Professor da USP lana§a e-book sobre a produção cinematogra¡fica que nos anos 70 formou nova vanguarda artastica

Domanio paºblico
Existe uma história subterra¢nea, misteriosa e malcontada no cinema nacional. Se ainda épossível ligar os pontos e visualizar uma narrativa que inclua os sucessos de bilheteria, os favoritos da cratica e as esperanças de um cadinho brasileiro nos festivais mundo afora, documentar as delacias e delarios do cinema dito experimental ainda éum campo necessitando de muita enxada.
Impossibilidade de estabelecer parentescos e a¡rvores geneala³gicas, dificuldade de encontrar e catalogar os tatulos, caraªncia de cratica e, não menos determinante, a polaªmica tarefa de definir exatamente o que faz de um filme experimental. Sa£o essas algumas das provações no caminho de qualquer aventureiro disposto a escrever essa história.
“Ao contra¡rio da história geral do cinema, o experimental não conta, via de regra, com uma recepção cratica compara¡vel, em padraµes, regularidade, quantidade: háqui e ali artigos de elogio, saudação, alguns ensaios e estudos isolados num amplo painel fragmenta¡rio, de falhas predominantes, enormes vazios a ocuparâ€, escreve o professor Rubens Machado Jr., da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.
Machado vem, hános, tentando ocupar esse espaço atravanãs do garimpo da produção experimental e de sua cratica sanãria. Agora, reaºne um punhado de seus registros textuais no e-book Contribuições Para Uma Hista³ria do Cinema Experimental Brasileiro: Momentos Obscuros, Desafio Cratico. A obra estãodisponavel para leitura gratuita no site do Projeto Cine Brasil Experimental.
O livro agrega um conjunto de escritos, em versaµes ampliadas e modificadas, originalmente publicados em folders e cata¡logos de exposições, dossiaªs, coleta¢neas e revistas especializadas. Como o pra³prio autor explicita no tatulo, não se trata de um itinera¡rio que desembarca o leitor didaticamente em cada estação da trajeta³ria experimental do cinema brasileiro, mas sim enquadramentos de momentos decisivos para se mapear essa trajeta³ria. a‰ como se fosse um road movie: longas paradas nas quais o principal da ação se desenrola em elipses e alta velocidade.
“Trata-se de um pequeno panorama hista³rico do cinema experimental no Brasil (e outros estãoa caminho, espero que a curto prazo), visto do a¢ngulo da relação dos filmes com as concepções hista³ricas de vanguarda, invenção, experimentação ou modernidade estanãtica radicalâ€, comenta Machado ao Jornal da USP. “Detanãm-se na análise (por vezes comparativa) de obras que desafiam a cratica imanente no sentido de se propor uma leitura interpretativa que possa legitimar ou questionar o seu teor estanãtico e artistico enquanto obra experimental, sempre atenta a s suas relações para com os padraµes vigentes nas prática s industriais ou pseudo-industriais.â€
Ainda que seja um panorama, o que significa uma extensão hista³rica horizontal, Machado empreende também análises verticais, nas quais se aprofunda em algumas obras, rastreando suas singularidades. “A escolha dessas obras évista como um work in progress que se dirige a um esfora§o coletivo de debate crítico sobre as produções audiovisuais e filmes de artistas brasileiros ou pouco vistos, ou ainda muito isolados de um quadro hista³rico mais conhecido, assim como obras que recusam ou questionam os padraµes estanãticos vigentes historicamente. Predomina uma atenção maior a obras menos discutidas, ou ignoradas, obras difaceis ou ainda carentes de alguma análise cratica; e por isso mesmo mitificadas ou subestimadas. E, nos casos em que não se possam analisar filmes por serem obras pouco projetadas ou desconhecidas, propaµe-se um mapeamento indicativo de qualidades que levantem questões e apontem caracteristicas que possam também, e de algum modo, desafiar novos empenhos e novas gerações de textos analaticos dessa obscura produçãoâ€, explica.
Ao contra¡rio da história geral do cinema, o experimental não conta com uma recepção cratica compara¡vel em padraµes, regularidade e quantidade
Do pioneirismo de Limite ao pré-Cinema Novo de Glauber
Limite (1931) éum dos nosque Machado articula em sua contribuição e dificilmente seria diferente. Filho aºnico de Ma¡rio Peixoto, eleito como o melhor filme brasileiro de todos os tempos pela Associação Brasileira de Craticos de Cinema (Abraccine), a obra ésina´nimo de experimental já em seu primeiro plano, a onarica imagem da cabea§a de mulher enredada por ma£os algemadas.
Sua demora/deriva que dilata de branco o tempo e esgara§a o caminhar reminiscente dos fugitivos sem esperana§a éuma espanãcie de cavalo-de-pau em ca¢mera lenta na cadaªncia do cinema de então, seus planos equilibrados em deslumbre atrás de deslumbre. Uma experiência que, mesmo em 2021, ainda arrebata os esparitos dispostos ao entusiasmo.
“O presente radiante que se ofusca regido pelas sombras esquecidas da tradição desatinada, do passado que hesita e demora por se articular atinando seus sentidos num desagnio virtuoso qualquer: eis a profusão derramada, obscura e singular que nos ilumina em Limiteâ€, escreve Machado.
Profusão tripla que o autor articula a O Pa¡tio (1959), primeiro filme de Glauber Rocha, quando o construtivismo era ainda uma das ideias que povoavam a cabea§a do cineasta e orientavam a ca¢mera em sua ma£o. Colocando um jovem casal para desperdia§ar olhares e rolar sobre o piso quadriculado que batiza a pelacula, Glauber criou o que Machado considera uma chave entre a vanguarda cla¡ssica e a moderna.
“O Pa¡tio prefigura, antes de existir o Cinema Novo, uma vanguarda que ainda podia ser chamada de ‘experimental’ (ver letreiros iniciais do filme) ostermo eclipsado nos anos 60, totalmente esquecido pelo novo sentido social da vanguarda cinematogra¡fica brasileira.â€
Foto: Reprodução
O Pa¡tio, de Glauber Rocha osFoto: Reprodução
Superoitismo
Movimento experimental mesmo, como vaga coletiva, Machado vai identificar com a produção em Super-8 que fervilha no Brasil durante os anos 1970 e inicio dos 1980. De acordo com o professor, metade ou mesmo dois tera§os do que se pode chamar de filme experimental brasileiro foram feitos graças a s ca¢meras, projetores e editores Super-8, lana§ados nos Estados Unidos em 1965 e responsa¡veis por irradiar o amadorismo cinematogra¡fico.
“A descoberta recente de uma grande produção quase ‘clandestina’ dos anos 1970 em Super-8 obriga-nos a reconsiderar completamente esse lugar-comum de que o cinema experimental brasileiro não existe para além de meia daºzia de nomes salpicados ao longo do séculoâ€, escreve celebrante Machado, que em 2001 organizou a mostra Margina¡lia 70 e arremessou para o século 21 mais de uma centena de produções caseiras, amadoras, clandestinas e que pouquassima gente havia visto atéentão.
“Ha¡ uma história a ser escrita. Sua concentração na década de 70 e inicio dos 80 coincide com os estertores do regime militar desde os seus momentos mais duros. Tanto a tensão da pesquisa estanãtica filmada em Espaços fora§osamente reclusos quanto um corpo a corpo ira´nico com o espaço paºblico juntaram poetas, artistas pla¡sticos e uma nova geração de cineastas radicais. Seus filmes não podem ser confundidos com o Cinema Marginal nem com o Cinema Novo, mesmo quando neles se inspiram: são uma terceira vaga, marcada pela busca da diferença.â€
Uma espanãcie de prima audiovisual da poesia de mimea³grafo e do happening, a produção experimental em Super-8 carrega no DNA as consequaªncias do Tropicalismo e seus desdobramentos, o que Machado percebe como a fragmentação da dimensão polatica da arte em experimentos de espontaneidade radical e visceralidade existencial. A pulsão era por rupturas, com a ordem polatica sufocante, o mercado nos tempos do “milagre†econa´mico e o bate-estacas cultural da televisão.
Existiu, contudo, ligação. Nãopor hereditariedade, mas provavelmente atravanãs de relações mais ao modo rizoma¡tico de Deleuze e Guattari, acrescenta o professor. Porque, se o experimentalismo do Super-8 não era Cinema Marginal e tampouco Cinema Novo, por outro lado foi a mais fecunda aplicação de certas perspectivas glauberianas.
“Essa consciência do meio de expressão, compreendida em sua precariedade, configura num certo sentido a mais funda repercussão em nosso universo audiovisual da Estanãtica da Fome, que foi escrita por Glauber Rocha anos antes, em 1965, tornando-a talvez mais profanãtica do que ele pra³prio gostariaâ€, escreve Machado.
Se as entranhas do leitor estãogangorreando de curiosidade, a santese do que foi o movimento superoitista para Machado pode ser apreciada em Agrippina éRoma-Manhattan (1972), a experiência de “quase-cinema†de Hanãlio Oiticica nos Estados Unidos, disponavel em uma busca rápida pelo YouTube. “Em seu experimento cosmopolita, em suas ancoragens latino-americanas ou brasileiras, Agrippina traz algo de compara¡vel a Glauber em seu terceiro-mundismo, seu filmar no desterro osDer leone have sept cabea§as (1970), realizado no Congo, e Claro (1975), em Romaâ€, anota o autor.
Sa£o rela¢mpagos, esses momentos do cinema experimental brasileiro, de uma história de negação selvagem e contanua de convenções estanãticas e demanda por rachas de conteaºdo e forma. Ta£o plural quanto explicitam suas denominações no espaço e no tempo: filme estrutural, abstrato, independente, radical, marginal, de invenção, de intervenção, diferente, não alinhado, negacionista, anticinema, de found-footage, onarico, conceitual, minimalista, materialista, prop-art, construtivo, pop, noturno, odara, puro, absoluto, livre, beat, visiona¡rio, underground, paramanãtrico, concreto, neoconcreto, rudimentar, cineviver, quase-cinema, vivencial, primitivista, antropofagia era³tica, terrir, cinema ovo, cafajeste, vanguarda acadaªmica, neocinemanovassimo, cinema de sala£o, anarco-superoitismo. E éuma listagem incompleta.
“Bem longe do proscaªnio, um cinema insaciado, famanãlico, magro e incontinente ganhava agilidade, repentes, franqueza, deboche, acenos cifrados, alegoria, introspecção, arremedo, imersão em profundas radicações do nosso temperamento, e agudeza para com as inervações amortecidas do pra³prio cinema brasileiroâ€, arremata Machado.