A polatica de desvalorização da ciência tem custo que ultrapassa o Teto de Gastos
A desinformaa§a£o e o negacionismo cientafico no Brasil extrapolam o discurso, são propagados por autoridades e órgãos de governo e são custeados por verbas públicas.

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A desinformação e o negacionismo cientafico no Brasil extrapolam o discurso, são propagados por autoridades e órgãos de governo e são custeados por verbas públicas. Além do sistema¡tico boicote a s medidas de prevenção contra a Covid-19 preconizadas pela ciaªncia, o governo insistiu num suposto “tratamento precoce†da doença e investiu macia§amente nessa ideia. Um levantamento da BBC News Brasil, feito a partir de fontes públicas, aponta que a Unia£o teria gasto, no manimo, uma quantia torno R$ 90 milhões com medicamentos cuja eficácia e segurança já haviam sido contestadas por estudo cientafico publicado em meados de 2020. Ignorada pelas políticas públicas e sofrendo cortes ora§amenta¡rios vertiginosos, a ciência brasileira enfrenta hoje uma condição agonizante, e o futuro dopaís depende da reversão desse quadro cratico.
Mesmo antes do surgimento da pandemia, o governo federal exibia um discurso de negação da ciência e dos direitos humanos, fazia declarações imbuadas de preconceitos de gaªnero e raça, exaltava as prática s de tortura na ditadura. Ha¡ um esfora§o concentrado em legitimar o uso da violência como forma de gestãopública, com ampla defesa das “pautas de costumes†e da pauta neoliberal da economia. “As ditas “pautas dos costumes†naturalizam as desigualdades injustas e as hierarquias entre os que devem gozar de diretos e aqueles aos que esses direitos podem ser negados, aqueles que de acordo a Gustavo Vallejo, se caracterizam por suas cidadanias incompletasâ€, esclarece Sandra Caponi, professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Todos esses elementos, que já estavam presentes antes da aparição da pandemia, tem possibilitado a aceitação, fundamentalmente no núcleo firme de apoiadores do governo, de um longo processo de negação dos conhecimentos cientaficos, tendo como resultado a pior gestãomundial da pandemia de Covid-19, de acordo ao estudo realizado pelo Lowy Institut de Sidney.â€
Precarização do trabalho e vulnerabilidade
Na pandemia, a crise sanita¡ria foi agravada pelo negacionismo e pela falta de uma polatica nacional de proteção a s populações mais vulnera¡veis, como os trabalhadores precarizados, que são privados de direitos laborais e sindicais para ingressar no “empreendedorismoâ€, conforme prega a lógica neoliberal. Esse modelo, observa Caponi, promove o enriquecimento de alguns setores, enquanto condena muitas pessoas a doença e a morte. “Por um lado, o neoliberalismo exalta o modelo laboral do empresa¡rio de si e, por outro lado, desenha uma nova configuração polatica e econa´mica que transforma o modo de administração e gestãoda vida: sem deixar de ser eixos de intervenção e controle dos governos, a vida e a saúde passaram a transformar-se em assuntos que são de nossa responsabilidade individualâ€, destaca a professora.
Empresa¡rios de si e responsa¡veis pela gestãoda saúde, os cidada£os brasileiros foram repetidamente estimulados, pela desinformação das redes e pelo pra³prio exemplo de autoridades públicas, a descumprirem as regras de distanciamento social e seguirem com suas atividades habituais. A ideia de um tratamento precoce que pudesse evitar as complicações da Covid-19 parece oportuna nesse contexto, pois oferece uma falsa segurança de que tudo estãosob controle.
Desfinanciamento da ciaªncia
A desvalorização da ciência éparticularmente nociva quando os recursos paºblicos para a pesquisa e desenvolvimento de ciência e tecnologia tornam-se cada vez mais escassos. Desde 2015, o ora§amento disponavel para a Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) tem sofrido uma queda vertiginosa. A proposta ora§amenta¡ria para o Ministanãrio da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) em 2021 é34% menor do que em 2020. Em 3 de mara§o de 2021, 11 Ex-Ministros de Estado da Ciência, Tecnologia e Inovações assinaram um Manifesto em Defesa da Educação, Ciência, Tecnologia e Inovação, onde expaµem os riscos de descontinuidade de programas estratanãgicos e de colapso das instituições, com impactos severos sobre a economia, a sustentabilidade ambiental e a equidade social: “Enquantopaíses desenvolvidos reforçam suas políticas de CT&I, em face da contribuição essencial destas para retomada do crescimento sustenta¡vel e equa¢nime, caminhamos a passos largos na direção do obscurantismo - mediante a negação da ciaªncia, recuo na formação de recursos humanos e declanio da inovação no setor produtivoâ€.
Os cortes nas verbas destinadas a Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) se agravaram com a promulgação da Emenda Constitucional EC-95/2016, que criou o Teto de Gastos e congelou o ora§amento de áreas estratanãgicas para opaís, como a ciaªncia, a tecnologia, a saúde, a educação e as políticas sociais. “Com isso, o Congresso e o presidente da anãpoca (Michel Temer) congelaram os valores de investimentos das futuras gestaµes; ainda que o PIB crescesse, estaraamos presos aos valores de 2016. A única coisa que estãoa salvo do congelamento éo pagamento de juros e amortização da davida pública, ou seja, o setor financeiro. Hoje vemos o retrato da decadaªncia promovida por essa Emenda.â€, afirma Claudia Linhares Sales, professora da Universidade Federal do Ceara¡ (UFC) e diretora da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
As políticas de cortes de gastos paºblicos em setores como a ciaªncia, a educação e a saúde tem estreita relação com o idea¡rio neoliberal de reduzir o papel do Estado e reforçar o setor privado da economia, atravanãs de estratanãgias como a desregulamentação, a privatização e a austeridade fiscal. “A polatica de austeridade fiscal tem impacto distributivo fortemente negativo, pois piora a distribuição de renda e as condições de acesso de bens e servia§os paºblicos essenciaisâ€, explica Ana Laºcia Gona§alves da Silva, professora do Departamento de Teoria Econa´mica do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Como a carga tributa¡ria brasileira se apoia fortemente em impostos indiretos (sobre o consumo), os pobres pagam proporcionalmente mais impostos do que os ricos. Nesse contexto, os gastos sociais tem papel decisivo para a redução das desigualdades sociais. “Em resumo, caberia enfrentar o duplo desafio de tornar a polatica tributa¡ria menos regressiva e fortalecer as políticas públicas, ampliando os gastos sociaisâ€, esclarece.
A crise econa´mica agravada pela pandemia coloca em xeque o modelo econa´mico adotado pelo governo. “A polatica de desmonte da ciência revela uma falta de vontade polatica e uma falta de visão em relação ao papel da ciência de gerar bem-estar e riquezas. Nenhumpaís soberano abre ma£o da educação, da ciaªncia, da tecnologia e da inovação. Nosso governo não aplica os esforços nessas áreas porque não tem um projeto de nação desenvolvida, soberana e justaâ€, destaca Linhares. “De fato, mundo afora o combate aos efeitos econa´micos e sociais da crise constitui uma das operações fiscais mais ousadas da história recente do capitalismo. Mesmo instituições como o Fundo Moneta¡rio Internacional e o Banco Mundial recomendam aospaíses ampliar fortemente os gastos com ciência e saúde e buscar medidas de apoio aos mais vulnera¡veis, não apenas para combater a pandemia, mas também como forma de minimizar seus efeitos sociais e econa´micosâ€, acrescenta Gona§alves da Silva.