Humanidades

Mulheres não deveriam ter que escolher entre maternidade e carreira acadaªmica, afirma embaixadora do Parent in Science na Unicamp
O Parent in Science busca romper com a crena§a de que a maternidade e a paternidade não interferem na carreira
Por Liana Coll - 20/12/2021


Ca¢ndida Pereira da Costa, embaixadora do movimento Parent in Science na Unicamp, junta a sua filha (foto: Jeniffer Amaral)

“Minha vida acadaªmica acabou”, pensou a pesquisadora Ca¢ndida Pereira da Costa, da Faculdade de Engenharia Agra­cola da Unicamp (Feagri), quando teve uma bolsa de pa³s-doutorado rejeitada após um período de atenção total a  maternidade. O requisito do órgão de fomento, de manutenção de atividade acadaªmica nos últimos dois anos, não cabia na realidade de Ca¢ndida, que havia se dedicado integralmente, por três anos, a  criação da filha. Apa³s a negativa, a pesquisadora precisou reconstruir a carreira. 

Situações como essa, que impaµem barreiras aos pais - e principalmente a s ma£es - cientistas, motivaram a criação do movimento Parent in Science (Ma£es e Pais na Ciência), do qual Ca¢ndida éembaixadora pela Unicamp. O grupo busca discutir o impacto da parentalidade sobre a carreira cienta­fica e foi o primeiro projeto brasileiro a vencer o praªmio Nature para Mulheres Inspiradoras na Ciência, em 2021, na categoria Science Outreach.

O mundo acadêmico não éneutro

O Parent in Science foi criado em 2016 e atualmente écomposto por um Naºcleo Central e por 72 embaixadoras em todas as regiaµes dopaís. Desde sua origem, o grupo levanta dados sobre os impactos da maternidade e da paternidade na carreira acadaªmica, bem como impulsiona políticas de apoio a ma£es e pais cientistas. “Diz-se que a ciência éneutra, mas o que se vaª, pelo levantamento de dados, éque temos um forte enviesamento em relação ao gaªnero. Quando se pensa em parentalidade, háuma ruptura ainda maior”, explica Ca¢ndida. 

A pesquisadora frisa que o problema éacentuado para as ma£es, já que, historicamente, o cuidado dos filhos éatribua­do a s mulheres. De acordo com levantamento do Parent in Science, isso faz com que haja uma queda elevada da produtividade nos primeiros anos da maternidade, o que não ocorre entre aqueles que se tornam pais. “Para a mulher, existe um efeito tesoura na academia. Elas comea§am em grande número na base da carreira, mas quando vai se chegando aos cargos mais elevados, como bolsas produtividade e reitorias, existe um número incipiente ou mesmo nulo. A nossa produtividade cai principalmente nos primeiros três anos da maternidade e fica quase impossí­vel chegar ao topo”. 

“Nãoéjusto termos que escolher entre a maternidade e a carreira acadaªmica. As coisas podem caminhar juntas”, reflete Ca¢ndida. A pesquisadora conta que, em seu caso, não tinha uma rede de apoio para auxiliar nos cuidados da filha e poder manter a carreira concomitantemente. Percebendo que muitas mulheres enfrentavam empecilhos semelhantes e acabavam desistindo, Ca¢ndida aderiu ao movimento Parent In Science em 2020. Desde então, atua com o grupo para transformar essa realidade. Na Unicamp, também integra a recanãm-criada Rede de Mulheres Acadaªmicas.

O Parent in Science busca romper com a crena§a de que a maternidade e a paternidade não interferem na carreira. “Era um tabu falar sobre parentalidade, porque todos achavam que a carreira era são uma questãode meritocracia”, observa Ca¢ndida. Ao reunir mulheres cientistas, o grupo identificou relatos de bolsas cortadas ou projetos negados após o período de licena§a maternidade. Tambanãm verificou que em grande parte das instituições não hápolíticas de apoio a s ma£es e aos pais, como creches ou auxa­lio-criana§a. Outro levantamento, realizado durante 2020, identificou que o período de pandemia acentuou as desigualdades na carreira cienta­fica, escancarando ainda mais o problema.

Pandemia trouxe mais impacto a  carreira de mulheres negras

O impacto da pandemia na produtividade dos pesquisadores, segundo relatório do Parent In Science, foi maior entre mulheres. Elas tiveram maior decla­nio na produtividade, enquanto os homens mantiveram-se no mesmo patamar ou atéexpandiram a produção.

As discrepa¢ncias foram ainda maiores quando o fator “maternidade” foi conjugado ao recorte racial. As mulheres negras foram as mais afetadas, com ou sem filhos, seguidas pelas mulheres brancas com filhos. “No período pandaªmico, as mulheres acadaªmicas tiveram uma produtividade quase nula, enquanto a dos homens continuou a mesma ou se elevou. E aa­ a gente percebe uma intersecção, principalmente racial. A produtividade émuito pior para mulheres negras e ma£es solo”.

Pesquisadora ca¢ndida
Mudanças institucionais dependem também demudanças sociais, culturais e
políticas, avalia Ca¢ndida (foto: Jeniffer Amaral)

Essa realidade, aponta Ca¢ndida, não éexclusiva da academia e precisa ser analisada em outros setores do trabalho para que sejam pensadas políticas públicas emnívelnacional. Uma das discussaµes realizadas Parent in Science éa elevação da licena§a paternidade, que hoje éde cinco dias, estendida em até20 dias em alguns casos. “Para pensarmos emmudanças institucionais, precisamos pensar emmudanças sociais, culturais e políticas de alcance federal, por exemplo, na licena§a paternidade. Com uma licena§a de cinco dias aºteis para o homem, como ele vai conseguir ter algum va­nculo com o filho?”, questiona.

Maternidade no Lattes e apoio a s ma£es

Em abril de 2021, o Lattes, principal plataforma de curra­culos de pesquisadores, passou a oferecer a possibilidade de as mulheres inserirem seus períodos de licena§a maternidade. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Cienta­fico e Tecnola³gico (CNPQ), que gere a plataforma, atendeu a uma reivindicação encaminhada pelo Parent in Science, chamada de “Maternidade no Lattes”. 

O movimento reivindicava essa inclusão desde 2017, com o argumento de que a análise da produtividade precisa levar em consideração a licena§a. Graças a  mobilização do grupo, diz Ca¢ndida, além da inclusão no Lattes, diversos editais de fomento em instituições de ensino e pesquisa também passaram a considerar o período de licena§a maternidade em suas avaliações.

Outra frente de ação do Parent in Science foi o Programa Amanha£. Por meio de arrecadações, o movimento da¡ suporte a ma£es pa³s-graduandas, especialmente ma£es solo, negras e inda­genas. 

O praªmio concedido pela Nature, avalia Ca¢ndida, éum reconhecimento importante ao trabalho do grupo, que também vem inspirando movimentos semelhantes em outrospaíses da Amanãrica Latina, como a Cola´mbia. Com o valor recebido, o movimento deseja fortalecer suas ações, que atéentão dependiam exclusivamente de arrecadações. “O que a gente espera éque a maternidade e paternidade sejam acolhidas”, conclui a pesquisadora.

 

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