Humanidades

Cientistas estudam a produção da ignora¢ncia e unem esforços para combataª-la
A desinformaa§a£o éum conceito que extrapola o significado de 'fake news' Embora amplamente difundido, o termo 'fake news' éconsiderado amba­guo ou impreciso por alguns autores.
Por Luciana Rathsam - 21/04/2021


Estudos sobre os impactos da desinformação e iniciativas de divulgação cienta­fica buscam reduzir os danos sociais das ma­dias digitais e aprimorar o uso dessas ferramentas de comunicação

A pandemia de Covid-19 impulsionou uma intensa produção de publicações cienta­ficas no mundo todo. Conforme um levantamento a partir das informações da plataforma Dimensions, realizado pela Agência USP de Gestãoda Informação Acadaªmica (AGUIA), atéo dia 17 de outubro de 2020 haviam sido produzidas e registradas 168.546 publicações sobre Covid-19. Paralelamente, a ciência também se dedicou a  compreensão e ao enfrentamento de outra ameaa§a, que se propaga exponencialmente pelas redes sociais: a desinformação.

A desinformação éum conceito que extrapola o significado de “fake news”. Embora amplamente difundido, o termo ‘fake news’ éconsiderado amba­guo ou impreciso por alguns autores. Para examinar a complexidade da desordem da informação são estabelecidos critanãrios de classificar as mensagens, como o modelo proposto por Wardle e Derakshan (2017), que diferencia a desinformação (“dis-information”), criada propositalmente para prejudicar um indiva­duo, um grupo, uma organização ou uma nação, a informação errada (“mis-information”), que éproduzida sem a intenção de provocar danos, e a informação maliciosa (“mal-information”), que embora seja baseada em fatos, édivulgada na esfera pública para causar prejua­zos a uma pessoa, organização oupaís.

O Grupo de Estudos da Desinformação em Redes Sociais (EDReS) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) reaºne pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento para tentar entender e reduzir os efeitos da desinformação sobre a sociedade. “Estamos trabalhando no limite entre o conhecimento acadêmico formal e as suas aplicações”, explica Leandro Tessler, integrante do EDReS e professor do Instituto de Fa­sica da Unicamp. No ini­cio da pandemia, o grupo criou um canal no Whatsapp para receber nota­cias falsas disseminadas pelas redes sociais, formando um extenso banco de dados. “A análise de dados depende do estudo que estãosendo feito. Pode ser intensiva, com a participação humana (assistir muitos va­deos sobre um assunto) ou mais baseada em ma¡quina (correlacionar todos os tua­tes sobre vacinas em la­ngua portuguesa num determinado intervalo de tempo)”. Um dos objetivos dos estudos éclassificar as nota­cias e compreender como elas evoluem no tempo. Em geral, as nota­cias analisadas classificam-se em 3 grandes grupos, relacionados a  minimização da gravidade da doena§a, a s teorias conspirata³rias e a  negação das vacinas, destaca Tessler. ‘’Dentro de cada grupo hávariantes. Na verdade, hátoda uma hierarquia de desinformação, quase da¡ para fazer uma classificação filogenanãtica”.

Em Maceia³, uma pesquisa coordenada por Priscila Muniz de Medeiros, professora do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) busca estudar a influaªncia da desinformação sobre a pandemia de covid-10 nas atitudes e comportamentos da população. Com base nas informações de oito agaªncias de checagem, o estudo fez uma cartografia das nota­cias falsas que circularam no Paa­s entre mara§o e outubro de 2020. O pra³ximo passo, diz a pesquisadora, éentender como essas nota­cias impactaram os esforços de contenção do va­rus. Os dados já analisados indicam que as nota­cias falsas buscam ajustar os fatos a  visão de mundo do grupo pola­tico que as estãopropagando “As nota­cias falsas operam no sentido de conservar para aquele grupo a narrativa do hera³i infala­vel, o mito, o salvador, que nunca erra. Ao mesmo tempo que qualquer um que se oponha ao hera³i se torna antagonista nessas narrativas ficcionais. A manutenção dessa coeraªncia narrativa éessencial para a conservação do ama¡lgama que une o grupo”, avalia Medeiros.

A fraqueza das instituições fortalece a ignora¢ncia

A desinformação e o negacionismo (versão articulada e institucionalizada da desinformação), não se restringem ao Brasil. Em parceria com colegas da Columbia University e da University of Vienna, o pesquisador Renan Leonel, pa³s-doutorando no Health Ethics and Policy Lab da ETH Zurich, Suia§a, busca analisar e comparar os efeitos da produção da ignora¢ncia e do negacionismo sobre o enfrentamento da pandemia de Covid-19 no Brasil, nos Estados Unidos e no Reino Unido. O grupo selecionou os principais jornais impressos dos trêspaíses e levantou mais de 36 mil artigos relacionados ao tema de interesse. Ferramentas computacionais permitiram identificar quais palavras-chaves apareceram com mais frequência nos jornais por período da pandemia e revelaram que os discursos negacionistas se concentraram, num primeiro momento, em desqualificar o conhecimento sobre a transmissão do va­rus. No período entre as duas ondas da pandemia, a circulação em Espaços paºblicos e a reabertura de estabelecimentos comerciais ganha atenção, e quando a vacina se tornou realidade, passou a ser o alvo do negacionismo. Em relação a s particularidades dos discursos negacionistas nopaís, Leonel aponta que as nota­cias da ma­dia brasileira deram maior aªnfase a  questãodos medicamentos sem eficácia comprovada e também a  polaªmica da reabertura do comercio para a retomada da economia.

Comparando a situação do Brasil e dos EUA, Leonel ressalta a importa¢ncia das instituições democra¡ticas para redução dos efeitos do negacionismo. A despeito do discurso negacionista do Trump, órgãos e instituições estadunidenses seguiram seus projetos na pandemia, o Congresso aprovou medidas de esta­mulo a  economia, as vacinas foram produzidas. “No caso do Brasil, faltou uma infraestrutura de ciência articulada com os instrumentos democra¡ticos e que pudesse dar conta de um caminho alternativo. Nossas instituições já estavam muito enfraquecidas e infelizmente o nosso Congresso Nacional também compartilhava grande parte das percepções negacionistas do Presidente da República, então o caos pola­tico no Brasil alcana§ou umnívelmuito superior e a adesão a  desinformação foi muito maior do que naquelespaíses.”

Iniciativas de combate a  desinformação

A resposta a  pandemia no Brasil não se destaca apenas pelas falhas políticas, mas também por manifestações e iniciativas promovidas por grupos da sociedade civil para garantir o acesso a  informação de qualidade. Cientistas de todo opaís concentraram esforços para criar Espaços de comunicação em plataformas e redes sociais, promoveram webinários e conferaªncias, dedicaram-se a  checagem de mensagens que circulavam na internet. O site ciência popular, que mapeia algumas iniciativas das universidades brasileiras na pandemia, registrava a ocorraªncia de 535 iniciativas de disseminação de informações e divulgação cienta­fica em 15 de mara§o de 2021.

Referaªncia de iniciativa independente no combate a  desinformação, o Observatório Covid-19 BR reaºne 85 pesquisadores associados a 28 instituições e fornece dados atualizados, análises estata­sticas e previsaµes sobre a pandemia. Pesquisadores e instituições também se organizam em coletivos e redes de divulgação e combate a  desinformação, como a Rede Nacional de Combate a  Desinformação e #TodosPelasVacinas, da qual o Observatório faz parte. “O trabalho do Observatório évolunta¡rio, não háporte de nenhum meio. Pretendemos, no futuro, manter o grupo multidisciplinar de análise de questões que envolvem a saúde pública e seus impactos sociais e continuar a atuar na proposição de políticas públicas baseadas em evidaªncias”, diz Flavia Ferrari, bia³loga co-responsável pela divulgação cienta­fica do Observatório Covid-19 Br.

A ampliação dos canais de comunicação entre ciência e sociedade éuma tendaªncia importante. “De fato, o ambiente digital éhoje o principal ambiente disseminação da desinformação, mas também éo espaço onde as pessoas buscam conhecimento e informação qualificada, então uma estratanãgia de comunicação eficaz deve ser forte no ambiente online”, reflete Leonel. “O grande desafio que percebo éo de manter os ganhos trazidos pelas ma­dias digitais, especialmente no que concerne a ampliação de vozes no debate paºblico, mas reduzindo os enormes danos sociais que os aspectos negativos vão promovendo”, conclui Medeiros. 

 

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