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Pesquisa revela protagonismo das imigrantes japonesas na Amazônia
Estudo reuniu depoimentos de mulheres entre 76 e 89 anos que, ainda jovens, atravessaram o oceano para constituir família em solo brasileiro no período pós-guerra
Por Ivanir Ferreira - 20/10/2025


A pesquisa reúne depoimentos de mulheres japonesas, com idades entre 76 e 89 anos, que narraram suas experiências quando chegaram em Tomé-Açu, Pará – Foto : Wirestock – Freepik


Estudo da USP resgata um capítulo pouco conhecido da imigração japonesa no Brasil: o protagonismo e a história de vida das “esposas imigrantes japonesas”, mulheres que deixaram o Japão para vir a Tomé-Açu (PA), Norte do Brasil, no pós-guerra. Jovens, elas atravessaram o oceano a bordo de um navio para constituir família e viver em solo brasileiro. A pesquisa reúne depoimentos de mulheres, na época da pesquisa em 2021, com idades entre 76 e 89 anos, que revisitaram suas memórias para narrar experiências marcadas por desafios, adaptação e preservação dos costumes culturais, linguísticos e culinários japoneses.

“Longe da imagem tradicional de submissão, essas mulheres mostraram-se protagonistas de suas próprias histórias, enfrentando escassez de alimentos, instabilidades econômicas e desafios cotidianos com criatividade e solidariedade”, relata a professora Leiko Matsubara Morales, orientadora da pesquisa que resultou na dissertação de mestrado de Sayaka Nakanishi Ikeuti, defendida no Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. O trabalho foi coorientado pela professora Alice Tamie Joko.

Sayaka, conta que escolheu estudar o tema em seu mestrado após constatar que a maior parte dos trabalhos sobre imigração japonesa no Brasil privilegiava apenas a perspectiva masculina. “A partir dessa lacuna, analisei a imigração sob o ponto de vista feminino, investigando como as esposas japonesas construíram suas vidas, sustentaram suas famílias e preservaram sua cultura no cotidiano brasileiro”, diz.

A pesquisadora conta que, de um modo geral, a esposa do imigrante é descrita como uma mulher submissa que atravessou o oceano acompanhando o marido que foi responsável pela decisão de emigrar. Alice Joko diz ter ficado impressionada com os relatos das mulheres de Tomé-Açu, uma vez que não havia essas referências na história da imigração.

Sayaka, de 38 anos, não apenas narra a história, como também fez parte do roteiro migratório retratado na dissertação. Vinda do Japão, casou-se com um nipo-brasileiro de São Paulo, com quem teve uma filha. Viveu por seis anos na região nordeste da capital paraense, onde teve contato próximo com descendentes de japoneses vindos de Tomé-Açu — região cuja imigração japonesa começou em 1929. 

A pesquisa focou entre os anos de 1953 e 2020, quando a produção de pimenta-do-reino atingiu seu auge e garantiu alta lucratividade aos imigrantes locais, colocando o Brasil entre os maiores exportadores dessa especiaria.

Os imigrantes japoneses se estabeleceram em diversos núcleos coloniais do Brasil, especialmente em São Paulo, norte do Paraná, Mato Grosso do Sul, Pará e Amazonas. Segundo a professora Leiko, incluir Tomé-Açu na história da imigração japonesa é essencial, pois a colônia se distinguiu pelo desenvolvimento de um sistema agroflorestal sustentável na região. Para ela, com a aproximação da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025 (COP30), essa experiência pode evidenciar o papel do Pará na produção agrícola sustentável e a contribuição dos japoneses e seus descendentes para esse modelo.

Culinária adaptada

Foram entrevistadas nove mulheres imigrantes japonesas que relataram as dificuldades enfrentadas nos primeiros anos de vida em Tomé-Açu, especialmente a escassez de alimentos como hortaliças e legumes, comuns na dieta tradicional japonesa.

Diante da falta de ingredientes, elas buscaram alternativas na culinária local, adaptando receitas e incorporando produtos da Amazônia, como os peixes mapará e tamuatá. Segundo Sayaka, embora inicialmente estranhassem o sabor e o cheiro forte desses pescados, com o tempo aprenderam a apreciá-los e a prepará-los à moda japonesa, usando técnicas de cozimento e temperos típicos do Japão. Essa adaptação culinária, explica a pesquisadora, foi uma forma de preservar laços culturais e afetivos, mantendo viva a identidade japonesa mesmo em um ambiente distante e com recursos limitados.

Aos 84 anos, dona Yasuko Onishi relembra como fazia para preservar os sabores do Japão no Brasil. Ela contou que preparava missô — pasta fermentada de soja usada em sopas e molhos — e adaptava o shoyu tradicional, feito com soja, sal marinho e trigo torrado, substituindo o trigo por milho, ingrediente mais acessível no País.

“(…) a gente recebia alimentos do patrão toda semana. Tinha charque, sardinha enlatada e tal, né? Eu tenho lembrança do peixe mapará. Talvez fosse só isso que tinha. Além disso, acho que também tinha o cascudo tamuatá, que usávamos para a sopa de missô (…)”
“(…) e, como ainda não estávamos plantando hortaliças, então cortava o mamão, fritava, refogava e comíamos, e assim por diante (…)”


Dona Ayako Ikeda, de 89 anos, se adaptava aos hábitos alimentares locais utilizando ingredientes até então desconhecidos em sua cultura, como palmito de bananeira e fruta-pão.

“(…) eu costumava alimentar minha família com palmito da bananeira, talos de batata, aquela fruta-pão, que fica parecendo batata quando cozida (…)”


Almoço com pratos preparados com ingredientes amazônicos e japonês. Tofu caseiro, bananas grelhadas e tsukudani de jambu - Foto: Sayaka Nakanishi Ikeuti

Cultura, língua e vestimentas

Sayaka destaca a habilidade das imigrantes japonesas diante das dificuldades do cotidiano. As roupas para o trabalho dos agricultores e para o uso no dia a dia eram confeccionadas a partir de sacos de farinha de ossos (fertilizantes para suplementar pomares de pimenta) e de açúcar, como relembra dona Ayako Ikeda:

“(…) para roupas de trabalho, era da farinha de osso, deixando-o frouxo. Lavava direitinho, esfregando bem o sabão, punha para secar e lavava de novo. Fazia isso para tirar o mal cheiro da farinha de osso. Lavava e secava várias vezes. E assim passei a fazer camisas. Camisa de trabalho, né. Cuecas e tal. Porque era um tecido branco, bonito e resistente (…)”


Além de educarem seus filhos dentro de casa, as mulheres japonesas em Tomé-Açu também atuavam como professoras voluntárias na comunidade, contribuindo diretamente para a transmissão da língua japonesa entre as novas gerações. “O empenho delas foi fundamental para fortalecer o domínio do idioma entre os descendentes e serviu de base para a formação de novos professores, consolidando um legado que permanece ativo até hoje na região”, relata a professora Leiko.

Rede de apoio entre mulheres

Os depoimentos também revelam uma forte rede de solidariedade entre as mulheres da colônia, especialmente no momento do nascimento de um bebê. Embora houvesse um hospital na região, era comum recorrer às parteiras tradicionais. Enquanto elas não chegavam, vizinhas se revezavam para acompanhar as gestantes, garantindo que nenhuma delas ficasse sozinha.

Dona Kyoko Sasaki, de 81 anos, descreve assim a experiência:

“(…) na hora do parto, como era de se esperar, havia a presença de uma parteira. Todo mundo pedia para ela vir e dava à luz. Todos os nossos filhos nasceram em casa. Meu primeiro filho nasceu na casa do sr. Hayashi. O segundo, na casa do sr. Hosokawa. O caçula nasceu aqui, no nosso sítio. Nunca estive num hospital. Bom, eu vou ao hospital do José de vez em quando, mas nunca estive lá para ter bebê, como no Japão. A parteira vinha em casa ou a gente ia buscar. Às vezes ela vinha te ver. Como o transporte era a bicicleta, vinham assim (…)”


A luta pela sobrevivência

A pesquisa relata que oscilações no mercado da pimenta-do-reino marcaram a trajetória dos imigrantes em Tomé-Açu. O auge da produção dessa especiaria foi entre 1953 e 1954. No entanto, os anos seguintes foram marcados por instabilidade: os preços caíram drasticamente entre 1956 e 1957, recuperaram-se em 1959, voltaram a cair em 1962, subiram em 1965 e despencaram novamente a partir de 1966.

Uma das entrevistadas, Watanabe Etsuko, de 86 anos, relatou como enfrentou as dificuldades desse período de crise. Ela recorria aos moradores locais para vender objetos que havia trazido do Japão, numa tentativa de sustentar sua família. 

A situação se agravou após o marido contrair dívidas e a empresa dele falir. Sem outra fonte de renda,  Etsuko começou a produzir artesanato para trocar por alimentos como arroz. Depois, piorou ainda mais quando o marido começou a beber e em seguida morreu deixando inúmeras dívidas para a família pagar. Para sobreviver e manter a família, ela decidiu abrir um restaurante, mesmo sem qualquer experiência anterior na cozinha.

“(…) Se eu não montasse um restaurante, a família inteira teria que cometer suicídio. Eu simplesmente senti que tinha que fazer isso… Mesmo não havendo nenhum preparo. Como eu nunca tinha feito comida antes, todos me diziam: ‘Como é possível fazer negócio desse jeito’?(…)”


Sem confiança no sabor dos pratos, Watanabe Etsuko apostou em porções generosas como diferencial. Ainda assim, enfrentou críticas da clientela. Apesar das dificuldades, conseguiu quitar a dívida deixada pelo marido após cerca de nove anos, com resiliência diante das adversidades.

A professora Leiko diz que a pesquisa conduzida por Sayaka Nakanishi Ikeuti vai além do registro histórico: revela a força e a contribuição das mulheres japonesas para o desenvolvimento social, econômico e cultural da Amazônia. Suas histórias, marcadas por trabalho árduo, solidariedade e capacidade de adaptação, mostram que foram elas — e não seus maridos — as verdadeiras pilares da comunidade imigrante de Tomé-Açu. “Ao recuperar essas memórias, o estudo amplia o entendimento sobre a imigração japonesa no Brasil e reconhece o papel feminino na construção de uma herança cultural que segue viva até hoje”, diz.

A dissertação A história de vida das esposas imigrantes japonesas do pós-guerra em Tomé-Açu, PA (1953-2020) foi defendida em setembro de 2025 na FFLCH e deve estar disponível em breve na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP. O trabalho recebeu financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Mais informações: leikomm@usp.br, com Leiko Matsubara Morales (orientadora); jokoalice@gmail.com, com Alice Joko (co-orientadora); e sayaka.6248@gmail.com, com Sayaka Nakanishi Ikeuti843971

 

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