Mundo

Disfara§ada de beija-flor, mariposa pode evitar virar almoa§o
Aves não reconheceriam o invertebrado como presa potencial, diz nova proposta de mimetismo
Por Maria Guimarães - 27/08/2020

Durante suas viagens pela bacia amaza´nica no século XIX, o naturalista brita¢nico Henry Walter Bates (1825-1892) observou, em meio a uma infinidade de aspectos da flora e da fauna que entraram para os anais da história natural, mariposas diurnas que pairavam como beija-flores ao se alimentarem de nanãctar. Eram parecidas a ponto de ele várias vezes abater os insetos na intenção de capturar a ave. “Sa³ depois de vários dias de experiência aprendi a distinguir um do outro quando em voo”, relatou em seu livro Um naturalista no rio Amazonas, publicado em 1863, sobre insetos do gaªnero Aellopos em Caripi, na baa­a de Maraja³, Para¡. Quase 170 anos depois de suas observações, as mesmas mariposas da familia dos esfinga­deos da£o origem a  hipa³tese de um novo tipo de mimetismo, de acordo com artigo publicado este maªs na revista Ecology. 

“Elas se parecem com animais que não fazem parte da dieta de seus predadores, que são aves inseta­voras”, explica o bia³logo Felipe Amorim, do Instituto de Biociências do campus de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “a‰ diferente do mimetismo batesiano, no qual animais inofensivos se parecem com perigosos, e assim repelem potenciais predadores. Tambanãm não se encaixa no mimetismo ma¼lleriano, no qual duas ou mais espanãcies diferentes se assemelham umas a s outras, e assim reforçam o sinal de perigo aos predadores.” O curioso éque esses tipos de mimetismo, que dependem da existaªncia de espanãcies perigosas, impalata¡veis ou nocivas de alguma maneira, foram batizados em homenagem aos trabalhos realizados por naturalistas no Brasil. O primeiro por Henry Bates e o segundo pelo naturalista alema£o Fritz Ma¼ller (1822-1897), que vivia em Santa Catarina.

Faixa branca dorsal do beija-flor pequeno da espanãcie Lophornis chalybeus também existe
nas mariposas (Crédito:Felipe Amorim / Unesp)

Assim como Bates, Amorim confundiu as mariposas com beija-flores quando as conheceu durante a infa¢ncia na recanãm-fundada Palmas, capital do Tocantins. Sa³ depois de construir um pua§a¡ e capturar um exemplar, percebeu o que via. A semelhança vai além do comportamento peculiar. Quando sugam nanãctar, as la­nguas (ou proba³scides) das mariposas-beija-flor lembram os bicos das aves que mimetizam. Elas também tem uma cauda semelhante a s dos colibris, que lhes permite fazer manobras acroba¡ticas durante o voo, e uma listra branca no dorso como os beija-flores do gaªnero Lophornis. 

No século XIX, quando a metamorfose de lagartas em mariposas e borboletas ainda era novidade, tudo isso causava ainda mais confusão. De acordo com Bates, “atéos brancos estudados” locais achavam perfeitamente natural que as mariposas se transformassem em aves, em uma segunda metamorfose. Seria, portanto, uma única espanãcie. Inda­genas e negros sustentariam a teoria mesmo com a mariposa na ma£o, apontando as “penas” de sua cauda.

O bia³logo da Unesp voltou a essas mariposas cerca de 10 anos do primeiro encontro, durante a iniciação cienta­fica na Universidade Federal de Uberla¢ndia (UFU). Um projeto de seu orientador, o bia³logo Paulo Eugaªnio Oliveira, tinha como foco a polinização de plantas de Cerrado por mariposas esfinga­deas, um sistema de polinização que poucas pessoas no mundo estudam. Desde essa anãpoca, 2003, Amorim tem observado as relações entre plantas, esfinga­deos e beija-flores, investigando se mariposas e aves são equivalentes funcionais na polinização em áreas de Cerrado. Verificou que, tal como os beija-flores pequenos e de bicos curtos, as mariposas-beija-flor tem um espectro alimentar que inclui flores com morfologias que permitem a visita e polinização por ambos os grupos, como as flores de inga¡ (gaªnero Inga). Esse padrãofoi observado por Amorim ao longo da distribuição de Aellopos no Cerrado. 

A seção da revista Ecology no qual o artigo foi publicado, “The scientific naturalist” (O naturalista cienta­fico), busca trazer novos relatos e percepções sobre história natural que incitem a curiosidade e suscitem novos estudos. Foi nela que Amorim e colaboradores publicaram, em fevereiro deste ano, um relato sobre uma flor polinizada por gamba¡s, observação atéentão inanãdita.

Ele já delineia o que deve ser feito para testar a hipa³tese de mimetismo entre os esfinga­deos do gaªnero Aellopos e beija-flores: mapear as caracteri­sticas das mariposas (como a imitação de cauda) na a¡rvore filogenanãtica para verificar se essas caracteri­sticas surgiram maºltiplas vezes em resposta a particularidades ecola³gicas; medir a frequência de batimento das asas de mariposas e beija-flores, para melhor caracterizar as semelhanças; criar larvas de Aellopos e alterar a faixa branca ou manipular outras caracteri­sticas do animal para fazer experimentos de predação com aves inseta­voras.

Se a hipa³tese for aceita e a ideia pegar, serámais um tipo de mimetismo descrito a partir de estudos no Brasil, depois do batesiano e do ma¼lleriano.

 

.
.

Leia mais a seguir