Por Bernardo B. Queiroz de Moraes, professor associado do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP
Nicolas Poussin a praga de ashod
Em mara§o, a pandemia atingiu a capital. Com mais de um quarto da população infectada, a mortalidade chega a 10 mil pessoas por dia, de todas as classes sociais, acometidas por febre alta, dores de cabea§a e corporais intensas, falta de apetite, na¡usea e va´mitos. Nosso governante foi infectado e auxiliares pra³ximos a ele morrem. Em poucos meses, todo o territa³rio foi atingido (embora a mortalidade seja maior onde hámaior densidade demogra¡fica). Comunidades urbanas e rurais foram catastroficamente afetadas (algumas desapareceram). Nãohácomo se velar, enterrar ou cremar os mortos. Para se evitar a proliferação de outras doena§as, são eles enterrados em covas coletivas longe das cidades ou simplesmente jogados no mar. Uma legislação emergencial se impaµe para minimizar os impactos da peste na sociedade e na economia.
Ha¡ poucos meses, esse relato jornalastico seria considerado fantasioso ou dista³pico… mas também não écontempora¢neo… a‰ hista³rico[1]. Em mara§o do ano de 542 d.C., uma das primeiras pandemias da história, causada pela bactanãria Yersinia pestis (peste buba´nica), atingiu a capital do mais importante impanãrio da anãpoca, o Impanãrio Romano do Oriente. Seu imperador, Justiniano, famoso por ter, quase uma década antes, promulgado três dos mais importantes monumentos juradicos de todos os tempos (as Institutas, o Digesto e o Código osque são as principais partes do que chamamos hoje de Corpus Iuris Civilis[2]), precisava tomar medidas juradicas para controlar a situação e impedir a queda de seu impanãrio.Nãoera tarefa fa¡cil. A peste, dentre outros, matara aquele que, desde o inicio de seu governo, fora o principal responsável pela famosa legislação justinianeia: Triboniano (não por acaso, a produção legislativa de Justiniano teve um natido decranãscimo depois da morte de seu famoso chanceler e ex-questor do Pala¡cio Imperial).
Talvez essa a razãode haver a documentação de pouco mais de uma dezena de constituições imperiais (forma tapica, a anãpoca, de legislar do imperador) no período mais grave da pandemia (três anos: 542, 543 e 544)[3]. Ainda assim, delas se pode extrair que as principais preocupações em momentos como esse tocam o direito privado. E o bera§o de nosso sistema juradico pode dar, mais uma vez, exemplos interessantes de questões que devera£o ser logo enfrentadas pela maioria (senão a totalidade) dospaíses do mundo.
Iniciada a pandemia, a primeira constituição imperial que tratava do direito privado foi promulgada logo em mara§o de 542, por uma reivindicação da corporação dos banqueiros romanos (que tinham muita influaªncia polatica[4]). Aanãpoca, grande parte da população, de todas as classes sociais, encontrava-se endividada por conta de uma fa¡cil oferta de cranãdito em tempos anteriores.
O Ed. 7 (542 d.C.) enfrenta a questãoda morte de parcela significativa dos devedores desses maºtuos banca¡rios e da recusa imotivada de cumprimento dessas obrigações. O imperador, por um lado, flexibiliza o sistema probata³rio em juazo, atenuando algumas exigaªncias de forma (em outros termos, afasta certos requisitos de validade de nega³cios juradicos), e, por outro, facilita o acesso, pelos banqueiros, ao patrima´nio deixado pelo credor falecido.
A ideia éaumentar a probabilidade de cumprimento adequado das obrigações civis, mas isso não significa um privilegiar a todo custo dos banqueiros em desfavor da classe de devedores. Nitidamente as novas medidas pressupaµem a capacidade econa´mica do devedor em pagar suas davidas, tanto que Justiniano expressamente diferencia o devedor probo do amprobo: a constituição imperial ia em auxalio dos credores contra os devedores desonestos (ou seus herdeiros) que, aproveitando-se do momento de caos social, recusavam-se ou dificultavam o cumprimento de obrigações; contudo, também expressamente afirmava que essas regras protetivas não deveriam ser empregadas contra os seus clientes honestos (com os quais deveriam os banqueiros ser equitativos).
Esse esparito de não beneficiar imotivadamente os banqueiros, mas simplesmente de lhes fornecer auxalio juradico diante de devedores de ma¡-fanã, fica reforçado pelo fato de o pra³prio Poder Paºblico ter concedido, passada a pandemia, remissão para davidas tributa¡rias contraadas atéo ano de 544 (conforme Nov. 147, de 553 d.C.).
No ano seguinte ao inicio da pandemia, em 543, a frequência dos a³bitos trouxe a tona um tapico problema juradico romano (ao menos a partir do período cla¡ssico): a complexidade e ausaªncia de harmonia do sistema sucessãorio, que, invariavelmente, causava grandes disputas judiciais (para se ter uma ideia da complexidade do sistema, basta ler as genanãricas disposições das Institutas de Justiniano acerca do tema, em especial Inst. 2, 10, a Inst. 3, 12).
Movido, dentre outras razaµes, com o a¢nimo de evitar uma perigosa sobrecarga do sistema judicia¡rio de então (que causaria nocivas indefinições acerca da titularidade de bens de grande valor econa´mico-social), o imperador determinou uma radical simplificação da ordem sucessãoria (que se concentrou em três categorias de sucessores: descendentes, que teriam prioridade, ascendentes e colaterais) e aboliu as distinções entre homens e mulheres, e entre o parentesco agnatacio e cognatacio (na Nov. 118, que foi, anos depois, complementada pela Nov. 127).
Para se tentar mensurar a importa¢ncia desse novo modelo do direito das sucessaµes, atéa entrada em vigor do nosso primeiro Código Civil, em 1917, esse (a Nov. 118) era um dos textos juradicos romanos mais citados na praxe judicia¡ria brasileira (e nem se precisa dizer que a nossa ordem de vocação heredita¡ria, do CC de 2002, em muito deriva dessa nova regulamentação justinianeia).
No mesmo ano (543), outra constituição imperial (Nov. 125) também explicitava a preocupação com a sobrecarga do sistema judicia¡rio decorrente da pandemia e criava mecanismos outros para redução das demandas.
Já no começo de 544, o impacto psicola³gico da pandemia faz com que o governo volte sua atenção para várias classes de pessoas socialmente vulnera¡veis, que precisavam de uma maior intervenção estatal para sua proteção. Esse o sentido de uma constituição imperial, a Nov. 119, que, ao flexibilizar várias normas juradicas, buscava beneficiar criana§as, viaºvas e agricultores, que ficavam mais desamparados diante do grande e rápido decranãscimo populacional.
Dentre outras provisaµes: (i) garantiu-se a s viaºvas uma maior parcela do patrima´nio familiar, excluindo alguns bens da sucessão (pelo reconhecimento da titularidade da mulher); (ii) ampliou-se a capacidade de agir de menores de idade, possibilitando que, dentro de certos limites, eles administrassem os bens familiares (mais uma vez, ameniza-se um requisito de validade de nega³cios juradicos); permitiu-se também que os menores renunciassem a herana§a mesmo depois de taª-la aceito (evidentemente por terem descoberto que ela era prejudicial); (iii) previu-se prazos diferenciados para a prescrição aquisitiva, em especial para casos em que houvesse ma¡-féde alguma das partes do nega³cio juradico inicial.
Então, quando a crise completou dois anos, a situação das relações de conteaºdo econa´mico ligadas a prestação de servia§os em geral fora§ou a se mitigar a autonomia privada em favor da sustentabilidade do meio social (em especial na capital, Constantinopla). De fato, em centros urbanos e no ambiente rural, prestadores de servia§os e trabalhadores (qualificados ou não) começam a se aproveitar do prolongado caos, aumentando desmesuradamente as contraprestações por seus servia§os e produtos (aumentando por demais a desigualdade social).
Nos momentos iniciais de 542, Justiniano atétentara manter a ideia da livre iniciativa e concorraªncia que reinava no período cla¡ssico (e que ele pretendeu restaurar), mas a grave situação acabou impondo uma retomada do esparito do direito pa³s-cla¡ssico (de maior intervenção imperial na economia). Justiniano afirmou que, ao invanãs de o castigo dado pela peste ter tornado comerciantes, artafices, agricultores, marinheiros etc. pessoas melhores, eles, ao contra¡rio, se tornaram avarentos, querendo reconstruir rapidamente seu patrima´nio (evidentemente a s custas dos menos favorecidos). Por isso, estabeleceu que todos eles estavam proibidos de cobrar por seus produtos e servia§os mais do que era costumeiro e ficavam sujeitos a uma pena de três vezes a vantagem recebida no caso de infração (Nov. 122).
Tais previsaµes não destoavam sobremaneira de outras, também de imperadores anteriores, principalmente depois da intensificação da influaªncia do cristianismo no direito romano (e não se pode duvidar da consta¢ncia desse aspecto em todas as emergenciais constituições imperiais desse período oscf. Nov. 132, também de 544). Sa£o considerados exemplos anteriores de intervenção imperial em matéria econa´mica por influaªncia da caridade crista£: C. 4, 41, 1 (370-375 d.C. osproabe a exportação aos ba¡rbaros de vinho, a³leo e laquidos osconsiderados bens de primeira necessidade), C. 4, 59, 2 (483 d.C. osproibia o monopa³lio ou certos acordos entre os comerciantes) e C. 4, 32, 26, 2 (528 d.C. oslimita a taxa de juros conforme a atividade desenvolvida).
Isso não significava, contudo, uma proteção ilimitada da Igreja. Justiniano foi forçado pela crise a rever sua polatica anterior de preservação dos seus bens, desta vez em prol do que hoje chamaraamos de função social da propriedade (com a Nov. 120, de maio de 544). Sua preocupação maior era manter a produtividade de ima³veis rurais, com vistas a manutenção da população e a retomada da economia. A sua constituição imperial permitiu, por isso, a venda ou oneração de ima³veis da Igreja e criou mecanismos variados de intervenção estatal na administração de instituições relevantes, destinadas a ajudar pobres e necessitados, como os hospitais.
Essas constituições imperiais de Justiniano mostram algumas preocupações que devem pautar o nosso direito civil nos pra³ximos tempos: reforço da atividade econa´mica e o alavio da situação da população em geral. E antecipam questões que certamente ira£o nos atingir, como disputas sucessãorias, aumento de ações judiciais, aumento da vulnerabilidade de parcela significativa da população etc. De uma forma geral, o grande princapio romano da liberdade teve de ser atenuado por uma maior ingeraªncia do Poder Paºblico, em especial atravanãs de legislação emergencial. a‰ o que se pode esperar nos pra³ximos tempos…
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*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva
do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do
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Bernardo B. Queiroz de Moraes
Professor associado do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP
(Texto publicado originalmente no jornal Consultor Juradico oshttps://www.conjur.com.br/2020-abr-07/direito-civil-atual-reflexos-juridicos-pandemia-historia.)