Humanidades

Mistanãrios da história: o professor Caltech ajuda a resolver o desastre de Hindenburg
Na noite de 6 de maio de 1937, a maior aeronave já construa­da pela humanidade, um exemplo impressionante de proeza tecnologiica, deslizou pelos canãus tempestuosos de Nova Jersey e se preparou para pousar...
Por Emily Velasco - 21/05/2021


Cortesia

Na noite de 6 de maio de 1937, a maior aeronave já construa­da pela humanidade, um exemplo impressionante de proeza tecnologiica, deslizou pelos canãus tempestuosos de Nova Jersey e se preparou para pousar. O diriga­vel Hindenburg estava se aproximando do fim de uma viagem de três dias atravanãs do Oceano Atla¢ntico a partir de Frankfurt, Alemanha. Foi um espeta¡culo e uma nota­cia. Espectadores e equipes de nota­cias se reuniram para assistir ao toque do gigante de 250 metros.

E então, em um meio minuto horra­vel, tudo acabou. As chamas saa­ram da pele do diriga­vel, alimentadas pelo gás hidrogaªnio inflama¡vel que o manteve no ar, e consumiram toda a estrutura, acabando com 36 vidas.

Quatro imagens em preto e branco das chamas avaçando enquanto consumiam
o Hindenburg. Quatro frames do noticia¡rio do desastre
Crédito: William Deeke / Pathe

O navio, já famoso antes de seu desaparecimento, ficou gravado na memória do mundo. O desastre, apesar de ter acontecido háquase cem anos atrás, continua sendo uma das traganãdias ica´nicas do século 20, ao lado de outros acidentes que capturaram a imaginação do paºblico, como o naufra¡gio do Titanic , a explosão do Challenger e o colapso do nuclear de Chernobyl reator.

Talvez uma das razões pelas quais os momentos finais e ardentes do Hindenburg continuaram sendo uma fonte de fasca­nio seja o mistério duradouro que os cerca. Nas últimas oito décadas, as pessoas especularam sobre como o diriga­vel poderia ter sido completamente devorado pelas chamas em menos de um minuto.

Agora, NOVA , o popular programa de televisão de ciência da PBS, estãodando uma nova olhada no desastre. Seus produtores recorreram a Konstantinos Giapis , professor de engenharia química da Caltech , para ajuda¡-los a recriar os últimos momentos do navio e desvendar seus segredos.

Giapis não éum especialista em zepelins ou acidentes de aeronaves, nem éum cientista forense. Ele, no entanto, tem uma vasta experiência no estudo de como as cargas elanãtricas se movem nassuperfÍcies e como podem atingir na­veis suficientes para ionizar o ar e causar faa­scas. Essa experiência se provaria fortuita em sua busca pelo que causou o desastre e, como se viu, ele acabaria explorando muitos dos mesmos fena´menos que estuda em seu trabalho mais ta­pico sobre transistores e outros dispositivos microeletra´nicos.

Ainda assim, ele ficou canãtico quando abordado pelos produtores do NOVA .

"Minha primeira reação foi: 'Quem se importa? Isso aconteceu 84 anos atrás. Por que alguém iria querer descobrir?'", Diz ele.

Mas quanto mais ele pensava sobre isso, mais o problema o intrigava.

"Minha segunda reação foi: 'Por que a causa não éconhecida? Por que não foi resolvida durante todo esse tempo?'"

Desenterrando o passado

Giapis começou a pesquisar os registros hista³ricos do acidente e logo percebeu que ninguanãm havia feito experimentos para tentar descobrir o que realmente havia acontecido. Na verdade, quase todas as evidaªncias queimaram no incaªndio. Tudo o que existia era muita especulação.

Uma fotografia em tons de sanãpia em preto e branco do Hindenburg pairando sobre
um campo.  Os espectadores reunidos abaixo são diminua­dos por seu tamanho.
O Hindenburg, visto em seu primeiro voo em 1936.
Crédito: Wikimedia Commons

O que sempre se soube éque o zepelim, projetado pela Zeppelin Company, uma empresa alema£ conhecida por seus grandes e luxuosos diriga­veis, continha 7 milhões de panãs caºbicos de hidrogaªnio inflama¡vel. Imagine um bala£o em forma de charuto do tamanho de um arranha-canãu cheio de gás explosivo. Combine esse hidrogaªnio com o oxigaªnio do ar e uma fonte de ignição e vocêtera¡ "literalmente uma bomba", diz Giapis.

A questão-chave, mas hámuito sem resposta, anã: como o fogo foi desencadeado? Alguns especialistas teorizaram que os motores do Hindenburg , que queimavam a³leo diesel, foram os responsa¡veis. Outros sugeriram que a cata¡strofe foi um ato de sabotagem, com o objetivo de fazer o governo da Alemanha nazista ficar mal.

As teorias mais confia¡veis, no entanto, focalizam a descarga eletrosta¡tica: o mesmo choque que vocêrecebe quando esfrega os panãs com meia no carpete e toca em algo meta¡lico. Giapis achou que era o mais prova¡vel. A ideia ba¡sica éque, a  medida que o Hindenburg se movia na atmosfera tempestuosa, sua pele acumulava uma carga esta¡tica. E assim como a sacudida que seu dedo recebe quando vocêalcana§a uma maa§aneta, o Hindenburg pode ter sido eletrocutado quando aterrissou em Nova Jersey. Se o hidrogaªnio da nave estivesse vazando, como se acredita, o zap poderia ter incendiado o gás.

No entanto, havia lacunas nessa teoria. Primeiro, o zepelim não pegou fogo no momento em que largou as cordas de amarração no cha£o, como seria de se esperar se as cordas completassem o circuito necessa¡rio para criar uma faa­sca. Em segundo lugar, as chances de uma única faa­sca acontecer exatamente no mesmo local do Hindenburg onde o hidrogaªnio estava vazando pareciam muito pequenas.

Para chegar ao fundo do mistanãrio, Giapis teria que resolver esses dois problemas.

'Modelando' o problema

Agora totalmente integrado com o projeto, Giapis primeiro construiu um modelo de uma parte dasuperfÍcie externa do zepelim em seu laboratório no campus da Caltech. Essa configuração consistia em um tecido de algoda£o semelhante ao original, esticado com cordas de fibra natural sobre um andaime de liga de aluma­nio e impregnado com várias camadas de dope Cellon, que éuma tinta contendo um pola­mero, aglutinantes químicos e flocos de aluma­nio. Isso acabou sendo mais complexo do que Giapis esperava, porque alguns dos detalhes da construção do zepelim foram perdidos no tempo e outros eram segredos comerciais guardados de perto pela Companhia Zepelim.

“Encontrei alguns registros hista³ricos do que havia nessas camadas, mas a composição precisa foi mantida em segredo”, diz ele. "Analisei amostras antigas de pele usando técnicas modernas para obter pistas. No final, tive que criar várias versaµes desse revestimento para o tecido e avaliar suas propriedades elanãtricas."

A pele foi amarrada a  estrutura de aluma­nio da aeronave, mas impedida de toca¡-la por pinos de madeira inseridos entre os dois. A lacuna entre a estrutura e a pele seria fatal para 35 dos 97 indivíduos a bordo do diriga­vel mais um membro da tripulação de solo.

Testemunhas no local afirmaram ter visto uma aura brilhante em partes do navio. Os comitaªs de investigação americanos e alema£es conclua­ram que essa carga significava que a aeronave estava carregada com alta tensão, mas discordaram sobre o mecanismo exato de como isso causou o desastre.

Uma fotografia noturna de uma linha de alta tensão.  Eletricidade suavemente difusa
vaza dassuperfÍcies da linha para o ar. Descarga corona, também conhecida como
incaªndio de Santo Elmo, vista em uma linha de alta tensão.
Crédito: Nitromethane / Wikimedia Commons

O comitaª americano teorizou que o hidrogaªnio foi inflamado por um fena´meno conhecido como descarga corona, ou fogo de Santo Elmo; esse vazamento "suave" de carga de alta tensão de umasuperfÍcie a s vezes ocorre nos mastros de navios no mar ou emsuperfÍcies de aviaµes em voo durante o tempo tempestuoso. Em contraste, o comitaª de investigação alema£o sugeriu que uma faa­sca de alta intensidade, em vez disso, desencadeou a explosão.

Giapis não acreditava que a teoria americana pudesse explicar a ignição.

“Esse brilho difuso ocorre fora do diriga­vel e sua energia émuito baixa”, diz ele. "Geralmente não ésuficiente inflamar o hidrogaªnio." Pensando que a teoria alema£ era mais plausa­vel, ele começou a testa¡-la em seu laboratório.

Enquanto a equipe do NOVA filmava, Giapis carregava seu modelo da pele com uma voltagem elanãtrica consistente com a carga atmosfanãrica em condições de tempestade na elevação do diriga­vel. Em seguida, ele aterrou a estrutura do andaime que havia construa­do.

Nada aconteceu.

Em seguida, ele borrifou uma nanãvoa de águana pele, simulando a chuva leve que caa­a naquela noite de primavera em Nova Jersey. Em instantes, faa­scas altas e poderosas saltaram pela abertura da pele atéa moldura, exatamente como o comitaª alema£o havia proposto.

Um resultado inesperado

Em seguida, Giapis precisava determinar por que houve um atraso de quatro minutos entre o momento em que o Hindenburg foi atracado ao solo e o momento em que pegou fogo. Os membros do comitaª de investigação alema£o propuseram que o atraso poderia ser explicado pela chuva fraca. A teoria deles era que as cordas são começam a conduzir eletricidade depois de serem molhadas e, portanto, a estrutura são ficou aterrada quando as cordas ficaram suficientemente aºmidas.

Em seu laboratório, Giapis suspendeu uma seção de corda grande muito semelhante a s cordas de amarração usadas no Hindenburg e aplicou alta tensão a ela.

Para sua surpresa, a corda era condutora mesmo quando seca. Anteriormente, pensava-se que a eletricidade não fluiria atravanãs de corda seca, que era um isolante.

"Os alema£es disseram que a corda tornou-se condutora após quatro minutos na chuva, mas meu experimento mostrou que a corda era condutora o suficiente para aterrar a estrutura no momento em que caiu. E isso significava que a teoria se desfez, porque a faa­sca deveria ter ocorrido muito mais cedo. Pelas minhas estimativas, leva de 10 a 15 segundos para aterrar a estrutura com uma corda seca, não quatro minutos. "

Giapis ficou angustiado sobre como explicar essa discrepa¢ncia. Por causa de atrasos devido ao desligamento do COVID-19, ele não conseguiu executar o teste de condutividade do cabo apenas alguns dias antes da filmagem. "Esta¡vamos prestes a comea§ar a filmar e minha teoria tinha um buraco enorme. Tive que pensar muito e rápido." E então, apenas dois dias antes da filmagem, a resposta veio a ele: Depois que o navio foi encalhado, ele ficou mais eletricamente carregado.

Antes que as cordas de amarração fizessem conexão com o solo, o Hindenburg coletou uma carga positiva. No entanto, isso continuou apenas atécerto ponto; de fato, a  medida que a pele ficava mais carregada positivamente, ela também repelia com mais força qualquer carga adicional de coleta.

Então, quando as cordas de amarração foram largadas, os elanãtrons dasuperfÍcie da Terra moveram-se para a estrutura, dando a  nave uma pele com carga positiva e uma estrutura com carga negativa.

Assim como a extremidade norte de uma barra magnanãtica seráatraa­da para a extremidade sul de outra barra magnanãtica, aquele quadro com carga negativa começou a puxar mais carga positiva da atmosfera tempestuosa para a pele do navio. Em outras palavras, ao aterrar a estrutura com as cordas de amarração, a tripulação de desembarque inadvertidamente abriu mais "Espaço" para carga positiva a ser reunida no navio, preparando o cena¡rio para o desastre.

"Ao aterrar a estrutura, vocêforma um capacitor - um dos dispositivos elanãtricos mais simples para armazenar eletricidade - e isso significa que vocêpode acumular mais carga de fora", diz Giapis. "Fiz alguns ca¡lculos e descobri que levaria quatro minutos para carregar um capacitor desse tamanho!"

Com a nave agora atuando como um capacitor gigante, ela poderia armazenar energia elanãtrica suficiente para produzir as poderosas faa­scas necessa¡rias para acender o gás hidrogaªnio - que, com base em relatos de testemunhas oculares, pode ter vazado da parte traseira da nave perto de sua cauda.

Essa teoria também poderia ajudar a explicar uma questãoque intrigou Giapis desde o ina­cio: como uma faa­sca ocorreu no local certo para acender o vazamento de hidrogaªnio?

"O hidrogaªnio estava vazando em um local especa­fico nesta coisa enorme. Se houvesse uma faa­sca em algum outro lugar da nave, não havia como vocêcausar um vazamento a centenas de metros de distância. A carga poderia se mover sobre a pele molhada em curtas distâncias, mas fazendo isso da frente do diriga­vel atéa parte de trás émais difa­cil ", diz ele. "Então, como a faa­sca encontrou esse vazamento?"

Qualquer lugar onde uma parte da estrutura estivesse próxima a  pele teria formado um capacitor, e havia centenas desses lugares por toda a nave, diz Giapis.

"Isso significa que o capacitor gigante era na verdade composto de vários capacitores menores, cada um capaz de criar sua própria faa­sca. Portanto, acredito que várias faa­scas ocorreram em toda a nave, incluindo onde ocorreu o vazamento", diz ele.

Ciência, mas faz disso entretenimento

A ciência em um ambiente acadêmico tende a seguir uma fa³rmula bastante padra£o: identifique um ta³pico para estudar, encontre financiamento, conduza a pesquisa, escreva um artigo sobre as descobertas e seja publicado em um peria³dico com revisão por pares.

Fazer experimentos para um programa de televisão de ciência popular émuito diferente disso, mas, em alguns aspectos, também existem semelhanças, diz Giapis.

“Isso éentretenimento, mas da minha perspectiva, éum experimento cienta­fico, e eu queria acertar os números e fazer a história certa”, diz ele.

O que ele não percebeu no ina­cio, quando concordou em trabalhar com a NOVA, foi que o programa tem sua própria forma de revisão por pares. Para este episãodio, os produtores da NOVA pediram a Andy Ingersoll, professor de ciência planeta¡ria da Caltech e membro das equipes cienta­ficas de várias missaµes de pesquisa da NASA, incluindo Voyager e Cassini, para revisar o trabalho de Giapis.

"a‰ um pequeno problema de física agrada¡vel e foi um prazer ter Kostas explicando-o para mim", diz Ingersoll.

E Giapis disse que gostou de trabalhar nisso.

“Foi uma história muito interessante. Requer experimentação. Requer reflexa£o. Requer pera­cia, explicando a linha do tempo dos eventos”, diz ele.

E agora ele diz que entende por que as pessoas ainda estãotão fascinadas pelo Hindenburg , quase 100 anos após sua viagem final e fata­dica.

"Que aparição deve ter sido de se ver. As pessoas ficaram hipnotizadas por ela", diz ele. "Foi uma das maravilhas do mundo e o melhor de sua anãpoca. Era um meio de transporte incra­vel, um hotel voador para os mais ricos dos ricos. E foi o primeiro grande desastre aanãreo transmitido pela televisão que as pessoas assistiram em todo o mundo."

 

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