Caro editor, acrescente aos artigos de sua revista a data de submissão, revisão e aceite, como todas as revistas que eu conhea§o fazem, mas que não notei na sua.
Domanio paºblico
Como quase todo mundo, prestei enorme atenção ao artigo publicado em sua revista e que hápouco foi retratado. a‰ uma pena, não sou ilustrado na área do conhecimento do artigo, mas tenho uma certa experiência sobre literatura cientafica. No dia anterior a publicação de um manifesto/abaixo-assinado criticando o referido artigo, escrevi uma coluna em que fazia uma critica muito tamida. Caro editor, acrescente aos artigos de sua revista a data de submissão, revisão e aceite, como todas as revistas que eu conhea§o fazem, mas que não notei na sua. O que eu notei, mas não escrevi então, éque o peso do resultado anunciado pedia a divulgação dos famosos materiais suplementares. a‰ o que revistas, de impacto menores que a sua, fazem para evitar suspeições. Â
Para subsidiar o meu ponto de vista, compartilho com o senhor alguns excertos de artigos de divulgação cientafica, que venho cometendo háuns três anos. Estão em portuguaªs, mas talvez possamos nos fiar no Google Translator, afinal o rigor anda relativizado.Â
Comea§o com uma citação direta de um conterra¢neo seu, mas de outra área do conhecimento, o saudoso John Ziman, que usei no texto “O ethos e seus predadores†de 20/9/2017. Dizia assim:Â
“Cientistas conhecem filosofia e sociologia como peixes conhecem a¡gua. Eles entendem instintivamente como viver nela sem se darem conta que assim o fazem. Isto anã, atéque o aqua¡rio éagitado ou (o horror!) éentornado. Parece que estamos vivendo exatamente desse jeito. Ciência estãosendo agitada e forçada a abandonar muitos dos costumes atéentão apreciados. Na³s precisamos pensar seriamente sobre o que estãoacontecendo e o que devemos fazer, não para meramente sobreviver, mas para servir e deleitar a humanidade.â€Â
A observação de Ziman éde 1996. Eu emendo outro trecho, obedecendo uma ordem cronola³gica, do texto “Referaªncias não lidas, copiadas ou inexistentes: pelo rigor na ciaªnciaâ€, de 5/12/2017. O ‘mistanãrios’ ali refere-se a citação de artigos que não existem, mas o que vocêeditou existe e já foi citado 20 vezes em pouco mais de uma semana.Â
“...um sistema acadêmico que incentiva a quantidade de publicações acaba evocando a lei dos grandes números, tornando esses ‘mistanãrios’ numerosos o suficiente para serem visaveis. Harzing ainda comenta que menos mal que esse artigo tão citado não existe; pior seria se fosse um artigo real citado tantas vezes erroneamente. Esse na verdade éo nosso terceiro caso: artigos retraados (retracted), seja por erro, fraude ou pla¡gio e que continuam sendo citados após as suas retratações. a‰ o que discute um artigo recente na revista Scientometrics [VII]. Aa sim temos ideias, hipa³teses, dados e conclusaµes no manimo questiona¡veis sendo propagadasâ€.Â
Sigo em frente, sempre tentando me preocupar com o ethos e o rigor. Pulo para abril de 2018 e extraio um trecho de “Falsa ciência ou pa³s-ciaªnciaâ€, publicado na revista Comciaªncia, no qual modestamente observo:Â
“A ciência éuma atividade humana como outra qualquer. Assim uma sociedade que se vaª envolvida por notacias falsas e pa³s-verdades, consumindo-as e produzindo-as, dificilmente teria uma parcela dela (a ciaªncia) protegida dessas agressões. Por outro lado, a ciência goza de enorme credibilidade, mas arrisca perdaª-la. Os cuidados a serem tomados estãona própria proclamação de seus manãtodos e princapios, agora disseminados ao paºblico geral graças, ironicamente, a s fake news. Desconfio que o relaxamento quanto a esses princapios seja devido ao tempo necessa¡rio para respeita¡-los, que se confronta com a dina¢mica acelerada contemporâneada produção cientaficaâ€.Â
Nãoquero me alongar nessa carta, mas não consigo evitar de mencionar uma coluna que me deu dor de cabea§a, mas que felizmente pude esclarecer em conversas com pessoas que estimo. O nome ésugestivo: “Excelaªncia ébesteiraâ€. Gosto mais da besteira no original, pois emprestei o título do de uma palestra “excellence is bullshit†de Cameron Neylon, que cito devidamente na minha besteira. Se quiser ver a antegra ésão por meu nome e o título no Google. Vamos ao trecho, pois imagino que sua revista seja sina´nimo dessa excelaªncia (pea§o perda£o antecipado pela extensão):Â
“Tendo em mente a pesquisa, de um modo geral, excelaªncia significaria publicar bastante em revistas de impacto, gerando muitas citações. Os autores do artigo na Nature [éo do Cameron e colegas], no entanto, perguntam o que o termo realmente significa, apesar do seu peso polatico na construção de reputações e na disputa por recursos escassos. O longo texto revela a ausaªncia de significação epistemica desse termo tão frequente nos discursos e argumenta que ‘excelaªncia não éexcelente’ e, além disso, ‘seu uso não qualificado seria uma reta³rica perniciosa e perigosa, que abala os pra³prios fundamentos da boa pesquisa e erudição.’â€Â
“A desconstrução écontundente e subsidiada por estudos prévios, devidamente citados, para cada questãocolocada. A primeira éjustamente sobre o que seria excelaªncia. Separar o joio do trigo, ou seja, o não excelente do excelente, ‘diz pouco sobre a importa¢ncia da ciência em si, mas muito sobre quem toma as decisaµes’. Para pular para a segunda questão, reproduzo uma citação direta:â€Â
“ao usar um sistema humano de filtragem, a coisa mais importante sobre a qual precisamos ter informações não étanto sobre o dado a ser filtrado, mas sim sobre o filtro humano em si: quem toma as decisaµes e por quaª. Portanto, em um sistema de revisão por pares, a atividade cratica não éa revisão dos artigos que são publicados, mas a revisão dos revisores.’ [III]â€Â
Com tudo isso em mente, me lembrei de outra coluna que também deu certa dor de cabea§a, pois afinal como um cientista pode levar o fila³sofo Paul Feyerabend em consideração? Talvez pelo que já observei acima, não émesmo? Assim, volto a “O fila³sofo e a anticiaªnciaâ€, de fevereiro de 2020, pouco antes da pandemia chegar ao Brasil, pandemia que requer tanta informação qualificada não émesmo? Escolho o trecho pela frase final que usa a palavra “castia§aâ€, “chaste†em inglês.Â
“Minhas simpatias pelo fila³sofo austraaco me levam a não o interpretar como um devoto da astrologia ou do criacionismo no lugar da ciaªncia, mas sim um crítico de como a ciência muitas vezes se apresenta ao paºblico: racional, objetiva, verdadeira, neutra e sem falhas. E, implicitamente, alertando sobre as possaveis consequaªncias dessa apresentação castia§aâ€.Â
Assim me despea§o, esperando poder contribuir para a “ciaªncia no novo normalâ€. Felizmente existem vários outros estudos mostrando de fato o que esse que foi retratado pretendia. Um deles, aa de quatro dias atrás, éassinado, inclusive, por pesquisadores da universidade francesa em que trabalhava o causador de todo pandema´nio. Passo o link para sua avaliação: https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.06.01.20118901v1 Â
Ah sim, talvez o artigo que estava na sua revista tenha passado por revisão “fast-trackâ€, mas não da¡ para saber, pois não tem aa as datas, lembra do meu comenta¡rio no comecinho dessa carta? Mas não édesculpa. Então volto no tempo para a coluna de 10/08/2018, onde o tal Cameron Neylon aparece também, “Lei de Moore da publicação cientafica?â€:Â
“Advertaªncia de Neylon: revisão por pares tem a ver com quantidade e não qualidade. A linha fina do artigo no Times Higher Education alerta: ‘revisão por pares não deve ser tratada como vaca sagrada’. A experiência que eu narrei parece concordar com o aviso de Neylon e o conselho de não sacralizar o processo que se transformou, pois “debates†entre revisores e autores reduzem o ritmo de publicação. A “lentida£o†do processo (mesmo sem “debatesâ€) fez emergir a revisão “fast-track†para publicar rapidamente o que seria de interesse imediato: publica-se em até72 horas, mas com a mesma qualidade na revisão. Alega-seâ€.Â
E aqui, meu caro, entra a responsabilidade do editor.Â
Atenciosamente,Â
Peter SchulzÂ
*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva
do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do
maisconhecer.com
Peter SchulzÂ
Foi professor do Instituto de Fasica "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente éprofessor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira.