Humanidades

'A pandemia estãosendo uma oportunidade a­mpar de aprendizado'
Enfermeira chefe da UTI do HSP relata os desafios na linha de frente contra a covid-19
Por Valquíria Carnaúba - 28/04/2021


Jane Alves atualmente coordena uma equipe de mais de 300 profissionais na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Sa£o Paulo (Foto: Alex Reipert)

A enfermeira intensivista Jane Alves estãona linha de frente contra a covid-19 desde mara§o de 2020, mas convive com situações limite da vida humana háquase 20 anos. Ela coordena atualmente uma equipe de mais de 300 profissionais na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Sa£o Paulo, hospital universita¡rio (HSP/HU Unifesp), que recebe inúmeros pacientes, por dia, vitimas do coronava­rus e outras enfermidades.

Sua trajeta³ria na área da saúde começou em 1997, com a graduação na Escola Paulista de Enfermagem (EPE/Unifesp) - Campus Sa£o Paulo, seguida da residaªncia em Enfermagem em Terapia Intensiva. Os anos de vivaªncia em prática s relacionadas ao cuidar trouxeram um olhar maduro sobre as principais necessidades dos pacientes em situações cra­ticas. Mas uma experiência especa­fica éa sua maior referaªncia nesse momento. “A equipe mais antiga, incluindo eu, passou pela epidemia de H1N1. Quando a covid-19 chegou, resgatamos aquela lembrana§a para enfrentar uma pandemia”. Assim, alia¡s, ela percebe o que estãoacontecendo: uma oportunidade a­mpar de aprendizado.

Ela divide uma rotina puxada e, por vezes, angustiante, com a vida pessoal. E éesse equila­brio que a mantanãm serena. As horas dedicadas aos pais, a  filha de 24 anos, a  meditação, ao crossfit e a  busca de conhecimentos pautados na ciência compõem sua fa³rmula ideal para o autocontrole e o equila­brio emocional. Conversamos com Alves, que contou um pouco sobre a atuação na linha de frente na UTI e suas percepções, como profissional de saúde e cidada£, diante de um pata³geno que ainda desafia a humanidade.

Quando a pandemia chegou de fato, em mara§o de 2020, vocêse sentiu pronta para encara¡-la?

J.A. No ina­cio, foi menos difa­cil do que imagina¡vamos. Algumas pessoas que trabalham aqui já passaram pela experiência da epidemia de H1N1, hálguns anos, por isso pudemos resgatar essa experiência para enfrentar a pandemia desse momento. Isso ajudou a manter a coesão do grupo, o envolvimento. Apesar de estarmos com muito medo, continuamos buscando novas informações e estudos cienta­ficos. Além disso, a alta gestãoinstitucional do nosso hospital, a diretoria de Enfermagem e a coordenação médica foram muito participativas. Compramos a briga e fomos em frente! Eram a princa­pio 35 leitos de UTI, ampliamos maªs após maªs atéchegarmos a 81 leitos ativos, sendo 73 leitos para atender somente pacientes com diagnósticos de covid, fechando julho com seis UTIs sob nossa coordenação. Além disso, triplicamos o número de colaboradores em todas as áreas, o que foi um desafio enorme, pois tratava-se de uma equipe nova para ser treinada em um momento muito cra­tico.

Quanto tempo levou essa adaptação de estrutura ao novo cena¡rio?

J.A. Comea§amos as primeiras contratações em abril, e o processo continuou em maio, junho e julho. Essas admissaµes inclua­ram médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e fisioterapeutas, contemplando os profissionais que formam a equipe assistencial da terapia intensiva. Ao mesmo tempo, sempre fomos respaldados pelas recomendações do Ministanãrio da Saúde, das RDCs. O HSP nos acolheu muito bem nesse sentido, apesar das dificuldades financeiras, o que faz muita diferença na ponta oso cuidado com o paciente. Isso porque a sobrecarga de trabalho émuito grande, a complexidade dos casos écada dia maior, e mesmo com o conhecimento acumulado ao longo do ano lidar com a segunda onda écomplexo.

Muitos de nostemos curiosidade. Conte um pouco sobre sua rotina na UTI durante a pandemia.

J.A. Todos os dias entro aqui na UTI paramentada, assim como os demais colaboradores da equipe. Sabemos que estamos bem mais expostos do que quem estãona rua, então nosso cuidado éredobrado. Leva¡vamos em média mais de 10 minutos para se paramentar para o trabalho no dia a dia. Hoje, émuito mais rápido por causa da prática . Desde o começo nosso lema foi “a segurança de um éa segurança de todos”, e noscomo equipe de saúde temos que estar seguros para cuidar do paciente. Quando temos um colega de trabalho internado na UTI, a tensão toma conta de nossos corações. O que fazer. Dois enfermeiros nossos já ficaram internados, mas felizmente não integraram os casos mais graves nem ficaram intubados, evoluindo bem e voltando ao trabalho normalmente. Isso foi muito gratificante para a equipe.

Profissionais de saúde no Hospital Sa£o Paulo. Foto: Alex Reipert. 

Mudou muito a rotina da UTI do HSP com a pandemia?

J.A. Para ter uma base para comparação, imagine um paciente da Neurologia que acabou de sofrer um AVC. Ele chega inconsciente na UTI, e somente então fazemos todos os procedimentos, como sedar e iniciar os cuidados intensivos. Quando vocêsabe que a pessoa não tem consciência do que estãoacontecendo com ela, sabe que essa pessoa estãosendo poupada do sofrimento. Hoje, poranãm, o que acontece éo seguinte: “Senhor, a gente vai ter que entubar vocaªâ€. E a pessoa responde: “Bom...deixe eu ligar para minha esposa, então, para eu me despedir”. Por que essa despedida? Porque pode ser que ele consiga melhorar...mas pode ser que não. a‰ angustiante, mais ainda por sabermos que mais de 70% dos pacientes que adentram a UTI morrem, e essa não era a mortalidade usual aqui na UTI do Hospital. Apesar de ser uma UTI de casos graves, esse caso como o do paciente era um exemplo das nossas referaªncias oscasos graves, complexos, de politrauma, morte encefa¡lica. Lidar com a morte era parte da nossa vida. Mas com a velocidade com que temos visto, não, nem da forma como temos que lidar com a sensação de impotaªncia. Quando nenhum tratamento ou procedimento tem resposta, quando tentamos tudo o que sabemos, e o paciente não responde ao tratamento”.

O que significa “fazer tudo” nesse momento?

J.A. O paciente com covid-19 chega na UTI com insuficiência respirata³ria, e a fala mais comum é“não consigo respirar”. Isso significa que o seu pulma£o não consegue trocar o gás carba´nico pelo oxigaªnio. Oferecemos então o melhor produto para aquele paciente, naquele momento: o oxigaªnio. Iniciamos a oxigenoterapia pelo cateter nasal, usado para administrar oxigaªnio de baixo fluxo. Nãosurtindo efeito, partimos para a ma¡scara não reinalante com um reservata³rio de oxigaªnio. Caso os na­veis de oxigaªnio no corpo continuem baixos (segundo a medição do oxa­metro e do sangue) e o paciente apresente fadiga, partimos para manobras de ventilação não invasivas, como a ma¡scara de com pressão positiva e cateter de auto fluxo, atéa intubação e ventilação meca¢nica. Cada uma delas oferece uma porcentagem especa­fica de oxigaªnio que esteja acima dos usuais 21% presentes no ar que respiramos. A quantidade de oxigaªnio oferecida na oxigenoterapia não invasiva deve acrescentar no ma¡ximo 15% a esses 20%. Durante esses procedimentos, o fisioterapeuta sempre estãopresente orientando o paciente sobre exerca­cios respirata³rios. Quem define as quantidades de oxigaªnio utilizadas éo médico, pois o insumo também éconsiderado um medicamento, que em excesso pode trazer outros prejua­zos.

Quando vocêdeixa o trabalho, segue sua vida normalmente?

J.A. Tenho alguns hábitos já hámuitos anos, como acordar cedo, trabalho o dia todo, saio daqui e vou para a academia. Hoje moramos na mesma casa, eu, minha filha de 24 anos e mais três pessoas consideradas do grupo de risco osmeus pais e minha ava³. Por isso, adotei os cuidados ba¡sicos para esse momento, como tirar os cala§ados antes de entrar em casa, tomar banho logo que chego, separar as roupas com que trabalhei para lavar imediatamente, dar um beijo nos cabelos da minha ma£e e do meu pai, higienizar as ma£os a todo momento e mesmo dentro de casa manter o distanciamento. Mas não uso ma¡scara em casa, e isso desde o começo, pois aqui uso sistematicamente. Entretanto algo que me ajudou a manter o equila­brio diante desse cena¡rio foi o autocuidado dia¡rio, fa­sico e psicola³gico. Para mim éuma questãomuito forte: meu equila­brio global tem relação direta com a minha imunidade. Nãodou sorte para o azar, então o que eu posso fazer para me cuidar, eu faa§o. Pratico atividades físicas desde os seis anos de idade, e procurei nunca perder esse ha¡bito. Busco me informar sobre alimentação sauda¡vel, medicamentos alternativos e naturais. Além disso, passei a meditar e, nas horas de lazer, faa§o o que gosto normalmente, sem exageros ou extremismos. Ter uma mente sauda¡vel faz com que vocêconsiga enfrentar momentos de crise muito melhor. Por outro lado, entendo que sou uma agente multiplicadora, então se eu mobilizar muito minha vida a ponto de me segregar, tiro de mim e dos outros a oportunidade de compartilhar o conhecimento adquirido nessa vivaªncia, de modo a incentivar as outras pessoas a seguir em frente e adotar os melhores caminhos para lidar com esse momento.

Quais atividades físicas vocêpratica?

J.A. Faa§o crossfit hátrês anos, mas já pratiquei diversos tipos de atividade física. Fiz dança quando pequena, comea§ando com balanã, jazz, natação, boxe chinaªs. O crossfit éuma atividade coletiva que me ajuda muito a superar desafios. Tem elementos que estimulam nossa força, trazendo a  tona um vigor que por vezes nosmulheres achamos que não temos. Meus pais introduziram o esporte na minha vida (e na do meu irmão) muito cedo, o que trouxe disciplina e tranquilidade para lidar com a vida.

De que forma vocêpercebe a relação entre o que passa no hospital e a realidade externa?

J.A. A covid-19 éuma doença de mudança de ha¡bitos, em diversas frentes, mas principalmente no que se refere no olhar de um ser humano em relação ao outro. Responsabilidade, como me comporto interfere na vida do outro. Mesmo quando vocêtem uma manifestação leve da doena§a, ainda assim édesconforta¡vel. Imagine o que significa perder o olfato e paladar para quem ama comer ou éapaixonado por um perfume? a‰ como se vocênão estivesse mais vivo. Nos casos graves, pacientes jovens va£o embora em três dias! Por trabalhar na terapia intensiva, me acostumei com situações extremas, e ainda assim tem sido angustiante ver o que vejo. Temos perdido pessoas numa velocidade muito grande, temos muitas altas, mas a s custas de muito sofrimento.

 

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