Humanidades

Cem anos de sabedoria e complexidades
Um dos maiores pensadores contempora¢neos, o francaªs Edgar Morin completa um século de vida. E comemora lana§ando um novo livro
Por Marcello Rollemberg - 09/07/2021


O pensador francaªs Edgar Morin: “A palavra ‘fila³sofo’ talvez me conviesse bem, mas hoje a filosofia, no geral, se fechou em si mesma e a minha filosofia éuma filosofia que observa o mundo, os acontecimentos” osFoto: Reprodução
 
“A vida écurta, a arte élonga”, popularizou o poeta romano Saªneca, em um aforismo que venceu os séculos. Ou seja, a arte permanece mesmo quando seu autor já tiver cruzado a fronteira entre o terreno e o etanãreo. O sonho de todos, contudo, éque a arte oscultura, consciência, criação, daª-se o nome que quiser osacompanhe pari passu o nosso caminhar, com a existaªncia se alongando ao ponto de fazer com que as linhas paralelas que acompanham criação e vida se toquem, mais do que se tangenciem. a‰ uma quimera? Para ainda alguns poucos, não, com a arte perene se confundindo com uma vida longa e criativa. Para ficarmos em apenas dois exemplos: o cineasta portuguaªs Manoel de Oliveira viveu atéos 107 anos, ativa­ssimo e trabalhando atéo fim em três projetos inconclusos. E o arquiteto Oscar Niemeyer trabalhou em seu escrita³rio quase atéo fim, a s vanãsperas de completar 105 anos. A esses, some-se agora talvez um paradigma dessa longevidade aliada a  extrema lucidez nesses tempos estranhos: o socia³logo e fila³sofo francaªs Edgar Morin, criador da teoria do “pensamento complexo”, que neste dia 8 completa um século de vida. E como ele estãocomemorando essa marca centena¡ria? Lana§ando mais um livro, que se soma aos 70 que ele publicou no decorrer de sua prola­fica vida. Em Lea§ons d’un sia¨cle de vie (Lições de um século de vida, em tradução literal), o pensador da transdisciplinaridade recorda etapas cruciais de sua vida, destaca os erros porventura cometidos, a dificuldade de compreender o presente e a necessidade do exerca­cio da autocra­tica para a vida em sociedade. Um longo e essencial inventa¡rio de cicatrizes e realizações.

O novo livro de Edgar Morin osFoto: Divulgação

Segundo Morin, como destaca o site da Radio France International (RFI), uma das grandes lições de sua vida foi deixar de acreditar na sustentabilidade do presente, na continuidade e na previsibilidade do futuro. “A história humana érelativamente inteliga­vel a posteriori, mas sempre imprevisível a priori”, escreve ele em seu novo livro. E diante dessa imprevisibilidade do presente, o pensador destaca, éfa¡cil cometer erros. Ele relaciona pelo menos dois que teria cometido ao longo de sua trajeta³ria pola­tica e intelectual: seu pacifismo antes da Segunda Guerra Mundial, que o impediu de enxergar a verdadeira natureza do nazismo osele depois consertaria esse equa­voco, sendo parte atuante da Resistaªncia Francesa, onde adotou o codinome “Morin”, que após a guerra o acompanharia para sempre, deixando de lado o sobrenome familiar judeu sefardita Nahoum. O outro foi sua crena§a no sistema sovianãtico, mais tarde abandonada. “Minha estadia de seis anos no universo stalinista me educou sobre os poderes da ilusão, do erro e da mentira história”, relembra ele em Lea§ons d’un sia¨cle de vie.

Mas, entre erros e acertos, na tabela de somas e danãbitos, Edgar Morin acertou muito mais. A conta final étotalmente favora¡vel a ele ose sua obra e sua história pessoal e intelectual estãoaa­ para provar. Uma obra, frise-se, monumental, não são na quantidade de livros publicados, mas principalmente osclaro osna qualidade e na importa¢ncia das ideias que ele estabeleceu.

“a‰ impossí­vel dar conta da importa¢ncia de suas contribuições cienta­ficas, filosãoficas, antropola³gicas, sociola³gicas, pedaga³gicas, mas, sobretudo, epistemola³gicas”, escreveu em artigo recente no jornal Valor Econa´mico o professor saªnior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e colunista da Ra¡dio USP JoséEli da Veiga. Em seu texto, Veiga faz referaªncia aos seis volumes de O Manãtodo, talvez a obra maior de Morin, que trata “da natureza da vida, das ideias, da humanidade e da anãtica”. Aceitando a tortuosidade em se vencer as “difa­ceis 2.500 paginas” dos volumes, o professor aponta um outro caminho para iniciantes dispostos a “mergulhos mais profundos”: Meu Caminho, publicado pela Bertrand Brasil em 2010. “Nãohámelhor introdução a  monumental obra de Morin do que estas treze entrevistas, concedidas em 2008, a  jornalista Djanãnane Tager. Em linguagem coloquial, estãoreala§adas suas contribuições sociola³gicas, os estudos de física e biologia que o levaram a  teoria da complexidade, a justificativa da escolha do termo ‘manãtodo’, sua maneira de analisar o estado do mundo”, assinala JoséEli da Veiga em seu artigo.

Complexidades, educação e comunicação 

Por tantas contribuições fundamentais em vários campos do conhecimento, Edgar Morin fez ose ainda faz osda transdisciplinaridade seu campo fanãrtil de ação e reflexa£o. Nãoéexagero chama¡-lo de principal pensador ocidental contempora¢neo. No campo da educação, por exemplo, ele foi um dos primeiros a sugerir uma reforma de paradigmas, questionando o ensino meramente disciplinar e pautado em conteaºdos técnicos. Para ele, o que importa éaplicar o conhecimento de maneira cra­tica. Em entrevista publicada no jornal portuguaªs O Paºblico, em 2009, por exemplo, ele defendeu uma “reforma radical” no ensino para acabar com o que ele chamou de “hiperespecialização”.

“Apenas com esta mudança de paradigmas no ensino as pessoas sera£o capazes de compreender os problemas fundamentais da humanidade, cada vez mais complexos e globais”, afirmou o autor de Os Sete Saberes Necessa¡rios a  Educação do Futuro, que criticou o fato de nas escolas e universidades não existir “um ensino sobre o pra³prio saber”, sobre “os enganos, ilusaµes e erros que partem do pra³prio conhecimento”. Para Morin, o ideal seria criar “cursos  de conhecimento sobre o pra³prio conhecimento”. “Conhecer apenas fragmentos desagregados da realidade faz de noscegos e impede-nos de enfrentar e compreender problemas fundamentais do nosso mundo enquanto humanos e cidada£os, e isto éuma ameaça a  nossa sobrevivaªncia”, avaliou ele, com uma visão de humanismo que estãodifa­cil de se encontrar nos dias de hoje.

Em outra entrevista, esta para o programa Milaªnio, da GloboNews, Edgar Morin deu mais pistas da sua forma de pensar o mundosensívele esclareceu, para quem ainda não tinha compreendido, sua teoria do pensamento complexo. “A traganãdia do nosso sistema de conhecimento atual éque ele compartilha tanto os conhecimentos que a gente não consegue se fazer essas perguntas. Se perguntarmos ‘o que éser humano?’, não teremos respostas, porque as diferentes respostas estãodispersas”, afirmou ele. “E, no fundo, éisso que chamo de pensamento complexo, um pensamento que reaºne conhecimentos separados. O objetivo do ensino deve ser ensinar a viver. Viver não ésão se adaptar ao mundo moderno. Viver quer dizer como, efetivamente, não somente tratar questões essenciais, mas como viver na nossa civilização, como viver na sociedade de consumo”, acrescentou o pensador na entrevista ospara também apontar seu olhar para um outro problema dos tempos atuais: informação demais, conhecimento de menos.

“a‰ preciso ensinar não são a utilizar a internet, mas a conhecer o mundo da internet. a‰ preciso ensinar a saber como éselecionada a informação na ma­dia, pois a informação sempre passa por uma seleção”, afirmou ele. “Informação não éconhecimento. Conhecimento éa organização das informações”, esclareceu Morin, que ainda mantanãm uma conta bastante ativa no Twitter os“a‰ uma forma de me expressar, de expressar ideias que me ocorrem, reações que tenho frente a acontecimentos e de uma forma muito concentrada”, revelou ele a  Folha de S. Paulo em 2019.

Entre tantas áreas pelas quais Morin e suas complexidades trafegaram, talvez a da comunicação seja realmente aquela em que seu olhar tenha se debrua§ado com uma atenção mais especa­fica. Já em 1960, ele fundou na a‰cole de Hautes a‰tudes en Sciences Sociales, em Paris osao lado de Roland Barthes e Georges Friedmann –, o Centro de Estudos de Comunicação de Massa, com a intenção de adotar uma abordagem transdisciplinar do tema. E suas teorias, nesse campo, germinaram osno Brasil, inclusive.

Na Resistaªncia Francesa contra o regime nazista, o pensador francaªs adotou o codinome
“Morin”, que após a guerra o acompanharia para sempre, deixando de lado o
sobrenome familiar judeu sefardita Nahoum osFoto: Reprodução
 
“Edgar Morin sempre teve uma relação particular com a comunicação, desde os seus primeiros escritos na década de 1960 sobre a cultura de massa e o cinema, atéos influentes escritos sobre o imagina¡rio. Mas écomo pensador e crítico da ciência monodisciplinar e fragmentada que atinge uma repercussão que são fez crescer junto aos estudos de comunicação no Brasil”, afirmou ao Jornal da USP a professora saªnior da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Maria Immacolata Vassallo de Lopes. “Tem havido uma singular correspondaªncia da sua teoria da complexidade com o pensamento transdisciplinar, que éa marca da comunicação em torno dos princa­pios da dialogia, das interações e das interligações. A possibilidade de que a comunicação aproveite positivamente as reflexões de Morin fazem da ECA um centro irradiador de suas obras, não somente porque quebram e abrem as disciplinas, mas também porque as transbordam, estabelecendo relações cada vez mais densas entre as ciências exatas e ciências sociais e humanidades”, atesta a professora.

a‰ por este caminho, apontando “transbordamentos” e interconexões no pensamento de Edgar Morin no campo das ciências humanas ose da comunicação, como extensão –, que acompanha a também professora saªnior da ECA Mayra Rodrigues Gomes. “Ao entender a comunicação como processo que realiza o tra¢nsito interpessoal de informações, ideias, opiniaµes, não podemos dissocia¡-la das insta¢ncias que ela costura. Ela invoca necessariamente saberes de diversas naturezas que brotam em diferentes campos do conhecimento, incluindo técnicas e manãtodos particulares”, contextualiza a professora. “Edgar Morin trouxe hávárias décadas a concepção do ‘paradigma da complexidade’, com a qual criou um instrumental de trabalho que leva em conta a natureza interdisciplinar da comunicação, a complexidade das sociedades contempora¢neas, a diluição das ficta­cias oposições entre razãoe mito, ciência e arte, real e imagina¡rio.”

Mas diante de tantas teorias, de tantos olhares trans e interdisciplinares ose com tantos anos de vida e sabedoria –, como seráque Edgar Morin se definiria? Falou-se la¡ no começo deste texto que ele ésocia³logo e fila³sofo. Seria reducionismo? “A melhor definição seria não ter definição. De se bastar. A palavra ‘fila³sofo’ talvez me conviesse bem, mas hoje a filosofia, no geral, se fechou em si mesma e a minha filosofia éuma filosofia que observa o mundo, os acontecimentos. Sou muito marginal, quer dizer, sou marginal em todas essas áreas. Então, sou aquele que querem que eu seja.”

 

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