Opinião

COVID-19: ciência não éopinia£o, éconhecimento
a‰ missão do cientista promover a ciência e seu modo de produzir conhecimento como um todo. Esse valor éuniversal, não depende da especialidade.
Por Peter Schulz - 12/04/2020

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Durante essa pandemia da COVID-19 nunca se leu, ouviu ou assistiu tantos pronunciamentos, declarações, reportagens e depoimentos em favor da ciência Isso ébem-vindo, mas algumas observações precisam ser feitas e, talvez principalmente, uma lição pode ser aprendida. Das observações, a principal éque os grupos que atéo maªs retrasado atacavam e negavam a ciaªncia, continuam a ataca¡-la e nega¡-la. Deixam, por exemplo, a terra plana de lado e investem no novo tema com desinformações e teorias de conspiração. Uma segunda observação éa de que muitos dos defensores da ciaªncia, que tem se manifestado, talvez não saibam de fato do que se trata, quando se fala em ciência A lição que pode ser aprendida éa de que esse estado de coisas pode levar a uma melhor educação sobre ciência

A ciaªncia, quando admirada, évista pelo paºblico pelos seus resultados, que vão moldando, desde o século XIX, o imagina¡rio do que chamamos de progresso. Quase todos pareceram contentes com essa maneira de ver a ciência No entanto, éuma visão muito restrita e perigosa, pois essa percepção deixa de lado o principal: a ciência éo seu processo de obter os tais resultados que são admirados. Ciência éepisteme, não doxa, repetindo assim, com outros termos, o tí­tulo deste texto.

O que éepisteme, segundo o Diciona¡rio Online de Portuguaªs? “Conhecimento real e verdadeiro, de cara¡ter cienta­fico, que se opaµe a opiniaµes insensatas e sem fundamento” E doxa? “Reunia£o dos pontos de vista que uma determinada sociedade elabora numa dada circunsta¢ncia hista³rica, julgando ser uma ação evidente, contudo para a filosofia isso seria uma crena§a sem comprovação”.

Com esses dois conceitos em mente, cuja utilização empresto (mais uma vez) de Bernadette Bensaude-Vincent em sua análise sobre o abismo crescente entre ciência e paºblico[I], podemos identificar o embate que temos assistido, infelizmente, em torno da COVID-19 em dois aspectos fundamentais: a persistaªncia da negação da absoluta necessidade do isolamento social e a insistaªncia numa medicação providencial, que, no entanto, não existe. Nos dois casos o conhecimento cienta­fico(episteme) enfrenta uma dura batalha “contra as opiniaµes insensatas e sem fundamento” (lembrar a definição acima) no seu papel de informar a sociedade na elaboração de seus pontos de vista. O caso da cloroquina/hidroxicloroquina e similares éemblema¡tico para entender o que éa ciaªncia, com o seu processo de obter conhecimento, e o que ela não anã: uma opinia£o.

A atual campanha pelo uso da cloroquina/hidroxicloroquina, associadas ou não a isso ou aquilo, nasceu com a divulgação ao paºblico de um trabalho preliminar, que sugeria efeitos positivos de tratamento da COVID-19[II]. O que aconteceu? Na anãpoca, mas não muito tempo atrás nesses tempos acelerados, o artigo ainda não havia sido revisado, mas hoje estãopublicado numa revista cienta­fica, embora os pra³prios editores expressassem publicamente ressalvas a  qualidade cienta­fica ao artigo[III]. Aviso tardio demais para evitar os potenciais problemas. Então o que ée não éciaªncia?

Em tempos normais, aos quais esta¡vamos acostumados, o artigo do grupo francaªs provavelmente não teria sido publicado Trabalhos cienta­ficos são julgados por outros cientistas para verificar se háerros e se a metodologia e o rigor estãoali inequivocamente demonstrados. E o artigo em questãonão demonstra isso: écientificamente inadequado. Mas vamos em frente e imaginemos que ele tivesse passado pelo crivo e sido publicado. Outros cientistas leriam e, talvez, considerando a hipa³tese razoa¡vel, apesar do trabalho ser ruim, tentariam reproduzir e levar o estudo adiante. Disso sairia um outro artigo e assim por diante. Apenas após muito tempo éque se forma um consenso e são então éque o pra³ximo passo seria dado: desenvolver um tratamento. Palavras chave da ciaªncia: rigor e manãtodo. Na urgência da situação e com pressaµes externas, constra³i-se o desafio: como responder a isso? Como dizer claramente que o tal remanãdio não funciona e, além disso, prejudica? Ou, como poder anunciar que sim, funciona, mas apenas em tais e tais circunsta¢ncias restritas? Como manter o rigor, o manãtodo e ser ciência construindo conhecimento e não opiniaµes? A resposta já estãodada: são os mega ensaios do qual participam ou participara£o milhares de pacientes em todo o mundo. Sa£o os “megatrials” anunciados pela Organização Mundial da Saúde, uma maneira de obter milhares de dados necessa¡rios, no menor intervalo de tempo. Sim, éurgente, mas épreciso manter o rigor e o manãtodo, senão não éciência

Resumindo uma mensagem importante atéaqui: ciência para ser usada para o bem comum éum consenso da comunidade cienta­fica, construa­do cuidadosamente com muitos estudos validados pelos colegas ana´nimos que analisam cada trabalho. Ou, tentando ser mais rápida, com muitos grupos trabalhando ao mesmo tempo para ter os vastos resultados necessa¡rios para se construir conhecimento e não opiniaµes. Ou seja, ciência não éo resultado anunciado de um aºnico trabalho, éa construção de um consenso pela comunidade cienta­fica.

O que também se nota nessa anãpoca de ciência acelerada éque alguns cientistas, atentos ao rigor, em geral, na sua, muitas vezes diminuta especialidade de pesquisa cotidiana, comea§am a emitir opiniaµes insensatas e sem fundamento sobre assuntos cienta­ficos que lhe são alheios. Cientistas não tem o direito de preconizar o rigor e o manãtodo apenas no seu trabalho. a‰ missão do cientista promover a ciência e seu modo de produzir conhecimento como um todo. Esse valor éuniversal, não depende da especialidade. Um fa­sico não tem o que dizer sobre protocolos em Biologia Molecular, mas percebe quando o rigor e o manãtodo são desrespeitados. Aprendemos também que o paºblico ainda enxerga muitas vezes a ciência como produto de cientistas isolados, que ao darem voz a uma opinia£o, e não mais ao conhecimento (episteme) que deveriam produzir, tornam-se porta-vozes da ciência como um todo para parte da sociedade. Na£o, não são porta-vozes da ciaªncia, pois deixaram de agir como cientistas. Por isso, instituições, que raramente se pronunciam durante o debate de teorias e experimentos dentro da comunidade cienta­fica, precisam se manifestar, como o fez, por exemplo, por meio de um editorial da prestigiosa revista the BMJ[IV]: “o uso dessas drogas éprematuro e potencialmente nocivo”.

Esses mega ensaios clínicos encontrara£o uma resposta para um tratamento? Nãosabemos, mas a ansiedade faz com que se queira que a ciência daª uma resposta rápida. Mas respostas rápidas sem as verificações necessa¡rias não seriam ciaªncia, seriam apenas opiniaµes, que não valem nada e não salvam vidas. Possivelmente matariam mais. E como va£o indo esses testes clínicos? Uma análise publicada em 9 de abril de 2020 por pesquisadores do Imperial College de Londres adverte em relação a  cloroquina e hidroxicloroquina[V]:

“ha¡ muito interesse na cloroquina e hidroxicloroquina para o tratamento da COVID-19, com mais 34 estudos clínicos registrados; no entanto, apenas quatro relatam o uso de protocolos duplo-cego randomizados robustos para investigar a eficiência”.

E já hárelatos de hospitais em diferentespaíses interrompendo os testes clínicos por falta de evidaªncias de efica¡cia, associadas a  manifestação de efeitos colaterais.

Um lembrete hista³rico sobre o perigo de disseminar medicamentos considerados “ma¡gicos” sem os devidos testes preliminares (que acabam, na grande maioria dos casos, desaprovando o uso[VI]) éa traganãdia da Talidomida[VII]. Para tirar daºvidas sobre as inadequações, ilusaµes e nota­cias falsas sobre a cloroquina e outras frentes, uma boa fonte éa Revista Questãode Ciência[VIII] Por ora, acrescento um aviso do jornalista Henry Louis Mencken (1880-1956) aos negacionistas e opinadores: “Para todo problema complexo existe uma solução simples, elegante e completamente errada”. Sa³ não se aplica um adjetivo de Mencken: não hánada elegante no que estãoacontecendo.


*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Peter Schulz foi professor do Instituto de Fa­sica "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente éprofessor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira.

 

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