Humanidades

Unicamp inaugura acervo do fila³sofo haºngaro Istva¡n Manãsza¡ros
Operaça£o complexa e inanãdita trouxe da Inglaterra para Campinas quase 10 mil obras, ma³veis e centenas de documentos deste que éum dos mais importantes pensadores marxistas contempora¢neos
Por Juliana Franco - 20/04/2021


Sa£o quase 10 mil obras acumuladas ao longo de uma intensa carreira acadaªmica, coleções de importantes peria³dicos cienta­ficos, além de cerca de 250 caixas com cartas, manuscritos, planos de aulas e anotações diversas, e mais de 250 discos de vinil

Foi durante uma passagem pela Unicamp, em junho de 2002, que o fila³sofo haºngaro Istva¡n Manãsza¡ros anunciou a intenção de doar a  Universidade sua biblioteca, surpreendendo a plateia que lotava o audita³rio do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). Pouco mais de quinze anos depois, com seu falecimento em 1º de outubro de 2017, aos 86 anos de idade, começam as articulações para fazer valer a promessa, encarregada desde aquele dia ao socia³logo e professor Ricardo Antunes, seu amigo e parceiro intelectual por mais de três décadas.

O Acervo Istva¡n Manãsza¡ros foi inaugurado nesta tera§a-feira (13), em cerima´nia virtual (assista a  a­ntegra abaixo) com a presença de autoridades da Universidade, pesquisadores, familiares, admiradores e profissionais que participaram da empreitada que foi trazer o conjunto do velho continente para o Brasil. Afinal, são quase 10 mil obras acumuladas ao longo de uma intensa carreira acadaªmica, coleções de importantes peria³dicos cienta­ficos, além de cerca de 250 caixas com cartas, manuscritos, planos de aulas e anotações diversas, e mais de 250 discos de vinil osa maior parte de música cla¡ssica, mas também de jazz e blues osque agora estãosob os cuidados da Biblioteca de Obras Raras Fausto Castilho (Bora) da Unicamp. “Uma biblioteca dentro de uma biblioteca”, resumiu Antunes durante o evento que, mais que uma inauguração propriamente dita, teve como objetivo oficializar a chegada deste rico conjunto a  Unicamp. Além das obras e documentos, foram doados também a mesa e outros ma³veis do escrita³rio de Manãsza¡ros, que já se encontram na área de exposição de mobilia¡rios, no primeiro piso do prédio da Bora, inaugurado em 2020 e localizado ao lado da Biblioteca Central Canãsar Lattes (BCCL), no campus de Campinas.

Junto com Ricardo Antunes, Murillo van der Laan, hoje pa³s-doutorando em Sociologia na Unicamp, esteve diretamente envolvido com os complexos tra¢mites para o traslado do acervo osfoi quem primeiro pa´de avaliar in loco as preciosidades ali contidas após a morte do fila³sofo, quando em setembro de 2018, a pedido do professor do IFCH, esteve em Ramsgate osuma cidade costeira no sudoeste da Inglaterra, não muito longe do Canal da Mancha –, onde foi recebido por Giorgio Manãsza¡ros, filho e executor do testamento de Istva¡n. De la¡ para ca¡, com apoio fundamental da Reitoria, e das equipes do setor de importações da Unicamp e da Bora, foi preciso enfrentar muita burocracia osemissão de licena§as de importação, atendimento de diretrizes fitossanita¡rias, agendamento de transporte mara­timo e rodovia¡rio, entre outras. “Foi um trabalho gigantesco e corajoso, em grande medida também inanãdito na Unicamp, por se tratar do transporte internacional de todo um acervo. Essa éuma grande conquista da universidade pública brasileira, e eu espero que a gente saiba fazer um excelente uso dela”, enfatizou Murillo.

O acervo chegou a  Universidade em 6 de janeiro de 2020, pouco antes do primeiro caso de infecção pelo coronava­rus ser confirmado nopaís, por meio de um projeto aprovado junto a  Fundação de Amparo a  Pesquisa do Estado de Sa£o Paulo (Fapesp) que viabilizou a transferaªncia. Segundo a diretora do Sistema de Bibliotecas da Unicamp (SBU), Valanãria Martins, embora a pandemia esteja interferindo no andamento das etapas de organização e processamento arquiva­stico, a equipe da Bora segue trabalhando para poder disponibilizar quanto antes os livros e os documentos para pesquisa e consulta oso que, por conta da raridade dos acervos que mantanãm, são pode ser feito presencialmente.

Para a coordenadora geral da Unicamp, Teresa Atvars, receber o acervo éuma forma de honrar a memória do professor Manãsza¡ros, mas também uma grande responsabilidade. “A Unicamp não são recebe esse acervo, mas assume o compromisso de estuda¡-lo e divulga¡-lo, o que vai de encontro a  sua missão institucional”. Já o reitor Marcelo Knobel, que também acompanhou de perto todas as etapas do processo, ajudando a angariar apoios fundamentais como o do então diretor cienta­fico da Fapesp, Carlos Henrique de Brito Cruz, agradeceu ao grande número de setores e profissionais da Unicamp que permitiram viabilizar o feito em um tempo relativamente curto. “Para a Universidade éuma alegria e uma satisfação poder receber esse acervo tão precioso”, declarou.

Um pensador haºngaro que fincou raa­zes no Brasil

Na cerima´nia, George Manãsza¡ros, docente da Faculdade de Direito da Universidade de Warwick, no Reino Unido, preferiu evitar falar sobre a importa¢ncia e significado do conjunto doado os“isso cabe aos pesquisadores do futuro”, explicou, sem deixar de reconhecer, no entanto, o quanto os arquivos osbrasileiros, em especial ossão importantes em sua própria trajeta³ria.

Antunes conta que a amizade com Istva¡n teve ini­cio em 1983, durante a primeira visita dele ao Brasil, mas se estreitou quando, alguns anos depois, o fila³sofo lhe escreveu pedindo que ajudasse George no ini­cio de suas pesquisas, então voltadas a s relações da Igreja Cata³lica com os movimentos de trabalhadores durante a Ditadura Militar. George fez questãode lembrar como os arquivos do Centro Pastoral Vergueiro, em Sa£o Paulo, foram fundamentais para conclusão de seu doutorado sobre o tema em 1991 osacervo esse que, inclusive, foi recentemente incorporado ao Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), vinculado ao IFCH. Desde então, o Brasil segue central para suas pesquisas, que atualmente envolvem o direito a  terra e as lutas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), reforçando a impressão de que a escolha de seu pai por uma universidade pública brasileira como guardia£ de seu acervo tenha sido não são estratanãgica, como afetiva.

Segundo Ricardo Antunes, Istva¡n Manãsza¡ros esteve inaºmeras vezes nopaís oseles costumavam se ver ao menos uma vez por ano, hospedados na casa de um ou outro, e aproveitando os encontros cienta­ficos para estreitar a amizade. Para o socia³logo, Istva¡n admirava-se tanto com o potencial dos movimentos sociais e das esquerdas brasileiras, quanto com o impacto e repercussão de suas ideias e sua obra, tão complexa, por aqui. “Pela pujana§a dos movimentos sociais, pela força da classe trabalhadora, pela importa¢ncia dasmudanças que ele pode presenciar ao longo dos anos, Manãsza¡ros via no Brasil osmesmo com reservas cra­ticas e sabendo que na nossa Amanãrica Latina tudo muda abruptamente osuma presença da sua obra que era muito intensa. Ele via no Brasil, mais do que em outrospaíses, uma repercussão e uma afinidade com aquele que era seu projeto de vida, de lutar por uma humanidade dotada de sentido, lutar pela emancipação humana e social”, conta Antunes. Além de a Unicamp ser uma instituição muito parecida com a Universidade de Sussex, onde Istva¡n começou a lecionar em meados da década de 1960 e se tornou professor emanãrito, no ini­cio dos anos 1990, a escolha também seria uma forma de reconhecer a importa¢ncia da Unicamp e do IFCH para o pensamento social contempora¢neo. “Ele via na Unicamp o potencial de uma universidade rigorosa cientificamente, qualificada intelectualmente, e em que as ciências humanas sempre revelaram muita abertura e interesse para a reflexa£o cra­tica”, acredita o socia³logo. “O arquivo finalmente encontrou seu local de descanso”, sintetizou o filho George.

Vida, obra e legado

Nascido em 1930, em Budapeste, em uma familia humilde, Istva¡n Manãsza¡ros começou a trabalhar como opera¡rio muito jovem, aos 12 anos de idade, a exemplo de sua ma£e. Somente em 1949 pa´de iniciar seus estudos universita¡rios, tornando-se em pouco tempo assistente de Gya¶rgy Luka¡cs ospara Ricardo Antunes, um dos maiores expoentes da filosofia social e da cra­tica litera¡ria do século XX. Poranãm, em outubro de 1956, prestes a assumir o posto de Luka¡cs na Universidade de Budapeste, tropas sovianãticas invadiram a Hungria, obrigando-o a exilar-se. Levando cartas de recomendação do mentor, Istva¡n passou inicialmente pela Ita¡lia, onde lecionou na Universidade de Turim, e tempos depois pela Esca³cia, dando aulas na Universidade de Saint Andrews.

“Ele estabeleceu desde logo um dia¡logo crítico com uma mira­ade de autores que va£o dos cla¡ssicos da filosofia grega aos teóricos sociais contempora¢neos, passando pela filosofia cla¡ssica alema£, pela filosofia pola­tica moderna, pela cra­tica da economia pola­tica e das ciências sociais”, explica Antunes, para quem quatro obras são fundamentais para entender seu pensamento: A obra de Sartre (1979), Filosofia, ideologia e ciências sociais (1986) e O poder da ideologia (1989).

O a¡pice dessa trajeta³ria intelectual foi certamente a revisão pioneira da teoria marxista apresentada em Para além do capital, última e principal obra de Manãsza¡ros em vida, cuja primeira edição, de 1995, são ganhou tradução brasileira em 2002, a partir dos esforços da Editora Boitempo e da Editora da Unicamp osa razãopela qual centenas de estudantes e pesquisadores lotavam o audita³rio do IFCH naquele dia em que Istva¡n tornou pública a vontade de fazer do Brasil reposita³rio de sua memória.

Para além do Leviata£: cra­tica do Estado foi o tí­tulo escolhido para a obra a  qual vinha se dedicando nos últimos 15 anos, mas que não pa´de ver publicada. Ainda inanãdita, ela serálana§ada em breve pela Boitempo, que continua sendo a principal divulgadora do pensamento de Manãsza¡ros nopaís, e por uma editora americana, ampliando ainda mais o escopo de possibilidades de pesquisa que se abrem a partir do legado do pensador haºngaro. “Eu não tenho daºvida que demos um passo que vai ter marcas muitas positivas nas próximas décadas de pesquisa da Unicamp, pela grandiosidade da Biblioteca e ao mesmo tempo pela importa¢ncia de um intelectual que tem cada vez mais interesse em várias partes do mundo crítico e que estãoconectado com os desafios mais cruciais do nosso tempo”, conclui Antunes.

 

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