Opinião

Diante do mundo: a consciência triste da fragilidade humana!
Aparentemente forte, o ser humano conquistou todos os ecossistemas terrestres; no entanto, fra¡gil, cai de joelhos com facilidade diante de um ser, um va­rus, difa­cil de classificar atécomo vivo, o que lhe tiraria o status de ser!
Por Prof. Geraldo Filho - 27/03/2020

Divulgação

A beleza da teoria liberal, que foi se construindo junto com o capitalismo das sociedades industriais, estãona aproximação que suas teses (filosãofica, pola­tica e econa´mica) fizeram do indiva­duo com a natureza, de modo que a sociedade contemporâneafosse a expressão mais elaborada em termos de complexidade institucional da organização natural: a teoria reconhece os condicionantes genanãtico (biola³gico) e cultural (social) sobre o indiva­duo ao mesmo tempo em que resguarda a possibilidade latente de sua singularidade, por onde se manifesta a individualidade, em conflito com os limitantes de sua existaªncia. 

Ao colocar no centro da análise o indiva­duo a teoria aceita humildemente o potencial de sofrimento que lhe écaractera­stico, pois tem consciência de que a garantia da manifestação da individualidade leva a um poa§o sem fundo de desejos (a‰mile Durkheim) que ele descobre dentro de si (que jamais sera£o integralmente realizados!). 

Aqui háum encontro com a boa teologia crista£ osvale lembrar que o iluminismo inglês (Hobbes, Burke, Locke, Smith, Stuart-Mill) que gerou o liberalismo nunca foi anticlerical, como o francaªs –, pois esta individualidade desejante remete ao pecado de Ada£o e Eva, que renunciaram a integridade do Paraa­so (onde nada precisavam) e ao conva­vio com Deus em troca da indeterminação do conhecimento e da luta pela sobrevivaªncia (o afloramento do desejo e da necessidade), por isso seus descendentes anseiam, sofrendo, pela reconciliação com o Criador.

Portanto, tendo em vista a imperfeição humana cabe a  teoria reduzir os danos das frustrações com a vida chamando a atenção para a inexistaªncia de um mundo ideal. Isso comea§a quando se deixa de lado as tagarelices de Jean-Jacques Rousseau sobre o homem que nasceu inocente e bom e foi corrompido pela sociedade e no seu lugar se coloca Thomas Hobbes, que enxerga o homem como ele anã, desprovido de idealismos e promotor de conflitos ao lutar pelos desejos e necessidades!

A peleja pelos desejos e necessidades éa expressão humana do instinto de sobrevivaªncia, herana§a do passado animal, que facilmente se transforma em disputas brutais por recursos escassos, o que retorna o homem ao que Hobbes chamou “estado da natureza” e torna invia¡vel a vida coletiva, que tem como precondição a ordem e a paz. 

No entanto, a precondição para a vida social conseguiu se estabelecer e ajudou a forjar sociedades, ou seja, a ordem e a paz são a expressão humana do instinto de poder. A face real do que apresento como teoria os indivíduos conhecem historicamente como “Estado”, de monarquias a repúblicas.

Então, segundo a teoria liberal, tem-se um indiva­duo que apesar das correntes que lhe prendem a  sociedade (grupo social de origem) éao mesmo tempo livre para desejar e externar vontades, poranãm, como vive em comunidade com outros (o que eleva a possibilidade de choque de interesses na disputa pelas mesmas coisas) se faz necessa¡rio o exerca­cio do poder e a vigaªncia da ordem, de modo que todos possam em termos razoa¡veis ter desejos e necessidades atendidos.

Mas o que são esses desejos e necessidades? Aqui se chega a constatações desconcertantes! Sa£o as vontades individuais por afetos em geral e mercadorias variadas (bens e servia§os), que sera£o providas por uma intensa relação de trocas emocionais e materiais que caracterizara¡ a vida em sociedade desde a origem. Com efeito, aquilo que um dia seráconhecido como mercado evoluiu como resultado da progressiva integração da espanãcie humana em sociedades cada vez mais complexas. Assim, mercado e sociedade se confundem, são a mesma coisa! A teoria liberal procura explicar a inter-relação entre o indiva­duo que deseja dentro de um coletivo (conflito em potencial) e a modulação possí­vel da satisfação dessa vontade egocaªntrica feita pelo Estado e o mercado. 

Nos últimos 200 anos o mundo contempora¢neo assim constitua­do sofre com cata¡strofes sucessivas, guerras, crises econa´micas, cataclismas naturais ou pandemias. O coronava­rus (COVID 19) émais uma, poranãm com capacidade destrutiva magna­fica, pois atinge de uma são vez, em todo o planeta, a liberdade do indiva­duo de trabalhar e se locomover; a capacidade dos governos de proteger os cidada£os (dado a  novidade do va­rus e a incerteza da melhor estratanãgia para vencaª-lo); o funcionamento dina¢mico dos mercados, responsa¡veis pelos empregos e impostos, além da sobrevivaªncia de todos os humanos.

a‰ preciso compreender esse entrelaa§amento banal que o va­rus ao atacar expa´s para os indiva­duos, que provavelmente nunca pararam para refletir que o seu cotidiano, desde o momento que ele acorda atévoltar novamente a dormir a  noite, foi preenchido nos ma­nimos detalhes pela relação Estado e mercado. O Estado garante a ordem e a paz, o mercado provaª os desejos e necessidades!

Faa§a uma lista do que vocêestava usando ao acordar (roupas, cama, rede, lena§ol, etc.) atéo instante em que vocêse levantou da mesa do cafanã. Vocaª nem saiu de casa e já utilizou de bens e servia§os produzidos por milhares de pessoas que vocênunca viu e provavelmente nunca conhecera¡, no entanto elas lhe vestiram, lhe deram conforto para dormir, propiciaram energia para os eletrodomanãsticos que vocêusou, a águado banho, o chuveiro, a pia, o vaso sanita¡rio, o espelho, a escova e pasta de dentes, o sabonete, a toalha, o pente, o vestua¡rio, os cala§ados, o cafanã, o leite, o pa£o, o queijo, a manteiga...

A produção dessas milhares de pessoas distribua­das em funções (empregos) organizadas em empresas (que tem um nome de fantasia, uma personalidade jura­dica) que atendem seus desejos e necessidades desde a ora que vocêacordou formam uma pequena fração do mercado... e vocêainda nem saiu de casa! Imagine agora anotar atéo fim do dia, quando novamente voltar a dormir, a quantidade de pessoas e empresas que remotamente participaram dele garantindo sua satisfação e bem-estar, éuma tarefa quase impossí­vel, principalmente se vocêprojeta¡-la para todos os dias da sua vida! 

Bem, eis o mercado, vocênão precisa pensar sobre ele, pois na verdade éa sua própria existaªncia, pois com um pouco de criatividade e imaginação percebera¡ que éele quem faz a mediação de todas as relações sociais, inclusive a quelas que envolvem as trocas afetivas em uma sociedade aberta e livre como as ocidentais, na qual o Brasil se inclui. Esta éa fusão entre mercado e sociedade, a qual me referi, que as sociedades capitalistas realizaram apagando a diferença entre natureza e cultura. 

Os cra­ticos utopistas e revoltados (normalmente frustrados com fracassos em suas vidas, ou por não aceitarem a imperfeição do homem!) de Rousseau a Marx, atéos herdeiros esquerdistas da atualidade, consideram a coincidaªncia entre mercado e sociedade um rebaixamento da condição humana, de sua dignidade idealista e outras tolices sem correspondaªncia com a realidade. Esta postura éresponsável por comportamentos hipa³critas e estranhos, quase esquizofraªnicos de, por exemplo, alguns profissionais da saúde e professores universita¡rios que condenam o capitalismo mas não se envergonham de suas cla­nicas caras, casas de luxo, carros caros, celulares e computadores de última geração todos produzidos por: empresas capitalistas!

Vejam, portanto, que propostas radicais de quarentena do tipo isolamento social como estratanãgia de combate ao COVID 19, colocando em casa milhões de indivíduos que são a energia vital das cadeias produtivas de bens e servia§os espalhadas pelo mundo, o mercado, que da£o vida a s sociedades ématar a própria sociedade, na medida que um éo outro. Nãoháseparação! Quando escuto do presidente da Ca¢mara dos Deputados a afirmação de que “no momento o importante épreservar vidas e não a economia” de imediato concluo por dois lados:  ou Rodrigo Maia éum idiota irresponsável a ponto de pronunciar esta aberração pantagruanãlica (e presumo que não seja); ou aproveita as ca¢meras de TV para aparecer, com pose de preocupado com os pobres, fazendo da sua frase um sofisma (mentira proposital) barato! Alia¡s, um e outro lado formam o comportamento padrãodos oportunistas (Da³ria, Witzel), esquerdistas (torcendo pelo fracasso da economia, por causa de interesses eleitoreiros) e ingaªnuos (homens e mulheres que da£o faniquitos diante dos desafios da vida e da verdade, chorando nas redes sociais arrependidos por terem votado na direita, revelando mentalidade fra¡gil e infantil).

O que tudo indica éque a quarentena (horizontal e vertical) como remanãdio deve ser adotada caso a caso e durante determinado período, dependendo das caracteri­sticas espaciais, populacionais, eta¡rias e de renda de cada sociedade especa­fica. Assim, empaíses como o Brasil (de grande população, territa³rio continental e a existaªncia de segmentos socioecona´micos vulnera¡veis ao desemprego e a baixa renda), ela deve ser dosada, comea§ando com isolamento geral (horizontal) de todas as camadas sociais e depois evoluindo gradualmente para o isolamento dos grupos de risco (vertical), prioritariamente os indivíduos acima de 60 anos.

Quando o governo propaµe mudança de estratanãgia na aplicação da quarentena ele leva em consideração a relação intra­nseca entre Estado e economia, pois sabe que numa sociedade como a brasileira os efeitos de uma grava­ssima crise econa´mica, com a perda de milhões de postos de trabalho, são mais deletanãrios (negativos) para a saúde coletiva e a paz social do que os casos letais do coronava­rus. Consequaªncias totalmente diferentes (para pior!) do que pode acontecer nos Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra ou Japa£o, pelo simples fato de que sãopaíses ricos. 

Sa³ para ilustrar, ontem e hoje (26/03) recebi nota­cias de saques a estabelecimentos comerciais em Fortaleza e Teresina. A ABRASEL-CE (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes do Ceara¡) informa 5000 demissaµes no Ceara¡ e 6000 em Pernambuco. Quem estãocom a raza£o?!

Como estudioso de sociobiologia me permitirei, para encerrar, breve exerca­cio de fantasia! Do ponto de vista das formigas, uma das espanãcies sociais mais admira¡veis que povoam a Terra, a espanãcie humana éde uma ironia atroz! Aparentemente forte, conquistou todos os ecossistemas terrestres; no entanto, fra¡gil, cai de joelhos com facilidade diante de um ser, um va­rus, difa­cil de classificar atécomo vivo, o que lhe tiraria o status de ser! As formigas devem pensar que os humanos poderiam voltar para a escola e aprender melhor o significado da relação entre seleção natural e seleção cultural. 



Prof. Dr. Geraldo Filho - 
Universidade Federal do Delta do Parnaa­ba  (UFDPar)

 

.
.

Leia mais a seguir