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Pigmento de bactéria acelera condução de elétrons em célula a combustível microbiana
A prodigiosina, molécula natural produzida pela Serratia marcescens, reduz drasticamente a resistência elétrica e abre caminho para novas aplicações em bioenergia
Por Felipe Medeiros - 16/10/2025


Foto: Freepik


A busca por fontes de energia limpa tem levado cientistas a investigar como microrganismos podem ajudar a gerar eletricidade. É o caso da bactéria Serratia marcescens (microrganismo presente em solo, água e alimentos) que vem sendo testada em laboratórios da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP. 

Entre os resultados mais recentes desses estudos, publicados na revista Current Research in Biotechnology, o destaque ficou por conta da prodigiosina, um pigmento vermelho produzido por uma cepa da bactéria, a S734 (isolada de uma amostra de solo da cidade de Montes Claros, Minas Gerais), que mostrou expressiva capacidade de conduzir elétrons no sistema (célula a combustível microbiana – CCM).

Conta a pesquisadora Ana Clara Bonizol Zani, uma das responsáveis pelo estudo e pós-graduanda no Departamento de Química da FFCLRP, que o objetivo foi entender como esse pigmento natural contribui “para melhorar a condução de elétrons e a eficiência de geração de energia em células a combustível microbianas”. 

Para tanto, além de testar a própria bactéria como biocatalisador (substância natural que acelera reações químicas), testaram a prodigiosina retirada “diretamente do líquido de cultivo da bactéria (sobrenadante), sem etapas prévias e custosas de purificação”, informa a pesquisadora.

Como os microrganismos produzem energia

Ao contrário de uma célula a combustível tradicional, que depende de metais nobres ou catalisadores inorgânicos para produzir energia, as CCMs utilizam microrganismos vivos como catalisadores para transformar compostos orgânicos – neste estudo, foi usado o glicerol, resíduo proveniente da produção de biodiesel – em eletricidade, sem a necessidade de recorrer a materiais caros ou poluentes.

O processo de produção de energia ocorre por meio da chamada transferência extracelular de elétrons. No metabolismo da bactéria os compostos orgânicos são degradados e elétrons são liberados. Segundo Ana Clara Bonizol Zani, esses elétrons precisam sair da célula e alcançar o eletrodo, o que pode acontecer de diferentes maneiras. “Algumas bactérias liberam moléculas mediadoras que carregam os elétrons até o eletrodo, enquanto outras fazem contato direto com sua superfície. Uma vez no ânodo, os elétrons percorrem o circuito externo e geram eletricidade até alcançar o cátodo, onde geralmente reagem com o oxigênio.”

As CCMs, informa a pesquisadora, começaram a atrair maior atenção científica quando aumentaram os estudos sobre geração de energia limpa a partir de microrganismos. Bactérias como Shewanella e Pseudomonas eram mais investigadas por conta de suas capacidades de liberarem moléculas transportadoras de elétrons. “O diferencial deste trabalho foi explorar a prodigiosina, que forma um filme condutor (material condutor de energia elétrica) capaz de melhorar significativamente o desempenho dessas células”, destaca a pós-graduanda.

Célula a combustível microbiana empregada nesse estudo – aparato experimental – Foto: Cedida pela pesquisadora Ana Clara Bonizol Zani

Prodigiosina, fio condutor natural de elétrons

Para entender o papel da bactéria e do pigmento os cientistas testaram três condições diferentes. Na primeira, o eletrodo foi mantido limpo, sem bactéria nem pigmento, servindo como controle. Na segunda, a bactéria viva foi colocada em contato com o glicerol, permitindo acompanhar a produção contínua de energia. Por fim, montaram uma célula sem microrganismos, mas com o eletrodo recoberto pelo líquido de cultivo filtrado, rico em prodigiosina. “Essa comparação foi essencial para mostrar a diferença entre o metabolismo da bactéria e a atuação isolada do pigmento como condutor”, afirma Ana Clara Bonizol Zani.

A capacidade condutora de um eletrodo é a sua habilidade de permitir a passagem de cargas elétricas, ou seja, de conduzir eletricidade. Metais como cobre e prata apresentam alta condutividade porque permitem que os elétrons circulem com facilidade. No caso estudado, a prodigiosina atuou de forma semelhante, aumentando a eficiência do eletrodo na transferência de elétrons.

Os resultados chamaram atenção, pois a prodigiosina formou um filme condutor sobre o eletrodo e aumentou a transferência de carga em 424 vezes em relação ao controle. A resistência elétrica diminuiu de 8.396 ? para apenas 58 ?, o que facilitou o fluxo de elétrons para gerar energia. Desta forma, verificaram que “a estrutura química da prodigiosina facilita o deslocamento de elétrons, funcionando como um fio condutor natural”, diz a pesquisadora.

Mesmo conseguindo a maior produção de energia (10,0 mW/m²), a prodigiosina sozinha não foi capaz de sustentar a produção de energia ao longo do tempo. Ela age como um mediador eletroquímico, ajudando a transferir elétrons, porém, segundo a doutoranda, seu processo é irreversível e não consegue se regenerar sozinha. “O pigmento funciona de maneira parecida com um capacitor, que armazena e libera carga momentaneamente. Apenas o sistema com a bactéria viva conseguiu oxidar o glicerol continuamente e manter a geração de eletricidade, a partir de seu metabolismo.”

Futuro da bioenergia na alta condutividade elétrica

Para a pesquisadora, os resultados são promissores e mostram que o pigmento pode ter aplicações mais amplas. “A prodigiosina pode ser aplicada como um condutor natural em outros sistemas bioeletroquímicos, justamente por sua alta condutividade e pelo fato de poder ser usada diretamente do sobrenadante, sem etapas de purificação, o que abre portas para aplicações sustentáveis em biocélulas e outros dispositivos de energia verde.”

Com o avanço das pesquisas, essa tecnologia, até então pouco explorada nesses sistemas, pode se tornar uma nova forma de produzir energia, especialmente diante da necessidade de alternativas aos combustíveis fósseis. O próximo passo da equipe é compreender melhor como o pigmento interage com superfícies condutoras e testar sua aplicação em diferentes dispositivos bioeletroquímicos. “Ainda estamos nos primeiros estágios, mas os resultados mostram que é possível transformar um produto natural do metabolismo bacteriano em aliado para soluções energéticas mais limpas e sustentáveis”, conclui. 

Ana Paula conduziu suas pesquisas nos laboratórios do Departamento de Química da FFCLRP sob supervisão das professoras Valeria Reginatto e Adalgisa Rodrigues de Andrade. Contou ainda com a coloboração dos pesquisadores João Carlos de Souza (FFCLRP) e João Pedro Rueda Furlan e  Eliana Guedes Stehling, ambos da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP.

Mais informações: anabonizolzani@usp.br, com a pós-graduanda Ana Clara Bonizol Zani.

 

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