Opinião

Um respiro civilizacional para George Floyd
As constataa§aµes que Tocqueville fazia na Democracia na Amanãrica quase 150 anos atrás sobre as desigualdades dos negros americanos ainda se mantem vigentes
Por Rafael Duarte Villa - 05/06/2020


Grupo de manifestantes contra o racismo após a morte de George Floyd deita no cha£o
em frente ao Capita³lio, em Washington, 3 de junho de 2020 - AFP

O assassinato de George Floyd não éum acidente de percurso de um policial americano em “desvio de função”, senão quase toda uma traganãdia civilizacional para ospaíses ocidentais, que fizeram dos direitos humanos e da democracia o core da ordem liberal pola­tica moderna.

Para a sociedade americana, e digo para a sociedade e não para seus governantes, que na atual conjuntura parecem tão afastados daquele core, écomo acordar do sonho americano, não aquele do american way of life, mas aquele baseado no direito a  vida, a  proteção das liberdades civis, a  dignidade das pessoas e a  justia§a. Olhando algumas redes de TV dos Estados Unidos nas últimas semanas centenas de pessoas da sociedade americana tem dado testemunhos em que as palavras que mais se escutam são essas, especialmente, a palavra “justia§a”.

Talvez a maior perplexidade da sociedade americana, e atéseu maior horror, seja o de perceber que as constatações que Tocqueville fazia na Democracia na Amanãrica quase 150 anos atrás sobre as desigualdades dos negros americanos ainda se mantem vigentes. “Nos Estados Unidos”, dizia Tocqueville, “o preconceito dos brancos contra os negros parece tomar-se mais forte a  medida que se destra³i a escravida£o […] deram-se ao negro direitos eleitorais; mas se ele se apresenta para votar corre risco de vida. Oprimido, pode se queixar, mas são encontra brancos entre seus jua­zes. A lei, no entanto, abre-lhe o banco dos jurados, mas o preconceito afasta-o dele. Seu filho éexclua­do da escola em que vai se instruir o descendente dos europeus. […] Nãolhe fecham as portas do canãu, poranãm a desigualdade mal se detanãm a  beira do outro mundo”[1].

Mas éclaro que essas palavras de Tocqueville não cristalizaram no tempo. Mudanças nas prática s sociais de alteridade e nas mentalidades aconteceram na sociedade americana. Por isso, ante o assassinato de Floyd, a sociedade americana não éindiferente ao legado e conquistas de direitos humanos e da democracia. Se a morte de Floyd ésocial e culturalmente dolorosa porque desenterra velhas feridas raciais da sociedade americana, de outro lado, gera uma imensa revolta social em terras daquelepaís.

A sociedade entende bem que o assassinato de Floyd éuma traganãdia civilizata³ria, que pode estar se repetindo com mais frequência do que se imagina, e que, de alguma maneira, a retorna aos tempos de desigualdade em que Tocqueville fez essas reflexões. O a³dio e a injustia§a racial que se creditava enterrados, convicção essa abalada pela morte tra¡gica de Floyd, tem tido uma resposta social, seja no protesto paca­fico ou no violento que se tem espalhado por quase todo o pais. Nãoéainda suficiente para compensar a dor privada da familia de Floyd nem a dor pública da comunidade a  qual ele pertence, mas ésuficiente e sintoma¡tica da mudança humanista operada na mentalidade da sociedade civil americana.

Mas esta crise civilizacional que irrompe em solo americano com a morte de Floyd revela o pior dos sintomas das relações entre Estado e o indiva­duo americano. Como sabemos, Estado e indiva­duo (no caso, americano) sofrem de maºtua desconfianção hista³rica, mas o Estado dos tempos de Franklin D. Roosevelt e seu new deal mostrou-se solida¡rio ao indiva­duo com a extensão dos direitos sociais a trabalhadores, algo assim como a fundação de um contrato social entre Estado e sociedade; e os governos democratas da década de 60 consolidaram esse contrato com um pacto racial que fez dos negros americanos detentores de direitos civis, naturalmente após imensas lutas. Aqueles dois contratos pacificaram muito as desconfiana§as entre Estado e indiva­duo.

No entanto, o que essa crise civilizata³ria revela éo retorno a um padra£o, que também se creditava superado, da alienação e afastamento anãtico e pola­tico entre Estado e sociedade americana.

O principal representante do establishment pola­tico americano na atualidade, Donald Trump, não oferece como compensação votos de solidariedade ao povo negro americano nem um pedido de desculpas pela morte de Floyd nas ma£os de um agente do Estado. Em vez de solidariedade, Trump oferece o tra¡gico som das baionetas e dos tanques nas ruas tomadas por uma sociedade multirracial revoltada que clama por justia§a para Floyd e sua comunidade de cor.

Quando ativistas e gente comum gritam, nas ruas de Los Angeles, Nova York, Filadanãlfia e outras cidades, as palavras “a breather for Floyd ” (“um respiro por Floyd”), tal grito encorpa a ruptura do contrato social e racial americano, afundando o fosso entre a elite estatal politicamente surda e eticamente insensa­vel perante uma sociedade estridente nas suas demandas de justia§a não atendidas.


*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Rafael Duarte Villa
Professor associado da FFLCH/USP e do Instituto de Relações Internacionais da USP e coordenador do Naºcleo de Pola­tica Internacional (NUPRI/USP)

 

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