Opinião

Covid-19: filantropia e o investimento em pesquisa
A pandemia mostra duas facetas: uma relativa aos cuidados necessa¡rios que se espera dos servia§os de saúde, e outra relativa a como minorar os efeitos econa´micos, principalmente nas camadas mais vulnera¡veis da sociedade.
Por Marcos Kisil - 07/05/2020

Doma­nio paºblico

A pandemia de covid-19 apresenta grandes desafios pola­ticos, cienta­ficos, sociais, econa´micos e de saúde pública. A limitação dos efeitos da pandemia mostra duas facetas: uma relativa aos cuidados necessa¡rios que se espera dos servia§os de saúde, e outra relativa a como minorar os efeitos econa´micos, principalmente nas camadas mais vulnera¡veis da sociedade. Assim, o objetivo deste artigo éentender o papel da filantropia em apoiar o desenvolvimento cienta­fico por meio de pesquisa acadaªmica para enfrentar essa pandemia.

O que aprendemos com a filantropia de risco

Os riscos sociais e pessoais trazidos pela pandemia podem nos ajudar a rever como a filantropia se encontrava mais preparada, e mais a¡gil, para colaborar com a sociedade brasileira. Publicamente temos informação de que mais de 4 bilhaµes de reais já foram doados, e a este valor pode ser somado os valores feitos e não computados de inaºmeras iniciativas para mitigar a questãoecona´mica de fama­lias por meio de distribuição de cestas de alimentos, distribuição de marmitas, de produtos higiaªnicos e outros. Isso demonstra o forte senso de solidariedade da sociedade brasileira. E nessa filantropia também encontramos o que denominamos de filantropia de risco.

Essa filantropia tem se desenvolvido particularmente nos últimos 30 anos, quando elementos de cara¡ter cultural, econa´mico ou mesmo antropola³gico passaram a entender os problemas sociais por meio de a³ticas disciplinares novas para o setor, nas quais conhecimentos e manãtodos permitem um melhor entendimento da situação-problema que deve ser objeto de alternativas de solução. E uma das razões do aªxito dessa abordagem foi entender que os problemas ose propostas de soluções sociais ossão complexos, podendo resultar de diferentes fatores que de maneira sinanãrgica produzem um determinado resultado ou impacto sobre uma população. Dessa maneira, écomum encontrar propostas de soluções não testadas anteriormente, seja pela novidade, seja pela complexidade. Essas possa­veis soluções apresentam riscos que devem ser entendidos, estudados e incorporados pelos doadores.

E esses filantropos dispostos a correr riscos tem certas caracteri­sticas que explicam seu comportamento.

Primeiro, são profissionais que geralmente fizeram a sua riqueza valorizando o empreendedorismo, e todos os riscos que lhe são inerentes. E aqui despontam os filantropos do Vale do Sila­cio e suas apostas no universo da informa¡tica. Segundo, ao fazerem análise do problema no qual querem se envolver, e buscar possa­veis soluções, aprenderam a identificar, analisar e conhecer esses riscos antes de qualquer ação. Terceiro, aprenderam a exercitar o apetite de risco, ou, em outras palavras, quais riscos estãodispostos a aceitar e que necessitam ser estudados para que se tenha meios de minorar ou eliminar seus impactos. Quarto, aprenderam a cercar-se de profissionais também para suas atividades filantra³picas. Quinto, querem estar pra³ximos da implantação de sua filantropia, já que acreditam que esta atitude pode resultar em novas aprendizagens para a causa ou organizações apoiadas, mas também para o desenvolvimento de sua própria filantropia.

O DNA: do capitalista de risco para o filantropo de risco

Compreender o DNA da filantropia de risco pressupaµe o entendimento da sua relação com o capital de risco. O capital de risco proporciona a fonte subjacente da riqueza e da socialização profissional da maioria dos filantropos de risco.

Os capitalistas de risco tem por atividade identificar startups promissoras e investir nelas. Assumem normalmente uma perspectiva sistemica: combinar várias novas empresas numa são carteira para reduzir o risco do investimento individual. Isso implica distribuir seus recursos de capital para várias organizações, que também tem outros doadores. Os capitalistas de risco apoiam um processo de crescimento claramente definido, com o objetivo de desinvestirem dentro de um determinado período de tempo. Assim, as organizações agraciadas com suas doações sabem que tem um compromisso de entregar o que prometeram com os recursos recebidos, no tempo devido e com o impacto que se anteviu.

Esses doadores tentam traduzir suas experiências de capitalistas de risco em sua filantropia de risco. Assim, épossí­vel identificar duas caracteri­sticas do capital de risco que são traduzidas para a filantropia de risco:

Um sentido apurado de oportunidade. Eles contribuem com capital enquanto os “investidos” contribuem com o saber fazer e com a estrutura para realizar o que se pretende com a doação. Na qualidade de gestores de recursos, os filantropos de risco tem um sentido apurado de oportunidade, como uma das suas competaªncias-chave.
Oportunidade aqui entendida em como identificar um problema que aflige a sociedade e que tem chance de ser resolvido por uma solução técnica, e que tenha o potencial de impactar favoravelmente a qualidade de vida dos beneficia¡rios. Para tanto acredita que investir num projeto piloto possa alavancar novos recursos para levar os seus resultados a escala, ou seja, por meio de sua disseminação e provocação, levar a uma nova pola­tica pública para atingir e beneficiar toda a sociedade.

Um claro entendimento sobre a ciclicidade do investimento. O filantropo de risco entende a doação como uma operação ca­clica, tendo começo, meio e fim. Para tanto desenvolve um processo de trabalho que inclui as seguintes etapas: pesquisar o problema que seráo foco de sua atuação; identificar possa­veis parceiros, sejam eles doadores ou organizações já ativas na busca de soluções; engajar-se por meio do relacionamento interpessoal e interinstitucional para conhecer experiências, motivações, interesses comuns; avaliar as chances de aªxito e os riscos do empreendimento, bem como planos de evita¡-los ou minora¡-los; monitorar e avaliar os processos, produtos e impactos; e finalizar sua participação apoiando a organização receptora a ter sucesso e assim se credenciar a novos projetos que, por sua vez, passara£o por um novo ciclo.

A relação entre o filantropo de risco e a pandemia da covid-19

Revisando o apoio dado pelos filantropos nesta epidemia de covid-19 encontramos que os recursos estãosendo direcionados para a compra de equipamentos médicos, especialmente respiradores, e montagem de novas unidades de tratamento intensivo e hospitais de campanha; compra de equipamentos de proteção individual (EPI); compra de cestas ba¡sicas para as populações mais vulnera¡veis; e campanhas educacionais para incentivar o distanciamento social.

Poranãm, se buscarmos conhecer o que estãofazendo os filantropos de risco, especialmente fora do Brasil, encontramos propósitos de doação bastante diferentes. Aqui va£o alguns exemplos:

O Open Phil, fundado por Dustin Moskovitz, cofundador do Facebook, éuma das poucas organizações filantra³picas que se concentrou em financiar pesquisas cienta­ficas para novas vacinas e soluções terapaªuticas destinadas a possa­veis pandemias;

Gates, juntamente com o Wellcome Trust e a Mastercard do Reino Unido, fizeram uma doação de US$ 125 milhões com a criação do Covid-19 Therapeutics Accelerator, um esfora§o colaborativo de acelerar a avaliação de medicamentos novos e reaproveitados para tratamento da covid-19.

Esses exemplos mostram que os filantropos de risco atuam em áreas importantes para a pandemia: vacinas e possa­veis medicamentos. Esse tipo de doador não écomum no Brasil. Daa­ a importa¢ncia do surgimento de provocações a  participação desses possa­veis doadores. Este éo caso da Universidade de Sa£o Paulo com o lana§amento do Programa USP Vida.

O programa lançou uma campanha de doação para apoiar pesquisas sobre vacinas, medicamentos, desenvolvimento de testes, higienização, equipamentos e loga­stica. Assim, a pergunta anã: quem seriam esses doadores?

Mais recentemente surgiram duas entidades privadas de filantropos que tem como um dos focos o apoio a  pesquisa. O Instituto de Estudos para Pola­ticas de Saúde (Ieps), fundado pelo economista Arma­nio Fraga, com a missão de contribuir para o aprimoramento das políticas públicas do setor de saúde, com especial atenção ao uso da pesquisa econa´mica. O segundo caso éo Instituto Serrapilheira, fundado por Joa£o Moreira Salles, com o objetivo de financiar pesquisas em produção de conhecimento em ciências naturais (ciências da vida, geociências, física, química), ciência da computação e matemática.

Sabemos que o Brasil não tem nenhuma tradição em doar para pesquisa, e especialmente em saúde. A pesquisa évista como uma função fundamental da universidade, que recebe os recursos de organizações estatais como CNPq e Fapesp. Essa escassez de doadores para a pesquisa muitas vezes reflete a visão ideola³gica de que o financiamento da universidade pública deve vir obrigatoriamente do Estado. Essa inexistaªncia de uma cultura de doação se contrapaµe a  sua importa¢ncia, especialmente nos Estados Unidos e Inglaterra, onde doações totalizam bilhaµes de da³lares, como em Harvard, Yale, Oxford.

Assim, o que deveria fazer a USP?

Sabemos que pesquisa éuma área de risco para qualquer investidor, especialmente para um filantropo. Por essa raza£o, um caminho estratanãgico éprocurar filantropos de risco. Assim, éimportante saber como encontra¡-lo, persuadi-lo e fazer dele um coparta­cipe dos riscos.

A captação deve ser feita de maneira sistema¡tica, e se inicia com a criação de um banco de possa­veis doadores. A seguir deve-se estabelecer uma estratanãgia de aproximação e negociação. Para tanto énecessa¡rio documentar o problema a ser pesquisado, a releva¢ncia e aplicação do resultado a ser gerado, seus mecanismos de avaliação para saber sobre os impactos sobre os beneficia¡rios. E, principalmente, a capacidade instalada para a unidade realizar a pesquisa.

Lembrar que esse filantropo estãoa  procura de oportunidades para aplicar seus recursos, buscar resultados de impacto e que deseja ser tomado como um parceiro do empreendimento que estãofinanciando.

Um bom ini­cio éconhecer os empreendedores que fazem parte do “clube dos unica³rnios”, denominação que se da¡ a uma startup que atinge valor de mercado de 1 bilha£o de da³lares. No Brasil temos casos como Loggi, Arco Educação, iFood, Nubank, Gynpass, Movile.

Outro possí­vel grupo são as empresas prestadoras de servia§os de saúde como United Health (dona da Amil), Grupo D´Or, Notre Dame, Unimed, DASA e as empresas de seguro-saúde onde despontam o Itaaº e o Bradesco. Elas já estãodoando para servia§os de saúde melhorarem a sua capacidade de resposta frente a  pandemia. Estariam propensas a entender a necessidade de pesquisa.

Finalmente, este esfora§o resultante da pandemia deveria ser tomado como parte de um movimento para uma cultura de doação a  universidade pública. Isso requer um plano de comunicação e valoração da doação a  pesquisa.


*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com

Marcos Kisil
Professor titular da Faculdade de Saúde Paºblica da USP

 

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