Humanidades

100 Anos de Paulo Freire, segundo a ex-aluna Debora Mazza
Freire ingressou na Unicamp em 1981, logo após seu retorno do exa­lio, e aqui permaneceu até1991. Em suas aulas, lembra Debora, o professor reunia diversos grupos acadaªmicos e membros de movimentos sociais, que enchiam o audita³rio
Por Liana Coll - 18/09/2021


Patrono da Educação brasileira, Paulo Freire completaria 100 anos em setembro de 2021

Ha¡ 100 anos, no dia 19 de setembro de 1921, nascia no Recife Paulo Freire. Patrono da Educação Brasileira, ele éum dos intelectuais mais reconhecidos no mundo. Educador, fila³sofo, responsável por um consagrado manãtodo de alfabetização de adultos e engajado na construção de uma sociedade mais justa, Paulo Freire produziu obras que transcendem sua área e impactam diversos campos do conhecimento. Concebendo a educação como “ prática da liberdade”, como escreveu em A pedagogia do Oprimido, destacou a importa¢ncia de um conhecimento produzido em conjunto, em uma relação diala³gica. Como afirmou, não existe conhecimento que émais e conhecimento que émenos. A trajeta³ria de Paulo Freire éum caminho de maºltiplas vivaªncias, e seu trabalho acompanha, desde o ina­cio, uma reflexa£o sobre o contexto social e pola­tico. Formou-se em Direito na década de 1940, mas logo começou a lecionar la­ngua portuguesa em escolas de segundo grau. Nos anos 1960, tornou-se professor na antiga Universidade Federal do Recife (hoje Universidade Federal do Pernambuco), onde foi diretor do Departamento de Extensaµes Culturais. Iniciou ali as experiências de alfabetização de adultos, embria£o do chamado Manãtodo Paulo Freire. O projeto chamou a atenção de governos locais e também do governo Joa£o Goulart, que o convidou para elaborar o Plano Nacional de Alfabetização.

Em 1964, com o golpe militar, Freire entrou na mira da ditadura. Foi levado a inquanãrito diversas vezes, acusado de subversão e mantido preso por 72 dias. Liberado, mas com o passaporte apreendido, pede asilo pola­tico. Entre 1964 e 1980 passou pela Bola­via, Chile, Estados Unidos, Sua­a§a e algunspaíses africanos. Trabalhou com alfabetização junto a camponeses, deu aula na Universidade de Harvard, atuou junto ao Conselho Mundial de Igrejas, assessorou governos depaíses africanos e foi ativo contra o regime do apartheid na áfrica do Sul. 

“Em todas essas experiências, ele se vincula a formas de existaªncia mais solida¡rias, emancipata³rias e menos consumistas, menos competitivas, menos capitalistas. Acho que essa éa sua mensagem, desde a Pedagogia do Oprimido atéa Pedagogia da Indignação”, avalia a docente da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, Debora Mazza, que foi sua aluna no período em que Freire foi professor na mesma Faculdade. 

Freire ingressou na Unicamp em 1981, logo após seu retorno do exa­lio, e aqui permaneceu até1991. Em suas aulas, lembra Debora, o professor reunia diversos grupos acadaªmicos e membros de movimentos sociais, que enchiam o audita³rio. “Nas aulas ele exercitava, com leveza, o que chamava de ca­rculo de cultura, ou seja, a convicção de que todos ali tinham algo a aprender e algo a ensinar”, lembra a professora.

Para Debora, a notoriedade da obra de Paulo Freire deve ser entendida em um contexto de efervescaªncia social e disputa por projetos de sociedade. Questionando as relações assimanãtricas e hiera¡rquicas entre alunos e professores, defendendo a consciência pola­tica como parte de uma educação emancipadora, Paulo Freire segue aclamado e atacado. No momento atual, frisa a professora, marcado por a³dio de classe e intensa polarização pola­tica, éimportante lembrar sua mensagem: o que nos enriquece éa convivaªncia entre desiguais e diferentes. 

Em oposição a  ideia de uma educação para poucos, defendida, por exemplo, pelo atual Ministro da Educação, Paulo Freire indicou a necessidade de uma educação pública que acolha a todos e que se fortalea§a com a diversidade. “Paulo entendia que quanto mais a universidade se abrisse para a diversidade dos grupos sociais que compõem o povo brasileiro, mais ela se potenciaria, em contraste com certa visão liberal, elitista e meritocra¡tica que a vaª como restrita aos melhores”, aponta Debora. 

Para entender mais sobre a obra, as vivaªncias e as contribuições de Paulo Freire, entrevistamos a professora Debora Mazza. Confira abaixo:

A obra e o trabalho de Paulo Freire atravessam não são o campo da educação, mas diversas outras áreas do conhecimento. Que caracteri­sticas do seu legado o fizeram ter tanto impacto e o tornaram mundialmente reconhecido? Como sua produção e suas ações acompanham o contexto hista³rico em que se situam?

Paulo Freire começou a atuar no campo da educação nas décadas de 1950 e 1960. Foram décadas importantes no cena¡rio nacional, latino-americano e internacional. Vivia-se o período pa³s-Guerra, que dividiu o mundo em dois grandes blocos, o bloco oriental, vinculado a um projeto socialista, e o bloco ocidental, alinhado a  hegemonia norte-americana, em um modelo capitalista. Nesse momento, as grandes potaªncias disputavam projetos de reconstrução nacional segundo diferentes concepções das relações entre Estado, sociedade e mercado. A Aliana§a para o Progresso, por exemplo, drenava investimentos de grandes agaªncias internacionais, como a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), com a finalidade de investir no Brasil e demaispaíses da Amanãrica Latina visando o alinhamento a um projeto capitalista. Eles tinham que investir em projetos de combate a  pobreza e a  desigualdade e desenvolver tanto a economia quanto a sociedade.

a‰ no cena¡rio da Guerra Fria, entre as décadas de 1950 e 1960, que Paulo faz seus primeiros ensaios de alfabetização de adultos com os ca­rculos de cultura em Recife. A experiência, conhecida como manãtodo de alfabetização de adultos Paulo Freire, chamou a atenção de lideres regionais, nacionais e norte-americanos, que entendiam que ser possí­vel investir no progresso econa´mico tendo mais da metade da população ignorando as técnicas rudimentares da leitura, da escrita e das quatro operações. a‰ nesse cena¡rio, em que a educação épercebida como uma esfera relevante, que Paulo Freire e seu trabalho ganham destaque, primeiro regionalmente, depois nacionalmente, quando foi convidado para elaborar o Plano Nacional de Alfabetização de Adultos no governo Joa£o Goulart, e depois internacionalmente, no exa­lio. 

Outras experiências importantes ocorreram de modo concomitante, como a Revolução Cubana, os movimentos de libertação nacional das ex-cola´nias, as revoltas estudantis de 1968... As ideias de Paulo Freire e seu trabalho alcana§am visibilidade internacional na resistência a  guerra, ao capital, e em defesa dos oprimidos.

a‰ em tal contexto que surge sua obra, laureada por alguns, perseguida por outros, e apropriada por várias áreas do conhecimento e da intervenção social. Ela éutilizada por economistas, socia³logos, antropa³logos, jornalistas, fila³sofos, tea³logos, pelo serviço social, por movimentos sociais e partidos pola­ticos, pelos sindicatos, e pelo direito de rua, além das áreas da educação escolar não escolar. Sem entender esse cena¡rio de efervescaªncia, de disputas narrativas e de projetos pola­ticos, não se entende a visibilidade, a notoriedade e as cra­ticas que Paulo recebeu e ainda recebe de setores ultraconservadores e ultraliberais.

Vocaª era aluna quando Paulo Freire foi professor na Unicamp, no pa³s-exa­lio. Como as ideias dele eram recebidas na academia e como impactaram o campo da educação? Se possí­vel, conte um pouco da sua experiência como aluna. 

A Pedagogia do Oprimido ésistematizada no exa­lio chileno, em 1968, momento em que a universidade no Brasil e no mundo se apresentava como uma instituição hiera¡rquica e elitizada. A obra de Paulo Freire comea§a quebrando essa assimetria e defendendo a relação entre professores e alunos como uma relação entre humanidades emancipadas, recusando assimetrias de classe, de manãrito e poder, e privilegiando a maior ou menor proximidade com os conhecimentos em pauta. Isso causou um tumulto, particularmente com a leitura europeia da obra, mas não são. Desde o princa­pio, as ideias de Paulo Freire são polaªmicas. Era uma pessoa respeitosa, carisma¡tica e acolhedora nas relações pessoais, mas suas posições abalavam as hierarquias meritocra¡ticas e a visão liberal de poder, assentadas em uma visão autorita¡ria e patriarcal, e na desigualdade entre grupos e classes, valores que reinavam na década de 1960.

Ele foi professor da Faculdade de Educação da Unicamp de 1981 a 1991. Suas aulas eram ministradas em uma grande sala, em frente da reitoria, que ficava abarrotada. Elas contavam com pessoas de diferentes origens - estudantes de graduação e pós-graduação que o liam e adotavam suas ideias, pesquisadores que tentavam seguir sua filosofia de trabalho junto a s comunidades em que atuavam. Havia ainda os cra­ticos que vinham identificar inconsistaªncias nas proposições de Paulo. Grupos dissidentes vinham disputar a narrativa pola­tica, além de grupos religiosos ou daqueles vinculados aos movimentos sociais, aos sindicatos, aos partidos pola­ticos, a  educação popular, grupos que buscavam uma relação direta com um autor que conheciam somente pela leitura.

Nessas ocasiaµes, ele mantinha uma posição de escuta e se empenhava em não confundir as cra­ticas a s suas ideias com cra­ticas a  sua pessoa. Entendia que elas faziam parte de uma disputa narrativa travada no campo pedaga³gico. Era uma disputa pola­tica, não uma ofensa a  pessoa. Ali ele exercitava, com leveza, o que chamava de ca­rculo de cultura, isto anã, a ideia de que todos ali tinham algo a aprender e a ensinar, e que a responsabilidade do professor seria apenas buscar uma aproximação maior, um certo doma­nio do assunto abordado. Mas professor e aluno sempre teriam algo a ensinar e a aprender, pois somos todos humanidades inacabadas. Assim, a aproximação maior do professor com o assunto, o tema, o conteaºdo trabalhado, não lhe confere o direito de submeter ou envergonhar o aluno no processo de ensino. A diferença entre esses dois lugares sociais estãona aproximação tempora¡ria e circunstancial. Paulo Freire não era um populista que defendia que o professor não precisa se preparar e ensinar, ou que o aluno não precisa estudar e aprender. Ele partia de uma visão do ser humano como ser em processo de construção, como potaªncia e não ausaªncia. Nesse sentido, a relação professor e aluno édiala³gica, um convite ao debate, um exerca­cio de aproximação e distanciamento acerca de um tema, assunto, conteaºdo ou curra­culo.

Para ele, a universidade era parte da sociedade, uma parte privilegiada mas não isolada. A universidade não estãoseparada da sociedade e, no caso do Brasil, ela seria parte de uma sociedade desigual, excludente e violenta. Ela éentendida por alguns como um espaço exclusivo, de poucos. Paulo entendia que quanto mais a universidade se abrisse para a diversidade dos grupos sociais que compõem o povo brasileiro, mais ela se potenciaria e se fortaleceria, diferente de uma certa visão liberal, elitista e meritocra¡tica, que a vaª reservada aos melhores, aos mais esforçados, aos mais disciplinados. Como se as condições concretas de existaªncia fossem as mesmas para todos.

Muitos defendem um ensino superior para poucos, como o Ministro da Educação, Milton Ribeiro. Isso éradicalmente contra¡rio ao pensamento diala³gico, democra¡tico e includente de Paulo Freire. Sua perspectiva era de uma universidade que éparte da sociedade, e que pode se democratizar, incluir e trazer para o debate acadêmico as diferentes manifestações culturais dos diferentes grupos que a compõem. Ele se dedicou bastante a  extensão universita¡ria, desde quando foi professor da Universidade Federal do Recife, onde era responsável pelo Servia§o de Extensão. Foi então que ensaiou as primeiras experiências do manãtodo de alfabetização de adultos, primeiro no Recife, depois em Angicos, no Rio Grande do Norte, e logo em Brasa­lia, com o Plano Nacional de Educação, antes de ter seu trabalho abortado pelo golpe de 1964.

Dentre as formulações da educação libertadora, da pedagogia do oprimido, e também no a¢mbito de uma epistemologia pola­tica, uma das concepções de Paulo Freire éde que não existe um conhecimento superior a outro. O que podemos aprender na universidade e na educação em geral com essa concepção?

Paulo foi influenciado por diferentes escolas de pensamento. Em suas obras ecoam o existencialismo de Jean Paul Sartre, o humanismo de Erich Fromm, a teoria cra­tica de Herbert Marcuse, o cristianismo de Candido Mendes, o desenvolvimentismo de alvaro Vieira Pinto, a fenomenologia cientifica de Edmund Husserl, etc. Ele lida com o devir, com a aposta na mudança e transfere um lanãxico religioso para o mundo pedaga³gico: anunciar, profetizar, esperana§ar. Existe um Paulo estruturalista que dialoga com o Iseb, o Cepal, as ciências sociais brasileiras, um Paulo marxista que leu Kosik, Marx, Hegel, Engels... Em toda essa confluaªncia de linhagens épossí­vel identificar uma valorização da potaªncia, da experiência, da relação entre humanidade e realidade produzindo um conhecimento que éenderea§ado, localizado, eivado das condições concretas de existaªncia dos seres sociais. O trabalho de reflexa£o éum esfora§o de imersão na realidade tendo em vista a tomada de consciência para depois emergir prenhe de projetos de transformação de uma realidade que oprime, explora, impede o devir. 

a‰ preciso superar as situações de assujeitamento e expropriação e, atravanãs da conscientização, agir sobre o real para transforma¡-lo, criando mundos que acolham a todos. Esse modo de pensar e agir atravessa todo o trabalho de Paulo Freire, desde seu primeiro texto sistema¡tico, Educação e Atualidade Brasileira, do fim dos anos 1950, atéseus últimos escritos. Obras como Pedagogia do Oprimido, Educação como Pra¡tica da Liberdade, Pedagogia da Indignação, Pedagogia da Autonomia, Pedagogia da Esperana§a investem continuamente em uma perspectiva diala³gica e em um chamamento a  potaªncia do encontro, da convivaªncia entre diferentes e desiguais. No atual momento, de polarização pola­tica, a³dio de classe, violência de grupos que se armam contra a presença do povo no ora§amento do Estado, cabe lembrar que, para ele, éjustamente a convivaªncia entre desiguais e diferentes que nos enriquece, éisso que nos torna potentes.

Em um dos seus trabalhos, vocêaborda a trajeta³ria de Freire durante o período de exa­lio, de 1964 a 1980. Como foi esse percurso e como essa experiência impactou o seu pensamento e trabalho?

Quando ocorreu o golpe militar, Paulo Freire estava em Brasa­lia, elaborando o Plano Nacional de Alfabetização de Adultos junto com Paulo de Tarso. O desafio era expandir para o territa³rio nacional as experiências de erradicação do analfabetismo realizadas no Recife, em Angicos e em outros munica­pios do Rio Grande do Norte. Era experiência dos Ca­rculos de Cultura, uma educação voltada para as classes populares, os oprimidos, com o objetivo de promover a capacidade de ler criticamente o real e, a partir dessa atitude pola­tica, aprender a ler e escrever em uma perspectiva não limitada ao doma­nio de técnicas motoras. Por meio de um processo cultural de assunção de classe, promovia-se uma leitura cra­tica da realidade, que antecede e informa a leitura da palavra. Uma educação que levasse a  conscientização das condições de existaªncia e que se apropriasse da leitura, da escrita e dos rudimentos do ca¡lculo como processos de emancipação.

Ele trabalhava no Ministanãrio da Educação quando foi indiciado pelos militares. Depois de levado a inquanãrito mais de uma vez, decidiu pedir asilo pola­tico. Em 1964 vai a  Bola­via com o propa³sito de trabalhar no governo de Victor Estenssoro, mas um golpe o obriga a fugir para o Chile. Chega nessespaíses como exilado, pois seu passaporte havia sido apreendido pelos militares. No Chile, de 1964 a 1969, trabalha para o Instituto de Reforma Agra¡ria com alfabetização de adultos camponeses assentados. O Chile vivia uma experiência de democracia crista£, no governo de Eduardo Frei. Em 1969, a interferaªncia norte-americana, atravanãs de golpes militares, la¡ chega também. Paulo e familia mudam-se para os Estados Unidos, onde atuara¡ como professor convidado na Universidade de Harvard. Em 1970 transfere-se para Genebra, a convite do Conselho Mundial de Igrejas, em uma assessoria educacional. De 1970 a 1980 assessorou váriospaíses africanos que haviam conquistado a independaªncia e atuou contra o regime do apartheid na áfrica do Sul. Em 1980, com a abertura pola­tica e a recuperação do passaporte, volta finalmente ao Brasil, vivendo em Sa£o Paulo até1997, quando veio a falecer.

O que se pode dizer sobre essa andarilhagem dele pelo mundo?

Sem daºvida, isso o coloca como um exilado pola­tico do governo militar brasileiro. Ele já havia saa­do de Pernambuco, circulado no nordeste e no cena¡rio nacional com o Plano Nacional de Alfabetização, agora sai do provincialismo brasileiro e mergulha nesse oceano da Amanãrica Latina, onde entra em contato com suas muitas linguagens e etnias, com a pobreza, a misanãria e os simbolismos desses povos e de suas organizações pré-capitalistas, ainda presentes nesse universo de muita desigualdade e exploração. Em todas essas experiências, ele se identifica com formas de existaªncia mais solida¡rias e emancipata³rias, e menos consumistas, menos competitivas. Acho que essa ésua mensagem, desde a Pedagogia do Oprimido atéPedagogia da Indignação, livro lana§ado post mortem a partir de manuscritos organizados por sua esposa. Ele se torna cidada£o do mundo e sua obra não cabe nas fronteiras de umpaís. a‰ difa­cil vincular a Pedagogia do Oprimido apenas a s suas experiências no nordeste. Ela também se vincula a s experiências no Chile, na Bola­via, a s revoltas universita¡rias de 1968. Pedagogia do Oprimido édedicado a esses grupos e éprofundamente marcado pelas condições da periferia. Ha¡ ali um pensamento arguto sobre os oprimidos, os que vivem na periferia do sistema, mesmo no primeiro mundo. Nos Estados Unidos, descobriu algo importante sobre o chamado terceiro mundo, categoria então usada - hoje falamos empaíses desenvolvidos, subdesenvolvidos e em processo de desenvolvimento. Ele diz: ‘quando fui para Harvard descobri que existia o terceiro mundo no primeiro mundo'. Percebeu que as condições de vida de vários grupos sociais, dos negros americanos, dos migrantes laborais, eram idaªnticas a s dos grupos marginalizados da Amanãrica Latina. 

Sua obra abrange tema¡ticas cosmopolitas. Os contextos se multiplicam, são muitos territa³rios produzindo exclusaµes e desigualdades. Essa éa grande denaºncia que existe em sua obra e por isso ela alcana§a uma visibilidade nacional e internacional.

Liberdade e emancipação marcam as concepções de educação de Paulo Freire, assim como a politização, a problematização e o dia¡logo. Que lições podemos tirar do pensamento de Freire para o contexto atual, de a³dio ou apatia em relação a  pola­tica, e constrangimentos a  educação e a  pesquisa?

Os constrangimentos, na verdade, não visam a  educação e a  pesquisa. Ele visam somente a  educação pública e a  pesquisa feita em instituições e agaªncias públicas. Nãovemos constrangimentos a  Mackenzie, de onde vem o atual ministro, ou ao Instituto Unibanco, a  Fundação Itaaº. Eles visam a  educação pública e aos pesquisadores que são servidores paºblicos. O que estãoem disputa éa retirada do ora§amento do Estado de servia§os paºblicos que são direitos do cidada£o. O projeto em curso não ésão do governo Bolsonaro, ele já vinha sendo lentamente implementado e diz respeito a  entrada do mercado em todas as esferas da vida social, a  privatização de servia§os que compõem uma sociedade moderna e avana§ada. A visão de Paulo Freire era de resistência, assumindo que háesferas da vida que não são mercadorias, pois remetem ao bem comum, e são extensivas a todos independente da fortuna, da herana§a, do manãrito ou da capacidade de inserção no mercado.

Temos que entender que as disputas atuais, esse a³dio que se constra³i contra bens, equipamentos e servia§os paºblicos, éum a³dio que não tem como objetivo os valores familiares ou religiosos, a solidariedade, a humanidade, a caridade, o amor ao pra³ximo. a‰ uma ideologia que esconde suas reais intenções, que são transformar os direitos do cidada£o em bens de mercado. Por isso visam apenas a  educação, a  pesquisa e a  saúde que participam do ora§amento do Estado, e políticas sociais com a finalidade de construir o bem comum, aquele bem-estar que deve ser estendido a todos.

Paulo Freire também teve uma percepção sobre a importa¢ncia da extensão e da comunicação. Que horizontes ele apontou nesse sentido?

Essa éuma questãomuito importante. Um livro escrito no exa­lio, Comunicação e Extensão, costuma ser apropriado pelos profissionais da comunicação e do direito de rua. Ali ele diz: o ato de estabelecer contatos éum ato que mesmo os animais fazem - quando passeamos com o cachorro, por exemplo. Sa£o esses contatos que a universidade chama de extensão: vocêvai atéum grupo social, deposita ali um monte de conhecimento produzido na universidade e volta sem estabelecer um dia¡logo, uma abertura para as partes envolvidas O livro foi escrito quando ele trabalhava com os camponeses no Chile. Ele visitava esses camponeses acampados em territa³rios que estavam sendo transferidos para eles, tendo em vista a promoção de uma agricultura familiar, sustenta¡vel, comunita¡ria. Ali, leitura e escrita não se limitavam a uma técnica, mas eram entendidas como atos cognitivos, experiências grupais que implicavam a tomada de consciência coletiva. Elas implicavam uma intervenção do real e o empoderamento desses grupos. Ele vai dizer, assim, que uma coisa éestabelecer contatos, outra éter de fato uma comunicação diferente da “extensão banca¡ria” - aquela em que vocêvai e deposita algo no outro, como se o outro fosse são ausaªncia e danãbito e eu fosse são plenitude e cranãdito. a‰ uma visão singular de extensão, de comunicação, que ultrapassa o mero contato com o diferente, e se torna um dia¡logo entre diferentes e entre iguais.

Como Paulo Freire enxergava a conexão entre educação e pola­tica?

O que éa expressão pola­tica? Pola­tica vem de polis, remetendo a  construção da cidade. E o que éa cidade? a‰ o territa³rio em que diferentes e desiguais vivem e convivem. Paulo Freire diz que não existe educador que eduque sem tomar partido. E aqui não me refiro a partido no sentido da legenda. Sempre que desenvolvemos um tema, um conteaºdo, um curra­culo, estãoimplicado um projeto de construção do Estado e da sociedade. E que sociedade queremos? Uma sociedade em que as condições de dignidade sejam atendidas, com o bem-estar social extensivo a todos. a‰ uma questãopola­tico-pedaga³gica. Por isso o movimento “Escola sem Partido” ataca tanto a figura de Paulo Freire, propondo recorrentemente projetos que retiram dele o tí­tulo de Patrono da Educação Brasileira. Paulo Freire falou aqueles absurdos que lhe atribuem? Na£o. Mas ele tem uma visão de educação que éde construção do bem comum. Quais são os grupos que atacam Paulo Freire? Os mesmos que defendem a Escola Sem Partido, que defendem que os valores da familia devem se sobrepor aos valores republicanos, a uma escola laica para as diferentes classes sociais. O homeschooling ataca Paulo Freire porque defende o isolamento das criana§as no ambiente da fama­lia, para que não entrem em contato com os mais pobres. Enfim, são grupos excludentes e elitistas que atacam uma educação pública em que o oprimido seja acolhido, independentemente do seu manãrito e poder econa´mico. Tal concepção de educação como direito e bem comum éinsuporta¡vel para esses grupos, que querem transformar todas as esferas da vida em mercadorias. O homeschooling contraria o projeto republicano. Nãoestou falando de comunismo e socialismo, mas do projeto que estãona nossa constituição, de construção de uma esfera pública, admitindo que algumas áreas da vida social são essenciais para que tenhamos progresso econa´mico com desenvolvimento social. a‰ uma ideia antiga, na verdade liberal, de que não existe progresso econa´mico sem desenvolvimento social. Mas dentro do pensamento liberal háquem entenda que devem ser transformadas em mercadoria todas as esferas da vida social, particularmente quando o sistema vive crises no seu modo de produção e enfrenta a necessidade de regulação. a‰ nesse sistema que vivemos, e édentro dele que precisamos pensar as disputas narrativas e de projetos de sociedade: Muitos dos direitos alcana§ados no capitalismo central não são aferidos nos capitalismos perifanãricos. Precisamos fazer essa leitura para dialogar na construção de uma sociedade republicana, que respeite cidada£os e garanta a todos um espaço na sociedade. Nãoexiste progresso sem inclusão social, não existe progresso econa´mico sem a inserção de todos na ordem social. a‰ essa a ordem que temos. Como faremos para torna¡-la mais includente?

 

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