Humanidades

A pola­tica de desvalorização da ciência tem custo que ultrapassa o Teto de Gastos
A desinformaa§a£o e o negacionismo cienta­fico no Brasil extrapolam o discurso, são propagados por autoridades e órgãos de governo e são custeados por verbas públicas.
Por Luciana Rathsam - 26/04/2021


Divulgação Unsplash

A desinformação e o negacionismo cienta­fico no Brasil extrapolam o discurso, são propagados por autoridades e órgãos de governo e são custeados por verbas públicas. Além do sistema¡tico boicote a s medidas de prevenção contra a Covid-19 preconizadas pela ciaªncia, o governo insistiu num suposto “tratamento precoce” da doença e investiu macia§amente nessa ideia. Um levantamento da BBC News Brasil, feito a partir de fontes públicas, aponta que a Unia£o teria gasto, no ma­nimo, uma quantia torno R$ 90 milhões com medicamentos cuja eficácia e segurança já haviam sido contestadas por estudo cienta­fico publicado em meados de 2020. Ignorada pelas políticas públicas e sofrendo cortes ora§amenta¡rios vertiginosos, a ciência brasileira enfrenta hoje uma condição agonizante, e o futuro dopaís depende da reversão desse quadro cra­tico.

Mesmo antes do surgimento da pandemia, o governo federal exibia um discurso de negação da ciência e dos direitos humanos, fazia declarações imbua­das de preconceitos de gaªnero e raça, exaltava as prática s de tortura na ditadura. Ha¡ um esfora§o concentrado em legitimar o uso da violência como forma de gestãopública, com ampla defesa das “pautas de costumes” e da pauta neoliberal da economia. “As ditas “pautas dos costumes” naturalizam as desigualdades injustas e as hierarquias entre os que devem gozar de diretos e aqueles aos que esses direitos podem ser negados, aqueles que de acordo a Gustavo Vallejo, se caracterizam por suas cidadanias incompletas”, esclarece Sandra Caponi, professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Todos esses elementos, que já estavam presentes antes da aparição da pandemia, tem possibilitado a aceitação, fundamentalmente no núcleo firme de apoiadores do governo, de um longo processo de negação dos conhecimentos cienta­ficos, tendo como resultado a pior gestãomundial da pandemia de Covid-19, de acordo ao estudo realizado pelo Lowy Institut de Sidney.”

Precarização do trabalho e vulnerabilidade

Na pandemia, a crise sanita¡ria foi agravada pelo negacionismo e pela falta de uma pola­tica nacional de proteção a s populações mais vulnera¡veis, como os trabalhadores precarizados, que são privados de direitos laborais e sindicais para ingressar no “empreendedorismo”, conforme prega a lógica neoliberal. Esse modelo, observa Caponi, promove o enriquecimento de alguns setores, enquanto condena muitas pessoas a  doença e a  morte. “Por um lado, o neoliberalismo exalta o modelo laboral do empresa¡rio de si e, por outro lado, desenha uma nova configuração pola­tica e econa´mica que transforma o modo de administração e gestãoda vida: sem deixar de ser eixos de intervenção e controle dos governos, a vida e a saúde passaram a transformar-se em assuntos que são de nossa responsabilidade individual”, destaca a professora.

Empresa¡rios de si e responsa¡veis pela gestãoda saúde, os cidada£os brasileiros foram repetidamente estimulados, pela desinformação das redes e pelo pra³prio exemplo de autoridades públicas, a descumprirem as regras de distanciamento social e seguirem com suas atividades habituais. A ideia de um tratamento precoce que pudesse evitar as complicações da Covid-19 parece oportuna nesse contexto, pois oferece uma falsa segurança de que tudo estãosob controle.

Desfinanciamento da ciaªncia

A desvalorização da ciência éparticularmente nociva quando os recursos paºblicos para a pesquisa e desenvolvimento de ciência e tecnologia tornam-se cada vez mais escassos. Desde 2015, o ora§amento dispona­vel para a Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) tem sofrido uma queda vertiginosa. A proposta ora§amenta¡ria para o Ministanãrio da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) em 2021 é34% menor do que em 2020. Em 3 de mara§o de 2021, 11 Ex-Ministros de Estado da Ciência, Tecnologia e Inovações assinaram um Manifesto em Defesa da Educação, Ciência, Tecnologia e Inovação, onde expaµem os riscos de descontinuidade de programas estratanãgicos e de colapso das instituições, com impactos severos sobre a economia, a sustentabilidade ambiental e a equidade social: “Enquantopaíses desenvolvidos reforçam suas políticas de CT&I, em face da contribuição essencial destas para retomada do crescimento sustenta¡vel e equa¢nime, caminhamos a passos largos na direção do obscurantismo - mediante a negação da ciaªncia, recuo na formação de recursos humanos e decla­nio da inovação no setor produtivo”.

Os cortes nas verbas destinadas a  Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) se agravaram com a promulgação da Emenda Constitucional EC-95/2016, que criou o Teto de Gastos e congelou o ora§amento de áreas estratanãgicas para opaís, como a ciaªncia, a tecnologia, a saúde, a educação e as políticas sociais. “Com isso, o Congresso e o presidente da anãpoca (Michel Temer) congelaram os valores de investimentos das futuras gestaµes; ainda que o PIB crescesse, estara­amos presos aos valores de 2016. A única coisa que estãoa salvo do congelamento éo pagamento de juros e amortização da da­vida pública, ou seja, o setor financeiro. Hoje vemos o retrato da decadaªncia promovida por essa Emenda.”, afirma Claudia Linhares Sales, professora da Universidade Federal do Ceara¡ (UFC) e diretora da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

As políticas de cortes de gastos paºblicos em setores como a ciaªncia, a educação e a saúde tem estreita relação com o idea¡rio neoliberal de reduzir o papel do Estado e reforçar o setor privado da economia, atravanãs de estratanãgias como a desregulamentação, a privatização e a austeridade fiscal. “A pola­tica de austeridade fiscal tem impacto distributivo fortemente negativo, pois piora a distribuição de renda e as condições de acesso de bens e servia§os paºblicos essenciais”, explica Ana Laºcia Gona§alves da Silva, professora do Departamento de Teoria Econa´mica do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Como a carga tributa¡ria brasileira se apoia fortemente em impostos indiretos (sobre o consumo), os pobres pagam proporcionalmente mais impostos do que os ricos. Nesse contexto, os gastos sociais tem papel decisivo para a redução das desigualdades sociais. “Em resumo, caberia enfrentar o duplo desafio de tornar a pola­tica tributa¡ria menos regressiva e fortalecer as políticas públicas, ampliando os gastos sociais”, esclarece.

A crise econa´mica agravada pela pandemia coloca em xeque o modelo econa´mico adotado pelo governo. “A pola­tica de desmonte da ciência revela uma falta de vontade pola­tica e uma falta de visão em relação ao papel da ciência de gerar bem-estar e riquezas. Nenhumpaís soberano abre ma£o da educação, da ciaªncia, da tecnologia e da inovação. Nosso governo não aplica os esforços nessas áreas porque não tem um projeto de nação desenvolvida, soberana e justa”, destaca Linhares. “De fato, mundo afora o combate aos efeitos econa´micos e sociais da crise constitui uma das operações fiscais mais ousadas da história recente do capitalismo. Mesmo instituições como o Fundo Moneta¡rio Internacional e o Banco Mundial recomendam aospaíses ampliar fortemente os gastos com ciência e saúde e buscar medidas de apoio aos mais vulnera¡veis, não apenas para combater a pandemia, mas também como forma de minimizar seus efeitos sociais e econa´micos”, acrescenta Gona§alves da Silva.

 

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