Cientistas ganham espaço nas redes sociais, mas ainda épreciso crescer muito para superar a influaªncia de grupos obscurantistas

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O negacionismo cientafico e obscurantismo intelectual do governo federal tiveram ao menos um efeito colateral positivo: um despertar da comunidade cientafica para a importa¢ncia da comunicação com a sociedade. a‰ nota¡vel o aumento da participação de pesquisadores, médicos e acadaªmicos na divulgação da ciência e no combate a s fake news no decorrer da pandemia, tanto pelos meios tradicionais de comunicação (servindo como fontes de informações confia¡veis para a imprensa, por exemplo), quanto por iniciativas pessoais nas redes sociais.
A negligaªncia no combate a pandemia, a negação das vacinas e a insistaªncia na promoção de tratamentos comprovadamente ineficazes contra a covid-19 suscitaram um verdadeiro levante de pesquisadores e entidades cientaficas contra a praga da desinformação que se alastra com consequaªncias cada vez mais nefastas pelas madias digitais. Na ausaªncia de uma campanha oficial de esclarecimento e incentivo a vacinação por parte das autoridades, diversas universidades, organizações e entidades médico-cientaficos lançaram campanhas próprias sobre o tema nesta semana — num embate semelhante ao que já vem sendo travado desde 2019 na área ambiental, frente a negação sistema¡tica de dados cientaficos sobre desmatamento e queimadas por parte do governo federal.
“A defesa das vacinas éo nosso último front. Se não conseguirmos convencer as pessoas de que as vacinas são seguras e que elas precisam se vacinar, vai ficar muito difacil defender qualquer coisa com base na ciência daqui pra frenteâ€, diz o analista de comunicação Joa£o Henrique Rafael Junior, membro da Unia£o Pra³-Vacina (UPVacina), da USP Ribeira£o Preto, e um dos organizadores da campanha Todos Pelas Vacinas, lana§ada na quarta-feira, 21 de janeiro.
Num esfora§o colaborativo que reaºne mais de 20 entidades da comunidade cientafica e acadaªmica, a campanha oferece diversos arquivos de vadeo, a¡udio e ilustrações sobre vacinas para serem compartilhadas nas redes sociais com a hashtag #todospelasvacinas. Va¡rias celebridades aderiram a iniciativa, incluindo o cantor de funk MC Fioti, cujo hit Bum Bum Tam Tam acabou virando trilha sonora da vacina Coronavac, do Instituto Buntantan. O vadeo abaixo, publicado com a hashtag da campanha no seu canal esta semana, inclui atéuma “entrevista†com o pesquisador Daniel Bargieri, professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) e coordenador do Naºcleo de Pesquisas em Vacinas (NPV) da USP — uma parceria inusitada no tradicionalmente polido e bem comportado mundo da ciência
“A ciência estãosendo demolida dia após dia no Brasilâ€, desabafa Rafael Junior. “Cada dia que a gente tolera isso, mais vidas são perdidas sem necessidade.†A boa notacia, segundo ele, éque a resposta a campanha nesses primeiros dias foi extremamente positiva. “Estamos muito longe de cantar vita³ria, mas éum projeto que mostra a capacidade de mobilização da comunidade cientafica. Isso traz um pouco de esperana§aâ€, diz. A USP, a Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Sa£o Paulo (Fapesp), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e outras entidades também lançaram campanhas em defesa das vacinas nos últimos dias, buscando disseminar informações confia¡veis e mensagens positivas para a população.
A maior parte desse esfora§o estãodirecionado para as redes sociais, que épor onde transita a maior parte das mentiras, distorções e teorias conspirata³rias em geral. Assim como já fazem os polaticos, cada vez mais pesquisadores estãoaprendendo a usar essas plataformas como um canal direto de comunicação com a sociedade, aproveitando-se do dinamismo e da capilaridade delas para desfazer mitos e disseminar informações de qualidade para a população, em sincronia com o noticia¡rio.
O médico e advogado Daniel Dourado éum exemplo disso. Apesar de ter uma conta no Twitter desde julho 2009, atéo inicio do ano passado ele são usava a plataforma para ler notacias e comenta¡rios ligados a sua área de pesquisa (direito sanita¡rio e políticas de saúde). Nãopostava quase nada e raramente interagia com alguém na rede. Quando a pandemia chegou ao Brasil, poranãm, ele começou a usar o Twitter para divulgar estudos cientaficos que estavam saindo sobre o tema; e a atenção que as postagens receberam o surpreendeu.
“Percebi que as pessoas estavam totalmente desorientadas, com uma fome enorme de conhecimentoâ€, conta Dourado, que épesquisador associado do Naºcleo de Pesquisa em Direito Sanita¡rio da USP e atualmente faz doutorado na Universidade de Paris. Estimulado pelo feedback que estava recebendo, ele começou a tuitar também sobre outros assuntos ligados a pandemia, e sua audiaªncia cresceu. Em maio de 2020, juntou-se a outros pesquisadores para formar o Infovid, um grupo de especialistas dedicado a divulgação de informações cientaficas verdadeiras sobre a covid-19, num esfora§o capitaneado pelo professor Paulo Lotufo, da Faculdade de Medicina da USP (que também se tornou uma voz influente no Twitter). “Acho que muita gente pensou como eu e começou a usar mais as redes a partir daaâ€, afirma Dourado, que agora tem mais de 60 mil seguidores no Twitter. “A gente recebe muito xingamento, muitas ameaa§as, mas também muitos agradecimentos.â€
Faz parte do meu trabalho divulgar para a sociedade o conhecimento que ela me paga para produzir"
Marcio Bittencourt
O cardiologista Ma¡rcio Bittencourt, da Divisão de Clanica Manãdica do Hospital Universita¡rio da USP, éoutro que foi sugado pelo va¡cuo de informações cientaficas sobre covid-19 nas redes sociais. Assim como Dourado, atéo inicio da pandemia ele são usava o Twitter para discutir questões cientaficas com seus pares, principalmente em inglês. A partir daa, incomodado com a falta de informações no Brasil, passou a postar mais coisas em portuguaªs, e sua audiaªncia cresceu rapidamente de algumas centenas para alguns milhares de seguidores. “Nem foi são para enfrentar fake news; foi para informar coisas que o paºblico geral precisava ouvir, mas que não estavam sendo informadas, inclusive por pessoas bem intencionadasâ€, relata Bittencourt.
As postagens atraaram não são a atenção do paºblico no Twitter (onde ele tem 24 mil seguidores), mas também da imprensa nacional e internacional, que passou a procura¡-lo como uma fonte de referaªncia para questões clanicas e epidemiola³gicas ligadas a covid-19. No dia em que o Instituto Butantan divulgou os dados do estudo clanico da Coronavac (12 de janeiro), uma postagem dele explicando a importa¢ncia dos resultados recebeu milhares de compartilhamentos e também ajudou a pautar a cobertura da imprensa sobre o assunto. “Foi um divisor de a¡guasâ€, conta.
Construir uma reputação nas redes sociais bem mais difacil e consome muito mais tempo do que se pode imaginar a primeira vista. Ainda que cada postagem se resuma a apenas uma ou duas frases, para falar com propriedade sobre ciência épreciso ler artigos, conferir dados, refazer contas, consultar referaªncias e pensar bastante antes de escrever ou dizer alguma coisa. Nãobasta entender do assunto nem ter opiniaµes fortes. Tambanãm épreciso interagir com as pessoas, ter esta´mago para ouvir craticas infundadas, ofensas, e muita paciaªncia, também, para responder perguntas elementares ou desprovidas de embasamento cientafico. Para um médico ou pesquisador que já vive sobrecarregado de trabalho, pode ser difacil encontrar tempo e disposição para mais essa atividade.
Bittencourt, poranãm, vaª a comunicação como uma obrigação profissional de todo pesquisador vinculado a uma instituição pública — como ele. “Eu sou pago para produzir conhecimento e para que esse conhecimento tenha impacto na sociedadeâ€, diz. “Considero que faz parte do meu trabalho, portanto, divulgar para a sociedade o conhecimento que ela me paga para produzir.†E se alguém usa esse conhecimento de forma indevida, completa ele, também éobrigação da comunidade cientafica fazer as correções necessa¡rias. “Produzir conhecimento não ésão publicar artigos cientaficos, étambém traduzir esse conhecimento para a população.â€
Tanto ele quanto Dourado aparecem numa lista de divulgadores cientaficos que vão se destacando no debate sobre a pandemia do novo coronavarus no Twitter, segundo um estudo feito pelo Science Pulse e o Instituto Brasileiro de Pesquisa e Ana¡lise de Dados (IBPAD). No topo da lista, considerando todos os critanãrios de avaliação, estãoo bia³logo Atila Iamarino (formado pela USP), a jornalista Luiza Caires (editora de Ciência do Jornal da USP), o epidemiologista Otavio Ranzani (da Faculdade de Medicina da USP), a biomédica Mellanie Fontes-Dutra (da UFRGS), e Bittencourt, em quinto lugar.
Ter muitos seguidores nas redes sociais éum indicador importante da capacidade de um cientista influenciar o debate paºblico sobre temas cientaficos, mas não o aºnico. A colaboração com a imprensa éoutra via importante, que vem sendo bastante utilizada; e a s vezes nem épreciso aparecer tanto. O bia³logo Helder Nakaya, da Faculdade de Ciências Farmacaªuticas, por exemplo, gastou uma manha£ de trabalho em dezembro para produzir o vadeo a seguir, de três minutos, sobre o que significa o “consenso cientaficoâ€. A motivação: repetidas mensagens de parentes no grupo de WhatsApp da familia questionando a segurança das vacinas e defendendo o “tratamento precoce†defendido pelo governo federal, com base em alegações sem fundamento feitas por uma minoria de cientistas negacionistas. “Nãoéporque alguém émédico ou tem um título de doutorado que tudo que ele fala estãocertoâ€, diz Nakaya.
Quando o governo estadual paulista ameaa§ou tirar recursos das universidades e da Fapesp no ano passado, também, vários pesquisadores se engajaram numa campanha virtual em defesa dessas instituições, gravando depoimentos, compartilhando notacias, dialogando com parlamentares e escrevendo artigos na imprensa para alertar a população sobre o papel fundamental que a ciência (financiada pela Fapesp e produzida pelas universidades) tem no desenvolvimento econa´mico, social e ambiental do Estado. As propostas de corte, no fim das contas, foram revertidas.
“Foi um esfora§o que nasceu por questãode sobrevivaªnciaâ€, diz a professora Alicia Kowaltowski, do Instituto de Química da USP, que ajudou a organizar o movimento e publicou vários artigos sobre o tema na imprensa. Desde 2019 ela écolunista do jornal digital Nexo, onde escreve sobre ciência (por prazer) e polatica cientafica (por obrigação). “Se não fizermos isso não vai ter mais ciência no Brasil e a gente não vai ter futuro para o Paas.â€
Avana§o importante, mas ainda insuficiente
“As redes sociais, o Twitter em especial, são muito velozes na circulação de informações. Hoje temos desde demissaµes de ministros atéresultados de estudos de vacina sendo anunciados nas redes sociais pelas próprias fontes oficiais; então cientistas e divulgadores de ciência precisam estar la¡ também, não são para comunicar os acontecimentos que se relacionam com a ciência de uma forma correta, e desfazer enganos, mas também para dar o contexto e ajudar o paºblico a entender o que significam as notacias que estãorecebendoâ€, avalia Luiza Caires, que tem 49 mil seguidores em seu perfil pessoal no Twitter, e ainda gerencia a conta Ciência USP, com 46 mil seguidores.
“Finalmente os cientistas estãoentendendo a importa¢ncia de ocupar esse espaço com informações corretasâ€, diz a bioquímica, pesquisadora e divulgadora de ciência Laura de Freitas, pa³s-doutoranda no Instituto de Química da USP e apresentadora do canal Nunca Vi 1 Cientista do YouTube (com 83 mil inscritos), em parceria com a colega Ana Bonassa. “a‰ um movimento muito positivo nesse sentido, mas que poderia ser mais intensoâ€, ressalta ela. “Ainda estamos muito aquanãm do que precisaraamos ter.â€
Atila Iamarino concorda. Mesmo com 1,1 milha£o de seguidores no Twitter e 1,3 milha£o de inscritos no seu canal pessoal do YouTube (além dos 3 milhões que acompanham o canal Nerdologia, que ele apresenta desde 2010), e mais uma coluna quinzenal no jornal Folha de S. Paulo, ele garante que não chega nem perto de equilibrar o jogo contra a gigantesca, produtiva, muito bem financiada e bem articulada rede de desinformações que se instalou no Brasil nos últimos anos. “Nãoénem de longe suficienteâ€, avalia ele.
Apesar do aumento no número de pesquisadores envolvidos com divulgação cientafica ser uma tendaªncia positiva, a única maneira de enfrentar essa ma¡quina de mentiras com alguma chance de vita³ria, segundo Iamarino, écom um engajamento muito mais expressivo no debate paºblico por parte das instituições que esses pesquisadores representam — incluindo universidades e institutos paºblicos de pesquisa, como Butantan e Fiocruz. “Nesse va¡cuo de decisaµes técnicas que estamos vivenciando, quem tem o papel mais importante são as instituições. Sa£o elas que precisam ocupar esse Espaço; e nesse sentido elas ainda estãosendo muito omissasâ€, afirma o divulgador. “Nãosou eu que deveria estar recebendo toda essa atenção, são as instituições.â€
Formado em biologia e doutor em microbiologia pela USP, Iamarino ganhou enorme projeção no inicio da pandemia, com uma sanãrie de vadeos que apresentavam os riscos da covid-19 e a necessidade de medidas urgentes contra a disseminação do varus no Brasil. Va¡rios desses vadeos tiveram mais de 1 milha£o de visualizações, e um deles chegou a 5,7 milhões. Todo esse sucesso, segundo ele, não tem tanto a ver com o seu curraculo de cientista, mas com a experiência (e o paºblico) que ele conquistou em mais de dez anos fazendo divulgação cientafica nas plataformas digitais — cada uma das quais exige uma estratanãgia de comunicação diferente. A confianção do paºblico nas redes sociais, segundo ele, éalgo que precisa ser conquistado e cultivado a longo prazo. “Agora éum momento que as pessoas estãomuito dispostas a ouvir e entender como a ciência funcionaâ€, diz. “Nãopodemos perder essa oportunidade.â€
“Acho que a comunidade cientafica percebeu duas coisas: como éimportante fazer essa ponte de comunicação com a sociedade, e como édifacil fazer issoâ€, diz a presidente do Instituto Questãode Ciência (IQC), Natalia Pasternak, que também éformada pela USP e também se tornou uma das vozes mais influentes da ciência no decorrer da pandemia, tanto nas redes sociais quanto na imprensa. Segundo ela, estãona hora de as instituições de pesquisa comea§arem a tratar a comunicação da ciência como uma atividade nobre, que precisa ser feita de forma profissional, “e não como um hobby que vocêpratica nas horas vagasâ€. “A comunicação pública da ciência precisa ser valorizada como um objetivo das universidades, tanto quanto o ensino e a pesquisaâ€, conclui.