Humanidades

Pergunta ou pergunta? Como o preconceito lingua­stico perpetua a desigualdade
O linguismo éuma ideia inventada pelo ativista de direitos humanos e linguista Tove Skutnabb-Kangas para descrever a discriminação baseada na la­ngua ou dialeto. O preconceito em torno de
Por Amanda Cole, Ella Jeffries e Peter L Patrick - 13/03/2022


Quando os professores validam as formas de falar das criana§as, isso pode ter um efeito profundo na maneira como elas aprendem. Crédito: Monkey Business Images | Shutterstock

O professor e artista Sunn M'Cheaux tem postado nas redes sociais sobre "linguismo" depois que um leitor lhe perguntou sobre a palavra "machado", dizendo: "Por que lutamos para dizer 'pergunte?' Como quando eu era pequeno, eu sempre dizia 'ax'. Como se eu não pudesse dizer a palavra corretamente."

A resposta de M'Cheaux contraria a ideia comum de que "ax" (escrito também "aks") estãoincorreto: "ax" não éuma pronaºncia errada de "ask", mas uma pronaºncia alternativa. Isso ésemelhante a como as pessoas podem pronunciar "economia" de várias maneiras como "eck-onomics" ou "eek-onomics", por exemplo. Nenhuma dessas pronaºncias estãoerrada. Eles são apenas diferentes.

O linguismo éuma ideia inventada pelo ativista de direitos humanos e linguista Tove Skutnabb-Kangas para descrever a discriminação baseada na la­ngua ou dialeto. O preconceito em torno de "aks" éum exemplo de linguismo.

Danãcadas de pesquisa mostram que a ideia de que qualquer variação do inglês padrãoéincorreta (ou, pior, pouco profissional ou sem educação) éuma cortina de fumaa§a para o preconceito. O linguismo pode ter sanãrias consequaªncias ao agravar as desigualdades socioecona´micas e raciais existentes.

Argumento falho

Classificar "ax" como sinal de preguia§a ou ignora¢ncia pressupaµe que dizer "aks" émais fa¡cil do que dizer "ask". Se fosse esse o caso, nosouvira­amos — e nunca ouvimos — ouvir "escrivaninha", "frasco" e "aborrecido" pronunciados como "deks", "flaks" e "peksy".

O "s" e o "k" sendo trocados em "aks" e "ask" éum exemplo do que os linguistas chamam de meta¡tese — um processo muito comum. Por exemplo, vespa costumava ser pronunciado " waps ", mas o primeiro agora se tornou a palavra principal. Muitas das pronaºncias lamentadas como "erradas" são, na verdade, apenas exemplos de mudança de linguagem.

"Aks" tem origens em inglês antigo e germa¢nico hámais de um milaªnio, quando era uma forma escrita formal. Na primeira Ba­blia em inglês - a Ba­blia Coverdale, de 1535 - Mateus 7:7 foi escrito como "Axe e ser-vos-a¡ dado", com aprovação real.

Além do inglês escrito, "aks" também era a pronaºncia ta­pica no sul da Inglaterra e nas Midlands. "Pergunte", por sua vez, era mais prevalente no norte e éeste último que se tornou a pronaºncia padra£o.
 
Prevalaªncia contempora¢nea

Na Amanãrica do Norte, "aks" (ou "ax") foi amplamente utilizado na Nova Inglaterra e nos estados do sul e do meio. No final do século 19, no entanto, tornou-se estereotipado como exclusivo do inglês afro-americano, no qual permanece predominante. O linguista americano John McWhorter considera isso uma "parte integral de ser um americano negro".

Hoje, "aks" também éencontrado em variedades de inglês do Reino Unido, incluindo o inglês multicultural de Londres . Esse dialeto, falado principalmente por pessoas de minorias anãtnicas, surgiu atravanãs do contato entre diferentes dialetos do inglês e la­nguas de imigrantes, incluindo os crioulos caribenhos , como o crioulo jamaicano.

O inglês multicultural londrino foi inicialmente referido na ma­dia de forma pejorativa como " jafaicano ". Esse ra³tulo reduziu erroneamente o dialeto a algo imitado ou usado de forma inautaªntica.

a‰ claro que outras la­nguas influenciaram o inglês multicultural de Londres. Mas a la­ngua inglesa estãoem constante fluxo hámilaªnios, justamente como resultado do contato com outras la­nguas. Quando falamos de "salada", "carne" ou "governo", não estamos imitando o francaªs, apesar da origem francesa dessas palavras. Eles simplesmente se tornaram palavras em inglês. Da mesma forma, o inglês multicultural de Londres éum dialeto totalmente formado por si são e "aks", como em qualquer outra pronaºncia neste e em outros dialetos ingleses, não estãode forma alguma errado.

Preconceito lingua­stico

Sotaques ou dialetos não tem nenhuma pretensão lógica ou cienta­fica de "correção". Em vez disso, qualquer prestígio de que possam se gabar deriva de serem falados por grupos de alto status.

Muitas pessoas agora abanam o dedo para a palavra "não anã" ou para as pessoas soltando o "g", traduzindo palavras como "correndo" como "correndo" e "pulando" como "pulando". Em 2020, a secreta¡ria do Interior brita¢nica, Priti Patel , sofreu o peso dessa cra­tica equivocada, quando o jornalista Alastair Campbell twittou: “Nãoquero uma secreta¡ria do Interior que não consiga pronunciar um G no final de uma palavra”.

Cra­ticas ao "soltar g" existem apesar das origens da pronaºncia no inglês manãdio, e sem mencionar o fato de que atéo século 20, as classes altas brita¢nicas também falavam dessa maneira. Isso foi satirizado em um episãodio de 2003 do programa de comédia brita¢nico "Absolutely Fabulous", intitulado Huntin", pescando e atirando .

Agora que "sair do g" éestereotipado como classe trabalhadora, no entanto, éestigmatizado como errado. Pesquisas mostram que preconceitos lingua­sticos, ainda que não intencionais, contra imigrantes, dialetos não padronizados e regionais impediram gerações de criana§as de alcana§ar o seu melhor na escola e, claro, além dela.

As criana§as em idade escolar que naturalmente dizem "aks" (ou qualquer outra forma não-padrãode inglês) são incumbidas do fardo extra de distinguir entre como falam e como se espera que escrevam. Por outro lado, essa barreira não éenfrentada por criana§as que crescem falando inglês padrãoem casa, o que pode aprofundar ainda mais a desigualdade. Essas criana§as já são favorecidas de outras maneiras, pois tendem a vir de grupos de alto status.

A maneira como falamos tem implicações reais em como somos percebidos. Pesquisas no sudeste da Inglaterra descobriram que jovens adultos da classe trabalhadora ou de minorias anãtnicas tendem a ser julgados como menos inteligentes do que os outros osum preconceito baseado apenas na maneira como falam. O efeito piorava se a pessoa fosse de Essex ou Londres, ou mesmo se pensasse que ela tinha sotaque desses lugares.

O exemplo de "aks" demonstra nitidamente o absurdo, a falta de fundamento e, crucialmente, o impacto pernicioso de considerar qualquer forma de inglês como "correta". Preconceito de sotaque e linguismo éuma ressignificação do preconceito em relação a grupos de baixo status que, simplesmente, falam de forma diferente.

 

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