Humanidades

Utopias medievais retrataram a procura pelo a‰den perdido
“Em Busca do Paraa­so Perdido” mostra como o Ocidente medieval imaginou sociedades perfeitas a partir do cristianismo
Por Luiz Prado - 13/11/2021


Utopia éum termo criado por Thomas More para batizar uma ilha imagina¡ria na qual habitava a sociedade perfeita. Apareceu pela primeira vez em seu livro de 1516 e, desde então, tornou-se o termo definitivo para nomear toda comunidade livre das mazelas sociais e naturais identificadas por seus autores.

Detalhe da capa do livro Em Busca do Paraa­so Perdido:
as Utopias Medievais osFoto: Divulgação

O que o novo livro de Hila¡rio Franco Jaºnior, historiador e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, propaµe éque o termo também pode ser usado para falar de sociedades perfeitas imaginadas muito antes da publicação da obra do pra³prio More. Como éo caso da Idade Manãdia, foco de Em Busca do Paraa­so Perdido: as Utopias Medievais.

“A motivação em estudar as utopias medievais decorre, justamente, do desejo de perceber como a cra­tica ao presente hista³rico gerou fantasias ou colocadas no pra³prio presente, mas em outro Espaço, ou colocadas no pra³prio Espaço, poranãm em outro tempo”, escreve Franco no prefa¡cio da obra.

Conforme o professor aponta no livro, atéhoje os estudos sobre a Idade Manãdia negligenciam um olhar mais atento para as utopias. Parte disso teria a ver com certa recusa em se falar propriamente em utopias anteriores a  obra de More. “Em razãodesse lanãxico tardio, muitos defendem que ‘utopia’ e ‘uta³pico’ são são aplica¡veis ao período posterior a More, argumentando que a Idade Manãdia tinha os olhos mais voltados para o Outro Mundo do que para este, objeto das transformações pretendidas pelo pensamento e pelo sentimento utópicos.”

Outra razãoapontada por Franco para essa resistência envolve argumentos de ordem filosãofica, que tenderiam a ver qualquer utopia de maneira negativa. “Enraizou-se tanto no senso comum como entre certas correntes intelectuais o entendimento de que os sonhos coletivos são digressaµes va£s, quimeras infantis, miragens perigosas”, escreve o historiador. “Acusou-se as utopias de, em nome da busca de uma situação reputada perfeita para a sociedade, terem servido ao longo da história a muitos totalitarismos.”

O professor concorda com parte da cra­tica, mas acredita que limitar-se a ela ésimplificar um objeto complexo. Porque a utopia éfrequentemente tira¢nica em sua manifestação hista³rica, mas sempre, para a alma, um dos maiores exerca­cios de liberdade humana. “Utopia énegação de um presente meda­ocre e sufocante, daa­ ser uma constante hista³rica, presente em todas as anãpocas, inclusive a medieval.”

A utopia e o a‰den

Segundo Hila¡rio Franco Jaºnior, para o Ocidente medieval cristão a situação perfeita já havia existido no ini­cio dos tempos. O problema éque ela tinha sido perdida graças ao pecado original de Ada£o e Eva, que comeram do fruto proibido e foram expulsos do Paraa­so. “Porque a Europa medieval crista£ não via em Ada£o e Eva personagens ma­ticos, e sim hista³ricos, ancestrais de todos os humanos, sua contaminada progenitura espalhada pelos diferentes cantos da Terra não poderia deixar de carregar todas as vicissitudes humanas”, escreve o historiador. “Se o casal primordial tivesse continuado no a‰den, não existiriam diversos povos, idiomas, costumes e religiaµes, não haveria papas, reis, guerreiros, comerciantes, artesãos e camponeses, não ocorreriam fomes, epidemias, invasaµes e guerras.”

Foi assim que o cristianismo medieval estabeleceu a distinção entre dois estados, um anterior ao pecado de Ada£o e Eva, no qual um lugar de dela­cias estava acessa­vel a  humanidade, e um posterior, que exilou o primeiro casal e toda sua descendaªncia no mundo. A situação penosa do exa­lio ostrabalho a¡rduo, dores do parto, doena§as, envelhecimento e morte osnão impediria, entretanto, a humanidade de sonhar com esse mundo anterior de pureza, ordem, justia§a, paz, abunda¢ncia, liberdade, igualdade e fraternidade.

“O que tinha sido realidade no a‰den restava apenas no plano da esperana§a”, escreve Franco. “Por esse motivo, embora a Queda tenha marcado o ini­cio do espaço e do tempo terrenos para o homem, este não deixou de muito especular sobre a localização do a‰den, pois nunca perdeu a memória dele. Desejou-se, buscou-se o espaço do qual o homem havia sido exilado, o espaço por excelaªncia que lhe fora desde então vetado.”

Toda a noção de utopia produzida na Europa medieval, expla­cita ou implicitamente, teria derivado do modelo edaªnico, um local simultaneamente concreto e inacessa­vel, terreno mas dotado de conotações celestes. “Se com a expulsão ele fora perdido pelo homem, contudo não desapareceu, crena§a bastante enraizada e que se estenderia atbem depois de Thomas More”, escreve o professor.

“Imaginou-se suceda¢neos do Paraa­so terreal em variados locais”, prossegue. “Alguns distantes e concretos, como opaís dos bra¢manes, a Anta­lia ou a Terra austral; outros distantes e fantasiosos, como as terras de Preste Joa£o, a ilha das amazonas ou o Eldorado; outros supostamente pra³ximos, como a Gruta do Amor de Tristão e Isolda, a floresta de Robin Hood ou a Siena pintada por Ambrosio Lorenzetti; outros imagina¡rios e de localização imprecisa, como a Cocanha, o reino do Graal ou a ilha da Utopia.”

Como todas as anãpocas, escreve Franco, a Idade Manãdia também sonhou com uma situação ideal que ultrapassasse as insuficiências de sua realidade natural e social. “Chamar tais sonhos coletivos de ‘utopias’ élega­timo, e estuda¡-los, necessa¡rio, pois, como já se disse com justeza, a história faz as utopias e as utopias fazem a história. Como toda sociedade arcaica que, por meio de seus mitos, ritos, festividades e crena§as, colocava-se em constante contato com o mundo supra-humano, de certa forma vivenciando mais o passado e o futuro que as posteriores civilizações industriais, também o Ocidente medieval cristão questionava-se insistentemente sobre seu destino. Por que os primitivos parentes haviam pecado e jogado seus descendentes no mundo?”, conclui Franco.

 

.
.

Leia mais a seguir