso”, argumenta Bontempi, “que não cessam de correr pelos legislativos estaduais, juntamente com propostas que, como essa, disfara§am-se de zelo para como o ‘dinheiro paºbico’, a ‘fama­lia’ e a ‘pa¡tria’, projetos deletanãrios como a ‘Escola sem Partido’, que, na impossibilidade de prescindir inteiramente a escola de professores, os amordaa§am, pretendendo esvaziar ou anular sua perturbadora vocação de fazer pensar, alegando que agem para impedir a doutrinação das criana§as e jovens ao que chamam de ‘esquerdismo’”.



Contribuições lusitanas

Professores vinculados a instituições lusitanas também contribuem para a publicação, seguindo o cara¡ter internacional do pra³prio semina¡rio do qual a obra se origina. Um deles éAnta³nio Carlos da Luz Correia, do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, que assina o texto O tempo da escola em Portugal: permanaªncias, bloqueios e mudança.

Correia aborda o recorrente problema da dificuldade da mudança da escola, de seus curra­culos e da maneira como classes são organizadas e estudantes julgados. O na³ ga³rdio da questão, para o autor, reside no descompasso entre a constante mudança da escola no plano organizacional e a cristalização de seu modelo institucional. Nessa encruzilhada, o modelo no qual os estudantes são organizados em hierarquias osa graduação ospossui papel destacado.
 

“O modelo da escola graduada desenvolveu-se de forma tão eficaz que hoje parece ter-se tornado o maior obsta¡culo a  sua própria transformação”, reflete Correia. E uma das a¢ncoras mais irreduta­veis a  mudança reside na organização temporal das atividades escolares. 


Mais 14 artigos encorpam o livro e ampliam a discussão, reunindo, além de professores da USP, docentes da Universidade de Coimbra, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal de Sergipe (UFS), Unesp, PUC Goia¡s, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e Universidade Santo Amaro (Unisa).
 

“Vivemos tempos sombrios, em que os projetos e prospectos de uma educação progressista parecem estar obnubilados”, escrevem os organizadores. “Cabe resgatar a lembrana§a e a esperana§a de trajetos, histórias e narrativas que desenharam um mundo pedaga³gico mais justo, mais fraterno e mais bem distribua­do. Que o futuro que se avizinha possa receber este volume como um legado de esperana§a em tempos melhores.”


A escola pública em crise: inflexaµes, apagamentos e desafios, de Carlota Boto, Vini­cio de Macedo Santos, Vivian Batista da Silva e Zaqueu Vieira Oliveira (organizadores), Editora Livraria da Fa­sica, 386 pa¡ginas, R$ 50,00. Dispona­vel também para download gratuito no Portal de Livros Abertos da USP. 

 

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