Opinião

Em uma empresa de ma­dia tudo éresponsabilidade social
As ma­dias não apenas representam, mas também constroem a realidade e favorecem o imagina¡rio.
Por Clotilde Perez - 04/06/2020

Doma­nio paºblico

Importante lembrar que uma empresa de ma­dia, guardadas as diferentes possibilidades, reaºne organizações de geração/produção, comercialização e transmissão de conteaºdos de natureza jornala­stica e de entretenimento. A paisagem midia¡tica brasileira apresenta uma configuração bastante singular, com a presença de grupos de ma­dia verticalizados com empresas produzindo conteaºdos que sera£o veiculados na TV aberta e fechada, emissoras de ra¡dio, jornais impressos, revistas, plataformas digitais, ma­dias exteriores e outros, em um exerca­cio de articulação e transbordamento midia¡ticos, além das empresas auta´nomas não integradas em grupos e que compõem a cena como produtoras de natureza diversa, retransmissoras, empresas de infraestrutura, empresas de dados, agaªncias etc.
Diferentemente dos jornais, revistas e plataformas digitais que precisam investir para constituir suas capacidades criadoras e criativas, os canais de transmissão de TV e radiodifusão são uma concessão do Estado, portanto, submetidos a regras de interesse paºblico, inclusive devem atender ao imperativo de serem controlados por maioria de acionistas nacionais. Assim, precisam desenvolver a capacidade produtiva, mas também obter a autorização para o uso das frequências eletromagnanãticas.

Ser uma concessão significa que o Estado da¡ licena§a e autoriza um terceiro para atuar, mediante ditames legais. E por que isso acontece? TVs e ra¡dios (mas também a telefonia ma³vel, a comunicação por satanãlite etc.) operam por meio de ondas eletromagnanãticas que estãodispona­veis, mas são limitadas, por isso são um bem paºblico. O espectro eletromagnético não pode ser usado de maneira desordenada com o risco de se gerar o caos, por isso precisa ser administrado como bem paºblico, ainda que seja imaterial, ou seja, como propriedade de todo ser humano (atendendo ao direito a  comunicação presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos), e, consequentemente, propriedade daqueles que o representam em cada nação soberana.

Detentoras desta capacidade (construa­da e/ou recebida em concessão) de levar mensagens a s pessoas, as empresas de ma­dia expressam a importante função de mediadoras de informações, acontecimentos, relatos, refletindo a realidade na medida em que desempenham uma ação especular, mas simultaneamente sua função étambém simba³lica, uma vez que representam essa mesma realidade a partir das escolhas empreendidas e dos modos de representa¡-la. Assim, a realidade e o simba³lico se encapsulam. Como produtoras de conteaºdo assumem uma terceira função, agora no plano do imagina¡rio, caractera­stico das ficções (mas não apenas) onde a produção de sentido écuidadosamente planejada na intencionalidade de autores, diretores, produtores e atores, servindo ao entretenimento, ao conhecimento, ao nosso deleite sensa­vel, estimulando nossas capacidades imaginativas e sonhadoras. O a¡udio e, ainda de forma mais potente, o audiovisual em movimento são uma potaªncia comunicacional por nos banhar com esta­mulos multissensoriais.

Nos processos comunicacionais engendrados nas e pelas ma­dias, cada um dos atores ésimultaneamente também espectador, na medida em que a visibilidade do desempenho dos papanãis éinsepara¡vel do espeta¡culo que os atores oferecem de si, mais evidente ainda nos meios audiovisuais. As ma­dias ocupando um papel emblema¡tico, de produção e reprodução do simba³lico no contexto social, além de sua caracterí­stica expressiva da realidade e do favorecimento imaginativo principalmente nas ficções, são assim organizações “semiotecnologiicas” que integram as dina¢micas sociais, políticas, econa´micas e culturais, por meio de seus valores mais profundos expressos na seleção e edição das mensagens, suas prática s internas, suas decisaµes que determinam o que deve se tornar paºblico e visível ou não.

As ma­dias não apenas representam, mas também constroem a realidade e favorecem o imagina¡rio. Portanto, a seleção das informações que va£o se transformar em nota­cias não estãoinscrita apenas nos ca³digos de anãtica e prática s profissionais, mas também pelas normas editoriais de cada organização midia¡tica, com isso cresce ainda mais a responsabilidade. Por isso, os textos, as imagens fotogra¡ficas, os infogra¡ficos, os signos sonoros, as reportagens, o tempo de duração ou o tamanho da pa¡gina e qualquer outro conteaºdo e suas expressaµes, ou seja, as representações da realidade que são vinculadas nas ma­dias, se constituem em discursos, pois trazem as marcas indelanãveis das condições em que foram produzidos gerando efeitos de sentido intencionais ou não (o que não diminui a responsabilidade).

Assim, tudo que écomunicado, não apenas no jornalismo, mas em todos os formatos e produtos, incluindo a publicidade veiculada ou inserida nos conteaºdos visuais, a¡udio e audiovisuais, deve ter como princa­pio o benefa­cio social. O que em uma linguagem corporativa fica expla­cito no conceito de responsabilidade social. Ou seja, toda empresa de ma­dia deve ter responsabilidade e ser responsável pelas suas produções e veiculações. E esse princa­pio da responsabilidade social éinegocia¡vel, primeiro porque o direito a  informação éum direito constitucional, portanto, de todos. Segundo porque, ao que se refere a TV e radiodifusão, são ma­dias que operam um bem paºblico (as ondas eletromagnanãticas), portanto a responsabilidade social éredobrada. Terceiro porque não háfena´meno midia¡tico que não seja produtor de sentidos e éaqui que se encontra a “cereja do bolo” encimando as mil folhas dos argumentos que sustentam que tudo em uma empresa de ma­dia éresponsabilidade social.

Responsabilidade éum dever e essa dimensão em uma empresa de ma­dia reveste-se de maior releva¢ncia decorrente de sua natureza produtora de sentidos, portanto, de sua irrefuta¡vel natureza ideola³gica. Desde a angulação da ca¢mera, passando pela nitidez do primeiro plano de uma fotografia, uma imagem em preto e branco, as escolhas das palavras, o tamanho, o tipo e a cor da letra, o tom de voz, a trilha sonora, a roupa, a maquiagem e a expressão da jornalista, quem éa jornalista, o cena¡rio, tudo, absolutamente tudo, produz sentido.

Responsabilidade pressupaµe condições morais para assumir um compromisso e, nesse caso, um compromisso social, com todos os cidada£os, um compromisso firme, transversal e reafirmado cotidianamente com a sociedade, representada pelas relações mais próximas, como os funciona¡rios, fornecedores e parceiros, mas também com cada cidada£o. Nas estruturas organizacionais das empresas de ma­dia não vejo saa­da a não ser criar ou empoderar áreas destinadas a refletir e a guiar a todos nos princa­pios da responsabilidade social, como uma ação indutora mesmo.

Quando naturalmente não acontece ou demora muito para acontecer épreciso indução, como nas políticas de cotas osquando atingem seus propósitos, perdem o sentido e deixam de existir. a‰ possí­vel que décadas depois não sejam mais necessa¡rias áreas, diretorias, vice-presidaªncias, geraªncias de responsabilidade social, mas, por enquanto, éurgente taª-las e quanto mais destacada for a posição, mais significativa serásua atuação. Porque são assim as empresas de ma­dia, seus executivos, gestores e cada um dos colaboradores podera£o se manter conectados cognitiva e sensivelmente com os cidada£os e suas demandas prementes, o que no caso brasileiro éainda mais necessa¡rio dadas as preca¡rias condições de milhões de cidada£os. E essa indução étão fundamental porque comum éo distanciamento decorrente do aªxito, da visibilidade e do poder, pra³prios das empresas de ma­dia. O poder tem a nefasta caracterí­stica de nos desumanizar, e “alguém ” precisa cumprir a função de nos lembrar da nossa condição humana e do nosso compromisso paºblico.

A pergunta-mantra que todo executivo de ma­dia deve se fazer obsessivamente anã: o que eu estou fazendo estãopautado na responsabilidade que tenho com a sociedade? E se quiser refinar suas reflexões, seguem-se outras: esta ação éa melhor ação visando ao bem-estar social prioritariamente? Os efeitos de sentido que tenho produzido a partir das minhas decisaµes são afetivamente os melhores para o Paa­s e para os brasileiros?

Perguntas são sempre difa­ceis porque perturbam, e pautar nossas ações em favor da coletividade éo melhor, mas não ésimples, principalmente porque as lógicas capitalistas favorecem o individual e o privado. Mas quem tem as melhores condições para fazer perguntas e buscar caminhos? Sem exageros utópicos. Quem tem a responsabilidade moral por ser espelho, construtor social e fomentador dos imagina¡rios coletivos? Resposta: quem tem informação, inteligaªncia e criatividade, e essas condições são abundantes nas empresas de ma­dia porque esses são valores dos profissionais e de seus fazeres. E coeraªncia éfundamental; as empresas de ma­dia não podem seguir emitindo sinais contra¡rios, o que significa que a responsabilidade social deve partir do pra³prio nega³cio, tendo as relações com seus profissionais como princa­pio sagrado e assim espraiar-se ao social em tudo que faz.

Na empresa de ma­dia tudo éresponsabilidade social e ésão com essa clareza de propósitos que essas empresas cumprira£o com sua missão primordial de ser espelho da realidade, representa¡-la, portanto, assumir sua função simba³lica, mas também de proporcionar a imersãosensíveltão necessa¡ria como esta­mulo a  nossa capacidade criativa e a  nossa estabilidade emocional.

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Clotilde Perez
Professora titular de Semia³tica e Publicidade da ECA-USP

 

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