Humanidades

Uma breve história da arte que enfrentou a barba¡rie
Livro da professora Maria Luiza Tucci Carneiro aborda 40 anos de censura contra artistas que desafiaram o Estado
Por Luiz Prado - 26/01/2021


Impressos de protesto na gra¡fica do PCdoB em Sa£o Paulo, na década de 1930 osFoto: Fundo Deops/SP osApesp

Uma história de artistas que atravessam o Atla¢ntico fugindo do nazismo, munidos de influaªncias do expressionismo alema£o postas a serviço da denaºncia da opressão sofrida pela classe trabalhadora. Gravuristas e desenhistas ana´nimos escondidos em gra¡ficas clandestinas, rodando madrugada adentro panfletos anarquistas, socialistas e comunistas. Vigilante como o Grande Irma£o de 1984, uma pola­cia pola­tica empenhada em identificar e incriminar aqueles considerados como inimigos do regime, apreendendo e arquivando jornais, panfletos, livros, cartaµes-postais e atémesmo partituras musicais.

Esse poderia ser o enredo de uma das sanãries do seu serviço de streaming preferido, mas trata-se do Brasil relembrado nas pa¡ginas de Impressos Subversivos: arte, cultura e pola­tica no Brasil os1924-1964, o novo livro de Maria Luiza Tucci Carneiro, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Uma mirada na censura brasileira ao longo de quatro décadas do século 20, construa­da a partir de impressos confiscados pelo Estado atravanãs do famigerado Departamento Estadual de Ordem Pola­tica e Social de Sa£o Paulo (Deops/SP).

De sua criação em 1924 atéa extinção em 1983, o Deops/SP se esmerou em encher armazanãns com papanãis apreendidos por serem considerados subversivos e por circularem na clandestinidade. Uma documentação arquivada a prontua¡rios e dossiaªs policiais como prova de crimes pola­ticos e que foi usada pelo Estado para perseguir e atacar opositores, sobretudo aqueles vinculados a grupos anarquistas, socialistas e comunistas.

Sa£o panfletos, jornais, pa´steres, revistas, livretos e uma diversidade de materiais iconogra¡ficos que Maria Luiza e sua equipe escavaram no Fundo Deops/SP, mantido no Arquivo Paºblico do Estado de Sa£o Paulo. O período recortado pela pesquisadora vai da criação do Deops/SP, ainda na Primeira República, atéa vanãspera do golpe civil-militar de 1964. Consequentemente, a Era Vargas e em especial o Estado Novo ganham destaque, ainda que a paranoia anticomunista pa³s-1945 também renda um material encorpado que éaproveitado na obra.

“Ha¡ sempre o interesse do Estado em identificar e incriminar o que ele considera como inimigo do regime”, comenta Maria Luiza sobre o material que embasa o livro. A autora batiza essa ação censãoria como uma ideologia de controle e de etiquetamento e enxerga nela uma pola­tica de higienização da cultura. “Na³s percebemos uma demarcação de fronteiras entre o que éla­cito e o que éila­cito. a‰ a produção de um discurso maniquea­sta, um jogo entre bem e mal, o que éperigoso e o que pode comprometer a vida do que eles consideram um cidada£o sauda¡vel.”

A atenção da pesquisadora recai sobre a produção arta­stica capturada pelo radar da censura, tanto aquela presente em salaµes de exposição quanto os desenhos e gravuras de jornais, panfletos e outros materiais que circulavam pelos subterra¢neos. Um conjunto de trabalhos no qual Maria Luiza identifica uma revisão da teoria da arte desinteressada e que coloca em seu lugar a unia£o entre arte e ativismo.

Vanguardistas e artesãos

Como protagonistas desse enfrentamento, o livro apresenta e investiga dois grandes grupos: os chamados artistas da vanguarda de protesto e os artesãos panfleta¡rios. Os primeiros são aqueles artistas de formação acadaªmica, inspirados em um primeiro momento pelas vanguardas modernistas, sobretudo o expressionismo, e depois pela linguagem picta³rica sovianãtica. Brasileiros do calibre de Tarsila do Amaral, Candido Portinari e La­vio Abramo, mas também imigrantes como Lasar Segall.

Seguindo a lógica da desconfianção que ditava os julgamentos sobre crimes pola­ticos, os artistas ligados a s vanguardas modernistas eram condenados por antecipação, considerados suspeitos de prática de sedição e propagadores do comunismo. Com trabalhos expostos em galerias, projeção internacional e inserção pública no circuito cultural, esses artistas mobilizaram suas forças em causas como a denaºncia da misanãria do povo brasileiro e o exorcismo dos pesadelos das guerras mundiais. A aproximação, de fato, com grupos comunistas osTarsila passa a integrar o Partido Comunista Brasileiro em 1931, para ficarmos em um exemplo oscolabora para a vigila¢ncia por parte da pola­cia pola­tica.

“Os artistas da vanguarda de protesto, usando cores fortes em suas telas e traa§os sangrados na madeira, revelavam os gritos dos exclua­dos contra a violência do Estado opressor”, registra Maria Luiza no livro. “Fica evidente que a produção destes artistas tem em comum a linguagem universal do protesto contra a degradação da reta³rica pola­tica, a injustia§a e os massacres desumanos das classes trabalhadoras.”

O livro aponta que a maioria dos artistas que se valeu da arte como meio para propagandear, ainda que sutilmente, o regime socialista foi, uma hora ou outra, vigiada pela pola­cia pola­tica. Como exemplo, a professora escreve que, em 1933, dentre os investigados estavam Patra­cia Galva£o, a Pagu, Oswald de Andrade, Emiliano Di Cavalcanti, Candido Portinari, La­vio Abramo e Lasar Segall.

Os artesãos panfleta¡rios, por sua vez, estavam longe do circuito da alta cultura e das academias de arte, geralmente autodidatas ou egressos dos Liceus de Artes e Ofa­cios do Rio de Janeiro e Sa£o Paulo. Sua produção servia a  urgência do momento, na maioria das vezes na clandestinidade. Eram ilustrações ana´nimas para peria³dicos ou panfletos rodados em mimea³grafos, de existaªncia efaªmera e apelo popular.

“Os desenhistas artesãos procuravam representar personagens de fa¡cil reconhecimento para o povo, valendo-se das imagens dos policiais (os ‘tiras’) em ação, da Revolução triunfante identificada por uma mulher heroa­na, e os revoluciona¡rios armados (opera¡rios, trabalhadores rurais e urbanos) em ação”, escreve a professora. Junto dessas imagens, a iconografia popular reunia composições anãpicas como a quebra de grilhaµes pelos ‘escravos modernos’ e retratos da tristeza, como uma familia proleta¡ria maltrapilha e famanãlica.

O trabalho desses artesãos ana´nimos era, conforme sugere o livro, instigar a tomada de posição diante dos problemas sociais, sobretudo da situação de misanãria do povo e das mulheres proleta¡rias. Cabia aos panfletos alimentar o espa­rito de rebeldia das classes trabalhadoras, e as imagens municiavam o opera¡rio semianalfabeto e os grupos desfavorecidos com as propostas de transformação social que corriam pela Europa e nospaíses da Amanãrica: a Revolução Francesa, a Revolução Russa e a Guerra Civil Espanhola.

Contradições autorita¡rias

Como a contradição épraxe em regimes autorita¡rios e ambientes de censura, a obra de Maria Luiza Tucci Carneiro também identifica momentos em que o pra³prio Estado abraça seu inimigo. Ao dirigir sua análise para o período do Estado Novo, a pesquisadora evidencia que, apesar da perseguição aos artistas subversivos, Getaºlio Vargas também se apropriou da arte de vanguarda para responder a s pressaµes antifascistas e estadunidenses durante a Segunda Guerra Mundial. O caso mais emblema¡tico éo de Portinari, ala§ado ao posto de artista oficial do Estado Novo.

“O governo Vargas precisa desses artistas para se projetar como uma nação moderna, identificada com os paradigmas de uma cultura de vanguarda”, explica a docente. “Era muito vantajoso, em seus dia¡logos com o governo americano, mostrar que ele estava contratando artistas como Lasar Segall e Portinari, que já eram pessoas renomadas.” O mesmo Segall, vale lembrar, rotulado como artista degenerado pela Alemanha nazista.

Enfim, relações conflituosas de aproximação e perseguição entre Estado e classes sociais evidenciando, conforme destaca Maria Luiza, que vigila¢ncia e controle sobre a sociedade sempre foram instrumentos eficazes para bloquearmudanças no poder institua­do, desde os tempos de cola´nia atéo final da ditadura civil-militar. Instrumentos que gostara­amos de ter deixado definitivamente para trás, mas que infelizmente parecem avana§ar mais uma vez sobre a pa¡tria amada, segundo a própria pesquisadora.

“Analisando esta documentação, constatei algumas recidivas que, replicadas neste atual governo do presidente eleito Jair Messias Bolsonaro, colocam em risco a democracia brasileira, ainda tão fra¡gil: censura velada, o controle e manipulação de informações e o uso de esterea³tipos, dentre os quais a generalização de que os comunistas são perigosos”, escreve Maria Luiza.

Impressos Subversivos: arte, cultura e pola­tica no Brasil os1924-1964, de Maria Luiza Tucci Carneiro, Editora Intermeios, 212 pa¡ginas, R$ 48,00.

 

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