Opinião

No elevador da casa-grande
No Rio de Janeiro, Joa£o Pedro, em Recife, Miguel Ota¡vio. Dois meninos. Pobres. Negros.
Por José Nicolau Gregorin Filho - 08/06/2020

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Dizer do tempo de escurida£o em que vivemos pode ser lugar comum. E são exatamente esses lugares comuns o objeto desta discussão. Nãome refiro apenas a  pandemia, que além de nos trazer uma doença física, traz feridas emocionais. A doença física pode ser facilmente percebida pela contabilização de mortos e enfermos superlotando hospitais e, mesmo essa, alguns segmentos pola­ticos não tem olhos para ver. Mas e aquela doença mais profunda, emocional e causada pelo afastamento dos familiares, dos amigos, aquela que todos sentimos no vazio de nossas casas, na solida£o muitas vezes necessa¡ria para que possamos nos salvar e salvar quem amamos?
Em meio a todos esses sentimentos terrivelmente novos vindo inesperadamente e nunca sentidos por gerações, salta aos olhos outro, já antigo: o preconceito racial.

Talvez porque estejamos vivendo neste anacra´nico medievalismo em que se discute o terraplanismo e outros absurdos, distanciados socialmente, o mundo nos chega pelas telas, e suas cores são violentas, sombrias.

Esta semana o mundo ficou perplexo com a morte violenta de George Floyd. As redes sociais, telefones sem fio dos tempos atuais, organizaram manifestações gigantescas nos Estados Unidos e em outras partes do mundo. Mas, hátempos, cada sociedade tem o seu George Floyd. Ou va¡rios.

Nãodiscutirei esse e outros fatos a  luz de algumas ciências sociais, também tão desprezadas por parte da sociedade de hoje, mas por um sentimento comum, de alguém comum que vaª escancaradas situações negadas no nossopaís, hátempos, situações que dizem respeito ao racismo cra´nico da sociedade brasileira e o seu negacionismo também cra´nico.

No Rio de Janeiro, Joa£o Pedro, em Recife, Miguel Ota¡vio. Dois meninos. Pobres. Negros. Duas cidades emblema¡ticas na trajeta³ria hista³rica, social e pola­tica do Brasil, cidades de extrema importa¢ncia desde a cola´nia, cidades em que as classes mais abastadas sempre conviveram com a escravida£o e todos os males advindos desse sistema cruel, com realezas desumanas que ainda teimam em existir.

Nessa onda de negacionismo, ainda háquem coloque em daºvida o sofrimento de um povo explorado a s últimas consequaªncias atéhoje. No Brasil, muito se fala do racismo nos Estados Unidos, do segregacionismo e de como isso estãoimpregnado naquela sociedade. E aqui, sob nossos olhos? Como a situação no Brasil foi-se moldando de modo a camuflar, a trazer sutileza a s ligações entre a casa-grande e a senzala, não se coloca luz sobre tantos crimes menos emblema¡ticos, crimes cotidianos, ocorridos no interior das casas de fama­lia, termo já cristalizado para designar o local de trabalho das empregadas domésticas. Por quaª? Nas comunidades pobres não hácasas de fama­lia? Elas não tem fama­lia? Muitas não são ma£es de fama­lia?

a‰ nesse ponto que me vem a  mente um dos grandes contos escritos em la­ngua portuguesa: “A menor mulher do mundo”, de Clarice Lispector.

Lembro-me porque o texto inicia com um explorador famoso, branco, em expedição pela áfrica Equatorial e, dentre a tribo com os menores pigmeus do mundo, ele encontra a menor mulher dessa tribo. Gra¡vida. Chamaram-na de Pequena Flor e sua foto estava em todas as publicações dominicais naquele final de semana. A narradora descreve as reações de várias pessoas em seus lares. Aquela foto foi capaz de despertar lembrana§as e sentimentos os mais diversos, os mais perversos e escondidos.

De criana§as a idosos, todos tiveram alguma reação ao vislumbrarem aquela mulher tão pequena, tão pequena e negra. Alguns queriam que a ma£e a trouxesse para dentro de casa, dariam comidas e a transformariam num brinquedo, outros gostariam de taª-la como empregada. Outros passaram por momentos difa­ceis, cheios de lembrana§a de outros momentos que eram escondidos e deviam ficar fora do alcance dos olhos como a Pequena Flor. Sentimentos que não se mostram, sentimentos que se preferem apagados.

Assim éo racismo no Brasil. Tal como o conto de Clarice Lispector, ele se manifesta no interior das casas, na exploração das pessoas que trabalham nas “casas de fama­lia”, no sinal de tra¢nsito, quando seria de bom tom fechar os vidros do carro quando oferecem balas, ou mesmo aqueles encontrados por uma “bala perdida”, mesmo dentro de suas casas. Um racismo que fica dentro de uma caixa, dentro de outra caixa, dentro de mais uma, a  semelhança do texto clariciano.

Tornou-se muito cômodo dizer que os preconceitos e, entre eles, o racial, não existem no Brasil. Tornou-se cômodo não mostrar, não lana§ar luz para um crime contra uma pessoa negra. Ta£o cômodo quanto encontrar a sociedade na missa de domingo e, escondido, levar uma criana§a para uma benzedeira ou frequentar um terreiro na periferia, tentando esconder uma tradição religiosa que hátempos existe nopaís.

O que dizer de uma criana§a, filha da empregada, deixada num elevador pela patroa enquanto a ma£e levava um cachorro para passear em Recife? A empregada trouxe o cachorro. Vivo. Deparou-se com seu filho caa­do no cha£o. O botão do nono andar foi acionado pela patroa e o menino subiu. Elevador de servia§o, jamais uma criana§a negra, filha de empregada estaria num elevador social de um edifa­cio de classe média alta. O menino foi deixado pela patroa de sua ma£e sozinho, naquela caixa. O cachorro chegou ileso. Foi paga uma fiana§a e a patroa voltou para a casa-grande junto ao seu ca£o de estimação. A empregada foi enterrar seu filho.

No Rio de Janeiro, Joa£o Pedro émorto por um tiro dentro de sua casa. Evidente que se tentou colocar ao menino o ra³tulo de bandido, que havia armas dentro de casa. Afinal, dentro das caixas da favela muitas fama­lias pensam existir bandidos, são caixas para as quais não se olha.

As últimas palavras de George Floyd foram: “não consigo respirar”. Os dois meninos apenas queriam as suas ma£es. Talvez não estivessem conseguindo respirar em meio a tanto descaso, em meio a tanta violência. Talvez asfixiados dentro das caixas construa­das pelo racismo, racismo esse que vem se permitindo não ser mais sutil, pois são faz aumentar na sociedade brasileira de modo perverso e escancarado.

Tambanãm não conseguimos respirar. E não conseguiremos enquanto todas as palavras e manifestações não forem transformadas em políticas para a aniquilação do racismo. Espero que esses crimes não tenham o final do conto de Lispector, em que uma senhora fecha o jornal e diz:

“osDeus sabe o que faz”.


*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


JoséNicolau Gregorin Filho
Professor do Departamento de Letras Cla¡ssicas e Verna¡culas e do Programa de Pa³s-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de La­ngua Portuguesa da FFLCH/USP

 

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