Opinião

A peste, de Albert Camus, e o eterno retorno das pragas e das aflições
Os tristes e preocupantes fatos dos últimos dias reposicionaram esse livro no centro das atena§aµes de quem a respostas fra­volas e não pensadas prefere uma reflexa£o mais sanãria sobre as contingaªncias da vida.
Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy - 28/05/2020

Doma­nio paºblico

Em 1947, o escritor argelino Albert Camus (1913-1960) publicou A peste. Versão romanceada da filosofia existencialista, A peste éum livro que trata da solidariedade que a todos devemos, da liberdade de escolha e da responsabilidade sobre nossas escolhas. Os tristes e preocupantes fatos dos últimos dias reposicionaram esse livro no centro das atenções de quem a respostas fra­volas e não pensadas prefere uma reflexa£o mais sanãria sobre as contingaªncias da vida. Esse éo tema dos embargos culturais dessa semana.

Em uma cidade do norte da Arganãlia (Oran éo nome), em 1940, um médico encontrou um rato morto ao deixar seu consulta³rio. Noticiou o fato ao responsável pela limpeza do prédio, que se mostrou incranãdulo. No dia seguinte, outro rato foi encontrado, morto, e no mesmo lugar. A esposa do médico tinha tuberculose e foi levada para um sanata³rio. O médico recebeu um jornalista francaªs que pretendia entrevista¡-lo sobre as condições de vida dos a¡rabes da cidade.

A quantidade de ratos parecia aumentar exponencialmente. Os ratos começam a ser queimados. Em um aºnico dia, 8 mil ratos foram coletados e encaminhados para cremação. A cidade entrou em pa¢nico. As pessoas sofriam com muita febre, e as mortes se multiplicavam. Decretou-se um “estado de praga”. Os muros da cidade foram fechados. Iniciou-se a quarentena. Preocupava-se com a expansão da doena§a.

Fama­lias foram separadas. Os mais doentes foram conduzidos para outros pontos da cidade. O padre local fez um inflamado serma£o dizendo tratar-se de um castigo divino e que a cidade o merecia. Estavam sofrendo. Mas mereciam, dizia o padre. Prisioneiros eram usados para movimentar e enterrar cada¡veres. Os corpos se amontoavam nas ruas. Criana§as morriam. O padre ainda achava que tudo decorria dos planos divinos. Afirmava que os cristãos deveriam aceitar o destino. O padre morreu. Camus era um anticlerical. Mas era realista.

Em determinado momento, as mortes começam a diminuir. Fechou-se um ciclo. As portas da cidade se abriram. As fama­lias, então separadas, comea§avam a se reunir. Acabou. A praga durou 10 meses. O enredo, no entanto, élongo, e conta com muitas variações e subtemas. Vale a pena uma leitura detida.

Esse livro estonteante éuma clara e direta cra­tica ao nazismo e a  ocupação militar alema£, que humilhou e subjugou os franceses. Camus participou da Resistaªncia, grupo que se insurgia contra os alema£es que ocupavam Paris. Escrito ao longo da guerra, com a expectativa que de que a aflição passasse um dia, A peste éuma lembrana§a de que o pior sofrimento um dia se acaba. Noites são escuras. Mas não são eternas. A peste étambém discurso contra qualquer forma de opressão humana, da qual o nazismo revelava-se como a mais opressiva de todas. A peste éainda atitude de incredulidade para com o absurdo, contra o qual conduz revolta necessa¡ria e libertadora.

Camus concluiu esse desesperado livro lembrando que o bacilo da peste não morre e não desaparece. Avisou-nos que o bacilo da peste fica “dezenas de anos a dormir nos ma³veis e nas roupas”. Ainda, advertiu que a peste “espera com paciaªncia nos quartos, nos poraµes, nas malas, nos papeis, nos lena§os”. E quando volta, “para nossa desgraça, manda os ratos morrerem numa cidade feliz”. Trocando-se ratos e bacilos por outros va­rus e pragas tem-se o quadro aflitivo que eu e o leitor vivemos. E os mais fragilizados mais ainda.


*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy élivre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de Sa£o Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.

 

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