Opinião

Como perdemos nossa memória coletiva de epidemias
Nos últimos 70 anos, naa§aµes mais ricas perderam gradualmente seu senso de perigo com relação a epidemias e infeca§aµes graves. Agora devemos recuperar essa memória instintiva.
Por Gordon Dougan - 31/03/2020



Vida no mundo mais rico: a incidaªncia de infecções e epidemias diminuiu


A vida no mundo moderno mudou drasticamente nos últimos 70 anos. O rápido transporte e comunicações globais se interconectam e envolvem todos nosem uma bolha relativamente 'segura'. Nospaíses mais ricos, atéo COVID-19, raramente anãramos incomodados como uma população por infecções fora dos hospitais. As infecções normalmente aconteciam com outras pessoas e as va­amos apenas raramente emnívelpessoal. Havia e ainda háexceções. A gripe permanece comum, mas muitas vezes éconfundida com um resfriado grave ou febre não diagnosticada. Temos surtos de infecções em hospitais, como o C. difficile, que são drama¡ticos e letais, mas permanecem em grande parte escondidos da comunidade e impactam principalmente os idosos. Consequentemente, esquecemos a ameaça de epidemias. Isso gerou complacaªncia, mal-entendidos e subestimação das coisas que preservam a bolha; vacinas,

Quando eu era criana§a, na década de 1950, as epidemias ainda ocorriam. Tivemos surtos regulares de sarampo, rubanãola e caxumba, enquanto furaºnculos (abscessos) e impetigo na pele ainda eram comuns no norte da Inglaterra, onde eu cresci. Os surtos de febre tifa³ide ainda ocorreram no Reino Unido, como em Aberdeen, em 1964, e a vara­ola mortal da doença ainda perseguia o mundo. A poliomielite ainda era incapacitante para as criana§as e a pneumonia era comum (fui hospitalizado com isso quando jovem). Tambanãm peguei ictera­cia infecciosa (quase certamente Hepatite A), que não pa´de ser diagnosticada, me mantendo fora da escola por semanas. Os médicos de cla­nica geral estavam disponí­veis gratuitamente para visitar os doentes diariamente e as enfermarias do hospital eram administradas por matronas dominantes, impondo limpeza e higiene. Todo mundo estava ciente da ameaça de infecção.

Como os sistemas de saúde foram construa­dos de forma constante nas décadas seguintes, a ameaça imediata de infecção gradualmente se dissipou nospaíses mais ricos, devido a  nossa crescente capacidade de controlar, diagnosticar e prevenir infecções. Como conseqa¼aªncia - esquecemos aqueles dias.

Vida no mundo mais pobre: ​​infecções e epidemias continuam em ritmo acelerado


Esta éapenas metade da história. Infecções e epidemias ainda acontecem nas partes mais pobres do mundo. Estes são em grande parte invisa­veis para a maioria de nosnas áreas mais ricas, mesmo que matem milhões de criana§as a cada ano. Mala¡ria, dengue, infestações por vermes, sarampo e atédifteria ainda são relativamente comuns, principalmente onde háperturbação social. Por exemplo, 100.000 criana§as foram atingidas por uma epidemia de ca³lera no Iaªmen nos últimos 3 anos.

Trabalho regularmente e visito essas configurações para estudar a ca³lera epidaªmica, a febre tifa³ide resistente a antibia³ticos e outras doena§as. Em nosso trabalho, descobrimos epidemias escondidas de febre tifa³ide rastejando pela asia e na áfrica. Visitei hospitais onde o andar da enfermaria estãocheio de criana§as descansando nos braa§os da ma£e, infectadas com salmonela resistente a antibia³ticos e com uma mortalidade não tratada de 50%. Centenas de milhares de criana§as foram perdidas - sabemos pouco disso em nosso mundo mais rico.

A ameaça de retorno: COVID-19


Agora, a ameaça voltou para nosna forma de COVID-19 e não estamos preparados. Estamos assustados e ameaa§ados pelo inimigo invisível. Cadaª? O que éesse pata³geno do coronava­rus e o que ele fara¡ comigo ou com meus entes queridos? O que devera­amos fazer?

Especialistas (e muitos, muitos não especialistas) estãodispostos a nos aconselhar onde hápoucos, se houver algum, precedentes desse tipo de infecção em uma população sem imunidade. Onde estãoa vacina para nos proteger? Onde estãoagora aqueles que questionaram os perigos da vacinação sem equilibrar isso com os benefa­cios? Onde estãoaquela matrona assustadora? A dispersão de gota­culas écomo a difteria se espalha. As bactanãrias que causam difteria ainda estãopresentes aqui no mundo mais rico, mas estamos protegidos por meio da vacinação.

Qual éo valor de especialistas como eu? Eu provavelmente sei mais sobre infecções, epidemias e vacinas do que a maioria. Eu estudei epidemias em todo o mundo. Eu fiz e desenhei vacinas. Sei o que acontecera¡ a seguir com esta epidemia? Qual dos especialistas estãocerto? A Organização Mundial da Saúde (OMS)? Os pola­ticos e suas equipes de cientistas e modeladores?

Na realidade, todos estamos tentando adivinhar informações. Esta éuma doença nova (ou anã, ela já esteve em algum lugar antes, talvez escondida localmente em alguma regia£o?). Os coronava­rus semelhantes, como aqueles que causam resfriados comuns ou atéSARS, nos protegem? Apoio qualquer pessoa que tente intervir construtivamente. A equipe do governo do Reino Unido estãotrabalhando com as melhores informações, tentando prever o futuro. Eu os apoio, assim como a OMS.

Embora o COVID-19 seja incrivelmente transmissa­vel e infeccioso, felizmente, atualmente não éum va­rus altamente virulento. Isso não ameniza a devastação sentida por pessoas próximas que perderam suas vidas, mas éverdade no geral. Além disso, se o va­rus entrar em grandes populações vulnera¡veis, o que poderia acontecer, isso também serátra¡gico. No entanto, precisamos estar continuamente vigilantes, pois isso pode se tornar mais virulento a  medida que se adapta ainda mais aos seres humanos. Causa principalmente doenças graves predominantemente nas pessoas infelizes que se enquadram nos relativamente poucos grupos susceta­veis. Com o coronava­rus, são principalmente os mais velhos e os imunocomprometidos que são vulnera¡veis. Compare isso com a áfrica, onde a salmonela mata 100.000 criana§as por ano - felizmente, o coronava­rus parece atéagora poupar criana§as. Como a maioria das pessoas infectadas com COVID-19 apresenta poucos sintomas ou sintomas relativamente leves, parece ter a "vantagem" oculta de que provavelmente estãofornecendo alguma imunidade, como uma espanãcie de vacina secreta desagrada¡vel. No entanto, mesmo aqui sabemos pouco sobre como a proteção funciona e quanto tempo dura.

Alguns pensamentos


Estou pessoalmente com medo?

Na£o. Estou no final dos anos 60, mas acredito que sobreviveria com base em minha própria avaliação de risco. Gostaria que minha familia entendesse? Na£o. Eu tenho mais medo deles. Essa éa natureza humana.

A epidemia pode rugir rapidamente pela comunidade e depois queimar.

Muitas epidemias fazem. Especialmente se esse va­rus não tiver onde se esconder em termos de hospedeiros humanos, animais ou meio ambiente. Como os aliena­genas invasores em "Guerra dos Mundos", évulnera¡vel. a‰ novo para a população humana e a probabilidade de um ressurgimento da fonte zoona³tica original épequena. No entanto, ainda não sabemos como a epidemia ira¡ evoluir.

As primeiras indicações são de que o va­rus não pode sobreviver por muito tempo no ambiente,
mas émuito cedo para ter certeza de que não tem esconderijo (por exemplo, poderia infectar e persistir em outros animais ou em determinados nichos como esgoto?). Lembre-se de que o va­rus da poliomielite pode sobreviver na águapor meses e essa éuma das razões pelas quais continua sendo uma ameaça e étão difa­cil de erradicar. Felizmente, o coronava­rus não pertence a  mesma familia de va­rus que o va­rus da poliomielite.

Pode se esconder em pessoas imunes?

Esperamos que não. Ouviremos casos de reinfecção, mas podem ocorrer recaa­das de infecção ou falhas nas chamadas de diagnóstico. Alguns va­rus como o HIV se escondem mesmo quando o sistema imunológico éativado. Esperamos que não este. De fato, alguns va­rus, como o va­rus da febre aftosa, podem sobreviver em animais infectados ou atémal vacinados e no meio ambiente por longos períodos.

Esconder-se-a¡ assintoma¡tica nas pessoas por um longo tempo, mesmo que elas nunca tenham aparentemente apresentado sintomas clínicos?

Havera¡ transporte assintoma¡tico por 'Typhoid Marys'? Esperamos que não, essas são as pessoas que da£o esconderijo ao va­rus ou a s bactanãrias e permitem que ele "permanea§a no jogo". Precisamos encontrar qualquer transportadora com compaixa£o e limpar a infecção. a‰ assim que ainda enfrentamos a febre tifa³ide.

Sera¡ que vai desaparecer no vera£o ou voltar no pra³ximo ano?

Ainda não sabemos, mas esperamos que desaparea§a. A temperatura e a vida ao ar livre podem ameaa§ar o va­rus, limitando seu potencial de propagação. Esperamos que sim, mas não écerto.

Podemos fazer uma vacina?

Provavelmente, como sabemos um pouco sobre essa familia de va­rus, mas a ciência da vacinação contra o coronava­rus humano permanece não comprovada, assim como muitas das abordagens e plataformas de tecnologia adotadas para desenvolver uma. Além disso, pode ser caro, exigir testes cuidadosos e demorados e ter um estoque limitado quando feito pela primeira vez. Então, quem éque vai chegar? Apenas alguns poucos, na primeira insta¢ncia, atéque manãtodos de fabricação em escala sejam estabelecidos. Agaªncias como a Iniciativa da Coaliza£o de Preparação para Epidemias (CEPI) estãoajudando pelo menos a encontrar um caminho a seguir.

Podemos prever novas infecções desse tipo no futuro?

Acho que estamos melhorando na identificação de pontos de acesso prova¡veis ​​para as epidemias emergentes. Veja este documento sobre a identificação da fonte global de toda a ca³lera.

De muitas maneiras, temos sorte atéagora. Este poderia ter sido um va­rus MUITO mais agressivo e virulento. Precisamos lidar com isso o mais rápido possí­vel para garantir que não sofra mutações emudanças. Geralmente, os va­rus se tornam menos virulentos a  medida que a epidemia se expande, mas nem sempre.

Precisamos tentar limitar a propagação usando nossos instintos protetores naturais. Limite o contato, respeite a distância e pense nos outros, principalmente nos mais vulnera¡veis.



Gordon Dougan éprofessor do Departamento de Medicina da Universidade de Cambridge e passou sua carreira liderando pesquisas em vacinas, gena´mica de patógenos e rastreamento de doena§as. Seu trabalho de pesquisa ajudou a redefinir nossa compreensão de como as infecções se espalham pelo mundo, um assunto de releva¢ncia direta para a atual epidemia de COVID-19. Estes são seus pensamentos pessoais sobre a epidemia COVID-19.

Este artigo foi publicado originalmente no blog pessoal do professor Dougan.

 

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