Opinião

Carta ao editor da The Lancet
Caro editor, acrescente aos artigos de sua revista a data de submissão, revisão e aceite, como todas as revistas que eu conhea§o fazem, mas que não notei na sua.
Por Peter Schulz - 06/06/2020

Doma­nio paºblico

Como quase todo mundo, prestei enorme atenção ao artigo publicado em sua revista e que hápouco foi retratado. a‰ uma pena, não sou ilustrado na área do conhecimento do artigo, mas tenho uma certa experiência sobre literatura cienta­fica. No dia anterior a  publicação de um manifesto/abaixo-assinado criticando o referido artigo, escrevi uma coluna em que fazia uma critica muito ta­mida. Caro editor, acrescente aos artigos de sua revista a data de submissão, revisão e aceite, como todas as revistas que eu conhea§o fazem, mas que não notei na sua. O que eu notei, mas não escrevi então, éque o peso do resultado anunciado pedia a divulgação dos famosos materiais suplementares. a‰ o que revistas, de impacto menores que a sua, fazem para evitar suspeições.  

Para subsidiar o meu ponto de vista, compartilho com o senhor alguns excertos de artigos de divulgação cienta­fica, que venho cometendo háuns três anos. Estão em portuguaªs, mas talvez possamos nos fiar no Google Translator, afinal o rigor anda relativizado. 

Comea§o com uma citação direta de um conterra¢neo seu, mas de outra área do conhecimento, o saudoso John Ziman, que usei no texto “O ethos e seus predadores” de 20/9/2017. Dizia assim: 

“Cientistas conhecem filosofia e sociologia como peixes conhecem a¡gua. Eles entendem instintivamente como viver nela sem se darem conta que assim o fazem. Isto anã, atéque o aqua¡rio éagitado ou (o horror!) éentornado. Parece que estamos vivendo exatamente desse jeito. Ciência estãosendo agitada e forçada a abandonar muitos dos costumes atéentão apreciados. Na³s precisamos pensar seriamente sobre o que estãoacontecendo e o que devemos fazer, não para meramente sobreviver, mas para servir e deleitar a humanidade.” 

A observação de Ziman éde 1996. Eu emendo outro trecho, obedecendo uma ordem cronola³gica, do texto “Referaªncias não lidas, copiadas ou inexistentes: pelo rigor na ciaªncia”, de 5/12/2017. O ‘mistanãrios’ ali refere-se a citação de artigos que não existem, mas o que vocêeditou existe e já foi citado 20 vezes em pouco mais de uma semana. 

“...um sistema acadêmico que incentiva a quantidade de publicações acaba evocando a lei dos grandes números, tornando esses ‘mistanãrios’ numerosos o suficiente para serem visa­veis. Harzing ainda comenta que menos mal que esse artigo tão citado não existe; pior seria se fosse um artigo real citado tantas vezes erroneamente. Esse na verdade éo nosso terceiro caso: artigos retraa­dos (retracted), seja por erro, fraude ou pla¡gio e que continuam sendo citados após as suas retratações. a‰ o que discute um artigo recente na revista Scientometrics [VII]. Aa­ sim temos ideias, hipa³teses, dados e conclusaµes no ma­nimo questiona¡veis sendo propagadas”. 

Sigo em frente, sempre tentando me preocupar com o ethos e o rigor. Pulo para abril de 2018 e extraio um trecho de “Falsa ciência ou pa³s-ciaªncia”, publicado na revista Comciaªncia, no qual modestamente observo: 

“A ciência éuma atividade humana como outra qualquer. Assim uma sociedade que se vaª envolvida por nota­cias falsas e pa³s-verdades, consumindo-as e produzindo-as, dificilmente teria uma parcela dela (a ciaªncia) protegida dessas agressões. Por outro lado, a ciência goza de enorme credibilidade, mas arrisca perdaª-la. Os cuidados a serem tomados estãona própria proclamação de seus manãtodos e princa­pios, agora disseminados ao paºblico geral graças, ironicamente, a s fake news. Desconfio que o relaxamento quanto a esses princa­pios seja devido ao tempo necessa¡rio para respeita¡-los, que se confronta com a dina¢mica acelerada contemporâneada produção cienta­fica”. 

Nãoquero me alongar nessa carta, mas não consigo evitar de mencionar uma coluna que me deu dor de cabea§a, mas que felizmente pude esclarecer em conversas com pessoas que estimo. O nome ésugestivo: “Excelaªncia ébesteira”. Gosto mais da besteira no original, pois emprestei o tí­tulo do de uma palestra “excellence is bullshit” de Cameron Neylon, que cito devidamente na minha besteira. Se quiser ver a a­ntegra ésão por meu nome e o tí­tulo no Google. Vamos ao trecho, pois imagino que sua revista seja sina´nimo dessa excelaªncia (pea§o perda£o antecipado pela extensão): 

“Tendo em mente a pesquisa, de um modo geral, excelaªncia significaria publicar bastante em revistas de impacto, gerando muitas citações. Os autores do artigo na Nature [éo do Cameron e colegas], no entanto, perguntam o que o termo realmente significa, apesar do seu peso pola­tico na construção de reputações e na disputa por recursos escassos. O longo texto revela a ausaªncia de significação epistemica desse termo tão frequente nos discursos e argumenta que ‘excelaªncia não éexcelente’ e, além disso, ‘seu uso não qualificado seria uma reta³rica perniciosa e perigosa, que abala os pra³prios fundamentos da boa pesquisa e erudição.’” 

“A desconstrução écontundente e subsidiada por estudos prévios, devidamente citados, para cada questãocolocada. A primeira éjustamente sobre o que seria excelaªncia. Separar o joio do trigo, ou seja, o não excelente do excelente, ‘diz pouco sobre a importa¢ncia da ciência em si, mas muito sobre quem toma as decisaµes’. Para pular para a segunda questão, reproduzo uma citação direta:” 

“ao usar um sistema humano de filtragem, a coisa mais importante sobre a qual precisamos ter informações não étanto sobre o dado a ser filtrado, mas sim sobre o filtro humano em si: quem toma as decisaµes e por quaª. Portanto, em um sistema de revisão por pares, a atividade cra­tica não éa revisão dos artigos que são publicados, mas a revisão dos revisores.’ [III]” 

Com tudo isso em mente, me lembrei de outra coluna que também deu certa dor de cabea§a, pois afinal como um cientista pode levar o fila³sofo Paul Feyerabend em consideração? Talvez pelo que já observei acima, não émesmo? Assim, volto a  “O fila³sofo e a anticiaªncia”, de fevereiro de 2020, pouco antes da pandemia chegar ao Brasil, pandemia que requer tanta informação qualificada não émesmo? Escolho o trecho pela frase final que usa a palavra “castia§a”, “chaste” em inglês. 

“Minhas simpatias pelo fila³sofo austra­aco me levam a não o interpretar como um devoto da astrologia ou do criacionismo no lugar da ciaªncia, mas sim um crítico de como a ciência muitas vezes se apresenta ao paºblico: racional, objetiva, verdadeira, neutra e sem falhas. E, implicitamente, alertando sobre as possa­veis consequaªncias dessa apresentação castia§a”. 

Assim me despea§o, esperando poder contribuir para a “ciaªncia no novo normal”. Felizmente existem vários outros estudos mostrando de fato o que esse que foi retratado pretendia. Um deles, aa­ de quatro dias atrás, éassinado, inclusive, por pesquisadores da universidade francesa em que trabalhava o causador de todo pandema´nio. Passo o link para sua avaliação: https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.06.01.20118901v1  

Ah sim, talvez o artigo que estava na sua revista tenha passado por revisão “fast-track”, mas não da¡ para saber, pois não tem aa­ as datas, lembra do meu comenta¡rio no comecinho dessa carta? Mas não édesculpa. Então volto no tempo para a coluna de 10/08/2018, onde o tal Cameron Neylon aparece também, “Lei de Moore da publicação cienta­fica?”: 

“Advertaªncia de Neylon: revisão por pares tem a ver com quantidade e não qualidade. A linha fina do artigo no Times Higher Education alerta: ‘revisão por pares não deve ser tratada como vaca sagrada’. A experiência que eu narrei parece concordar com o aviso de Neylon e o conselho de não sacralizar o processo que se transformou, pois “debates” entre revisores e autores reduzem o ritmo de publicação. A “lentida£o” do processo (mesmo sem “debates”) fez emergir a revisão “fast-track” para publicar rapidamente o que seria de interesse imediato: publica-se em até72 horas, mas com a mesma qualidade na revisão. Alega-se”. 

E aqui, meu caro, entra a responsabilidade do editor. 

Atenciosamente, 

Peter Schulz 

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Peter Schulz 
Foi professor do Instituto de Fa­sica "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente éprofessor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira.

 

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