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Apenas uma contravenção? Pense de novo
O livro do professor de Direito sobre como o sistema pune os pobres e as pessoas de cor inspirou um novo documenta¡rio
Por Liz Mineo - 15/03/2021


O livro de 2018 da professora Alexandra Natapoff, “Punição sem crime”, éa base para um novo documenta¡rio. Crédito: Loyola Law School, Los Angeles

A maioria de nostem um conhecimento ma­nimo do sistema de justia§a criminal, mas acha que os crimes são graves e as contravenções não. Alexandra Natapoff discordaria. O professor de direito Lee S. Kreindler da Harvard Law School publicou um livro em 2018 sobre como o sistema de contravenções pune os pobres e as pessoas de cor, expondo o funcionamento interno de um aspecto frequentemente esquecido do sistema de justia§a criminal. Agora, o trabalho, "Punição sem crime: como nosso sistema de contravenções massivas captura o inocente e torna a Amanãrica mais desigual", inspirou um novo documenta¡rio , "Racially Charged: America's Misdemeanor Problem". O filme tera¡ sua estreia com transmissão ao vivo evento, que inclui um painel de discussão, no YouTube na quinta-feira, das 15h30 a s 17h. Natapoff  conversou sobre seu livro, o filme, por que ela acha que o sistema de contravenções se tornou “o primeiro passo no ethos do encarceramento em massa, ”E como isso poderia ser alterado.

Perguntas & Respostas
Alexandra Natapoff


O que éuma contravenção?

NATAPOFF: Existe uma resposta legal e uma resposta estrutural. O sistema legal normalmente define contravenção como uma ofensa pela qual uma pessoa pode ser encarcerada por não mais de um ano. Um ano énormalmente a linha legal trazda entre uma contravenção e um crime. Mas, mais fundamentalmente, as contravenções referem-se a uma vasta gama de ofensas de baixonívelque são tratadas como menores, mesquinhas ou sem gravidade. Muitas contravenções acarretam pena máxima de seis meses, três meses, um maªs. Embora a punição inicial ta­pica seja mais frequentemente uma multa e liberdade condicional do que uma sentena§a de prisão formal, háuma enorme quantidade de encarceramento no sistema de contravenção. Falando democraticamente, as contravenções representam uma enorme arena de conduta de baixonívelpraticada por milhões e milhões de pessoas, muitas vezes não particularmente prejudicial, não particularmente perigosa não particularmente culpa¡vel, que permitimos que o estado criminalize e trate como crime. Basicamente, as contravenções abrem a porta para uma grande quantidade de punição, encarceramento e intrusão do Estado na vida das pessoas por conduta menor comum denívelmuito baixo.

“Mesmo que tratemos as contravenções como menores ou mesquinhas, não hánada de menor sobre as consequaªncias de sustentar uma condenação por contravenção.”


Sabemos que as contravenções são ofensas menores, mas seu livro mostra que não hánada de menor nelas. Vocaª pode explicar como eles podem infligir tantos danos a  vida das pessoas?

NATAPOFF: Mesmo que tratemos as contravenções como menores ou mesquinhas, não hánada de menor sobre as consequaªncias de sustentar uma condenação por contravenção. As pessoas podem perder sua licena§a para dirigir; podem perder a licena§a para exercer uma profissão; eles podem ser encarcerados; eles podem estar sobrecarregados com milhares de da³lares em da­vidas que não podem pagar, o que pode arruinar seu cranãdito. Eles podem ser privados de benefa­cios do governo, habitação pública, ajuda financeira para instituições educacionais. Eles podem perder seu status de imigração. Eles podem perder a custa³dia dos filhos. Existem tantas maneiras pelas quais o sistema de contravenções pode sobrecarregar uma pessoa por toda a sua vida de uma forma que édesmentida pelo termo "pequena ofensa".

Vocaª pode nos explicar o processo de contravenções, desde a prisão atéo processo e a punição? Onde comea§a e onde termina?

NATAPOFF: Os casos de contravenção funcionam formalmente da mesma forma que muitos outros casos criminais. Tudo comea§a quando a pola­cia prende alguém . E não hácomo exagerar a importa¢ncia da discrição policial no sistema de contravenções. Sa£o os policiais que decidem quem, dos milhões e milhões de pessoas que cometem contravenções todos os anos, serárealmente tratado como criminoso por andar na rua, dirigir com licena§a suspensa, cuspir, jogar lixo, invadir ou vadiar. E o padrãopara uma prisão de acordo com a lei dos EUA émuito baixo. Exigimos apenas que a pola­cia tenha o que chamamos de “causa prova¡vel” de que um crime foi cometido, que éuma quantidade relativamente pequena de evidaªncias. Depois que uma pessoa épresa, ela tem um registro de prisão e esse registro pode acompanha¡-la por toda a vida. Pode perseguir uma pessoa em seu emprego, moradia e outras áreas de suas vidas.

a€s vezes, as pessoas são libertadas após uma prisão. Muitas pessoas, no entanto, va£o ao tribunal e recebem fiana§a, que éuma quantia de dinheiro que precisam pagar para sair da prisão enquanto seus casos estãosendo resolvidos. E como muitas pessoas não podem pagar fiana§a, elas podem ser enviadas para a prisão por semanas ou meses. Comea§amos a avaliar, nos últimos anos, quantas pessoas estãoencarceradas por longos períodos de tempo, não porque sejam culpadas, mas porque não podem pagar a fiana§a. a€s vezes chamamos isso de a nova “prisão de devedores”. Em outras palavras, estamos prendendo as pessoas não porque sejam perigosas ou culpadas, mas porque são pobres. Frequentemente, as pessoas que não podem pagar a fiana§a se confessara£o culpadas apenas para sair da prisão. Milhaµes de pessoas se confessam culpadas de contravenções como essa.

a‰ por isso que seu livro descreve o sistema de contravenções como um sistema que captura inocentes.

NATAPOFF: A maioria das condenações por contravenção éo resultado de uma confissão de culpa, não de um julgamento. Isso também éva¡lido para crimes. Os casos nos EUA quase nunca va£o a julgamento. Quase nunca contestamos se alguém érealmente culpado. Em termos do processo, uma porcentagem substancial dos casos de contravenção acabara¡ sendo arquivada. Um promotor revisara¡ o arquivo e pode decidir que o caso pode ser arquivado, talvez após um período de desvio ou supervisão. Isso não étão brando quanto parece - o indiva­duo pode já ter perdido o emprego, perdido a casa ou sofrido o fardo de ter sido encarcerado. Mas na maioria dos casos de contravenção, o ranãu tera¡ que decidir se contesta sua culpa e se vai a julgamento, o que quase ninguanãm faz. Mais frequentemente, eles se declaram culpados.

Um dos grandes desafios do sistema de contravenções éque, mesmo quando as pessoas tem direito a um advogado, muitas vezes o estado não lhes da¡. Os ranãus por contravenção, como todos os ranãus criminais nos Estados Unidos, tem direitos constitucionais a um advogado. Mas sabemos que os tribunais de todo opaís ainda não estãodando advogados a eles. Frequentemente, esses ranãus estãodecidindo o que fazer a respeito de seus casos sem o benefa­cio de falar com um advogado. As consequaªncias são enormes. Quando uma pessoa se declara culpada, ela tem ficha criminal, talvez por vadiagem ou por dirigir com a carteira suspensa, e essa condenação por contravenção pode interferir na vida das pessoas de várias maneiras. Por exemplo, a maioria dos empregadores nos diz que examina os registros criminais, atémesmo as contravenções, ao tomar decisaµes sobre a contratação de pessoas.

Vocaª trabalhou como defensor paºblico em Baltimore. Como essa experiência influenciou seu livro?

NATAPOFF: Aprendi sobre a importa¢ncia das contravenções por ser defensor paºblico em Baltimore. a‰ difa­cil dizer de fora do sistema criminal o quanto influentes e importantes esses casos são. Aprendi ao representar meus clientes, tanto clientes acusados ​​de contravenções federais quanto clientes acusados ​​de infrações federais mais sanãrias, que muitos deles tiveram inaºmeras experiências com o sistema criminal por meio de contravenções. E essas contravenções sobrecarregaram suas vidas, sua capacidade de prosperar econa´mica e pessoalmente. Isso também os sobrecarregou aos olhos do sistema criminal, que os tratou com muito mais severidade porque tinham esses registros anteriores de contravenção. Eu vi o quanto profundamente eles estavam sofrendo com o fardo dessas ofensas de baixo na­vel, que passei a avaliar o quanto poderoso éo aparato de contravenção.

Por que vocêquis escrever este livro?

NATAPOFF: Em minha experiência, muito do impacto, influaªncia e muitas vezes injustia§a do sistema criminal ocorre nos Espaços menos regulamentados, nos Espaços que classificamos como sem importa¢ncia ou menores. Como defensor paºblico em Baltimore, aprendi que as contravenções não eram de menor importa¢ncia. E quando tive a sorte de me tornar um estudioso do direito, tive que pensar para onde queria direcionar a atenção das pessoas, e escolhi escrever sobre esse enorme fena´meno de supercriminalização, de injustia§a racial e injustia§a econa´mica, na grande maioria de casos que nosso sistema criminal processa. A oportunidade de escrever o livro, para mim, foi de várias maneiras, a oportunidade de lana§ar luz sobre como a maior parte do nosso sistema criminal realmente funciona. Para mim, este não éum livro apenas sobre contravenções. Este éum livro sobre o sistema criminal americano visto de baixo para cima.

“O sistema de contravenções americano égrande porque usamos excessivamente o sistema criminal em geral, mas também porque temos sido negligentes em nossa avaliação dos verdadeiros custos de usar a criminalização de contravenções dessa forma.”


Vocaª disse em seu livro que as contravenções constituem 80% dos casos criminais nos Estados Unidos e que, a cada ano, 13 milhões de americanos são acusados ​​de contravenções. Quais são os fatores que impulsionam esses grandes números?

NATAPOFF: Nãosabemos exatamente por que o sistema de contravenções étão grande, embora saibamos muitas das razaµes. a‰ enorme pela mesma razãoque nosso sistema criminal éenorme, porque os Estados Unidos dependem mais do que qualquer outropaís da criminalização como forma de governana§a. Recorremos ao sistema criminal para controlar nossos Espaços paºblicos, para policiar os pobres, para administrar escolas e moradias públicas de formas que criminalizam as pessoas que vivem, aprendem e trabalham la¡. Aprendemos esse fato com a conversa sobre o encarceramento em massa, e isso também éva¡lido para contravenções. Talvez ainda mais. De certa forma, as contravenções tem sua própria notoriedade especial porque foram consideradas menores e sem importa¢ncia e, portanto, as barreiras a  criminalização são baixas. O sistema considera que não égrande coisa prender e condenar alguém por uma contravenção, embora seja um enorme fardo para suas vidas e para as de suas fama­lias. O sistema de contravenções americano égrande porque usamos excessivamente o sistema criminal em geral, mas também porque temos sido negligentes em nossa avaliação dos verdadeiros custos de usar a criminalização de contravenções dessa forma.

Qual éo papel do sistema de contravenções no encarceramento em massa? Como ele cria e reforça as desigualdades raciais e econa´micas?

NATAPOFF: Eu penso nas contravenções como o primeiro passo no ethos do encarceramento em massa. a‰ o primeiro lugar em que abusamos do sistema criminal. a‰ o primeiro lugar que recorremos a  punição e a  pola­cia para tratar de questões sociais. a‰ o primeiro lugar onde criminalizamos excessivamente as pessoas de cor e visamos desproporcionalmente o poder criminoso do Estado contra os homens negros. a‰ o primeiro passo para o encarceramento em massa, não apenas como uma questãotemporal, mas como uma questãosocial e pola­tica. Nosso sistema de contravenções éuma das maneiras pelas quais discriminamos os pobres e as pessoas de cor. a‰ um enorme exerca­cio de autoridade estatal que pune desproporcionalmente as pessoas por sua pobreza e que hista³rica e desproporcionalmente pune os negros. Nosso sistema criminal não éapenas uma função da desigualdade racial e econa´mica;

Quais políticas vocêacha que deveriam ser consideradas para mudar as caracteri­sticas desiguais do sistema de contravenções, que vocêchama de um poderoso motor de injustia§a e desigualdade?

NATAPOFF: A mudança mais importante éencolher a rede. Na minha opinia£o, tudo o mais, todas as especificações e a loga­stica, decorrem de um compromisso de diminuir nossa confianção na criminalização de contravenções como forma de governana§a. Falo sobre políticas emudanças mais especa­ficas no livro, mas a mudança mais importante éreconhecer quanto enorme, inchado, ineficaz, caro e injusto éo sistema de contravenções e trabalhar para reduzi-lo. Nos últimos anos, em particular no ano passado após o assassinato de George Floyd e a poderosa influaªncia de Black Lives Matter, comea§amos a pensar coletivamente sobre como retroceder nossa confianção no excesso de criminalização porque vemos seu impacto em nosso democracia. Afinal, Eric Garner foi detido e morto pela pola­cia por uma contravenção. Philando Castile foi detido e morto pela pola­cia por uma contravenção de tra¢nsito. Michael Brown foi detido e morto pela pola­cia de Ferguson por uma contravenção. George Floyd foi detido e morto sob a alegação de contravenção. As contravenções não são apenas o primeiro passo para a criminalização excessiva e o encarceramento em massa, mas são o primeiro passo para a superexposição dos homens negros a  violência policial. Este último ano de turbulaªncia e mudança nestepaís e em todo o mundo trouxe isso a  tona.

Existe um documenta¡rio baseado no seu livro. Qual foi sua reação quando soube disso? O que vocêespera que as pessoas possam tirar do livro e do filme?

NATAPOFF: Quando os cineastas me procuraram e disseram: “Na³s lemos seu livro. Podemos fazer um filme sobre isso? ” Eu disse: “Diga-me como posso ajudar”. Fiquei muito animado. Trabalhei em estreita colaboração com os cineastas para apoiar sua visão do filme. Tambanãm forneci sugestaµes sobre pessoas com quem eles poderiam conversar e entrevistar, sobre materiais que poderiam usar, e eles confiaram muito na pesquisa do pra³prio livro para apresentar os argumentos do filme. O documenta¡rio émuito poderoso. Acho que as pessoas aprendera£o muito com isso. Estou empolgado com o fato de que a educação para a contravenção pode agora acontecer em tantas ma­dias diferentes, no filme, em um livro, nas aulas, onde os educadores podem escolher exibir o filme ou compartilhar o livro com seus alunos. Minha esperana§a éque isso avance a conversa mais ampla que estamos tendo nestepaís sobre como mudar nosso sistema criminal.

Se aprendi alguma coisa em meus anos de trabalho dentro e ao redor do sistema criminal, éque nunca se sabe qual seráo agente da verdadeira mudança. Nãoacho que possamos controlar os efeitos propagadores de nossas contribuições, tudo o que podemos fazer énos esforçar ao ma¡ximo para fazer parte da conversa da maneira que esperamos.

Esta entrevista foi condensada e editada para maior duração e clareza.

 

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