Falar de antifascismo sem antirracismo éfalar nada.
Cortesia
Nos últimos dias, cresceu a visibilidade da luta contra o fascismo e também contra o racismo. E isto já motivou uma discussão nas redes sociais sobre qual seria a “prioridade de pauta†sinalizando em alguns casos a incompatibilidade das duas agendas.
Penso que háuma grande confusão tea³rica nesta questão. E esta confusão comea§a pela definição do que éfascismo, nazismo e totalitarismo. Confusão esta que, inclusive, levou a alguns intelectuais brasileiros a argumentarem, durante as eleições, que não se tratava de um risco para a democracia e apenas a eleição de um expoente de guerras culturais. Muito do que estamos atualmente passando no Brasil decorre deste erro de avaliação. Jornais chamavam ose alguns ainda chamam osBolsonaro de um polatico “de direita†ou “conservador†e não exatamente o que ele anã: um expoente da extrema-direita.
Herbert Marcuse, no texto O combate ao liberalismo na concepção totalita¡ria de Estado, tem uma definição precisa de “totalitarismo†e por que os regimes nazistas e fascistas se encaixam nesta perspectiva. O fila³sofo alema£o afirmava que o ideal totalita¡rio se expressa como contraponto a ordem liberal, dando a impressão de que a contradição estãono modelo institucional liberal e o totalita¡rio. Quando Bolsonaro e seus seguidores desferem ataques ao Congresso, ao Supremo Tribunal Federal e a imprensa osinstituições ba¡sicas do ordenamento liberal –, éesta ideia que se expressa.
Poranãm, Marcuse vai muito mais além . Ele afirma que este aparente conflito de “visaµes de mundo†obscurece o fato de que a ordem social estruturada sob a propriedade dos meios de produção permanece osisto anã, o capitalismo. Por isto, o que ocorre para Marcuse, éque a ordem totalita¡ria aparece como alternativa quando o modelo liberal chega nos limites da garantia da manutenção do modelo de reprodução do capital.
Em outras palavras, o capitalismo liberal gera o capitalismo totalita¡rio, muito em função de um refluxo da dina¢mica concorrencial e as contradições internas na classe dominante que podem ser gerenciadas dentro das instituições da democracia liberal osesta éa função dos sistemas de pesos e contrapesos entre poderes da República, da pluralidade e alterna¢ncia na representação polatica, entre outros. Este olhar de Marcuse não énovidade, já foi analisado por Marx em O 18 Bruma¡rio de Luas Bonaparte.
O modelo de reprodução do capital atualmente se baseia no padrãoda acumulação flexavel, na fragmentação produtiva emnívelmundial, o que tem como consequaªncia a brutal concentração de riquezas, o desmonte dos sistemas de proteção social, o fortalecimento dos mecanismos de imposição do imperialismo e a transferaªncia de renda do trabalho para o capital. Na medida em que este projeto foi sendo aplicado, a partir da cooptação de segmentos polaticos de centro-esquerda, outrora defensores do Estado de Bem-Estar Social como a social-democracia europeia e, aqui no Brasil, pelo PSDB, evidenciou-se a degradação da qualidade de vida para a maioria da população. Por isso, essas forças políticas foram perdendo sua base de apoio, abrindo espaço para a emergaªncia de uma narrativa de extrema-direita de cara¡ter xenofa³bico e, em algumas nações como no Brasil, de cunho moralista.
a‰ aqui que retomamos Marcuse, que afirma que o projeto totalita¡rio não se resume apenas em uma forma de governo, ao fato do Estado radicalizar sua postura “terrorista†contra determinados segmentos sociais. Para Marcuse, as particularidades existentes nasDimensões de Estado e sociedade desaparecem. Diferentemente do modelo liberal, em que as esferas públicas (da polatica) e privadas (da economia) mantem relativa autonomia entre elas, háqui uma convergaªncia forçada das duasDimensões sintetizando a sociedade com o pra³prio Estado.
Ha¡, aqui, uma aparente dissona¢ncia entre um Estado forte totalita¡rio e a ideia de Estado manimo do projeto neoliberal. Mas éuma dissona¢ncia aparente, pois o que ocorre éum deslocamento dos aparatos estatais para a dimensão da repressão e controle da sociedade civil. A minimalização do Estado ocorre por uma dimensão de convergaªncia de burocracias pública e privadas, de forma que se abre a possibilidade de um esvaziamento das instituições reguladoras e intervenientes nas relações econa´micas. Poranãm, a necessidade de se manter um aparato repressivo grande colide, parcialmente, com a narrativa neoliberal de redução do Estado, e esta éuma das dificuldades do bolsonarismo.
Como exemplo disto, a frase do ministro da Educação Abraham Weintraub, na famosa reunia£o dos ministros com o presidente em 22 de abril, ésintoma¡tica: “odeio essa coisa de povos indagenas, povos ciganos, são existe um povo brasileiroâ€. E o que seria este “povo brasileiroâ€? A resposta estãonas manifestações dos bolsonaristas usando sambolos como a bandeira do Brasil e a camiseta da seleção brasileira de futebol e do pra³prio Bolsonaro quando afirma constantemente que ele representa o povo brasileiro porque foi eleito, e qualquer questionamento as suas posições seria um desrespeito a vontade do povo brasileiro, mesmo não tendo sido eleito pela maioria absoluta da população. A partir daa, abertamente o executivo defende a apropriação privativa dos aparelhos de Estado, como a Polacia Federal, os instrumentos judiciais, o apoio a órgãos jornalasticos que se alinham incondicionalmente com ele.
Entretanto, Marcuse não define o nazifascismo apenas nesta santese totalizante Estado/sociedade, mas também na dimensão da sociedade civil. Marcuse destaca o papel do partido nazista na unificação desta ideia de sociedade (sintetizada a partir do Estado) e indivaduo. Mais que um Estado autorita¡rio, uma sociedade também autorita¡ria. Impaµe-se uma ideia de indivaduo que éaderente a este modelo. Marcuse fala que esta santese na sociedade érealizada pelo partido nazista, e aqui reside uma das dificuldades do Bolsonaro pois tal organização não existe osdaa que ele tenta apelar para um movimento “difuso†de bolsonaristas que se organizam como milacias, para a capilaridade das organizações neopentecostais. Entretanto, este cara¡ter difuso e capilar abre Espaços para contradições internas.
Voltando a Weintraub, que odeia povos indagenas, quilombolas, ciganos, entre outros, e para quem são existe um povo brasileiro. Que sociedade (ou povo) este modelo de Estado autorita¡rio brasileiro quer sintetizar? Justamente aquele que tem condições estruturais de se incluir neste modelo de reprodução do capital: a classe dominante branca. A normatividade branca tem aqui uma dupla função: primeiro, justificar a exclusão racial de negros e indagenas; segundo, legitimar o projeto antinacional uma vez que brancos são minoria no Paas. O totalitarismo no Brasil tem o natido sentido de transformar opaís em uma grande senzala do imperialismo em que segmentos manãdios bolsonaristas aspiram ser capatazes (e alguns pretos, como Sanãrgio Camargo, aspiram ao cargo de capita£es do mato…). Estas aspirações pontuais são uma das explicações do percentual de apoio ao bolsonarismo mesmo entre os mais pobres.
Assim, o que temos éum governo totalita¡rio, com tendaªncias fascitizantes que são não se realizam plenamente pela ausaªncia de condições objetivas institucionais e conjunturais. Mas os sinais são claros.
A epidemia da covid-19 desvelou a iniquidade do neoliberalismo. A crise econa´mica se aprofundou e evidenciou as brutais desigualdades sociais. A Organização Mundial da Saúde alertou que a disseminação do coronavarus no Brasil decorre das desigualdades sociais. Isto e o aprofundamento da crise do capitalismo com a epidemia ampliaram justamente o elemento mais cruel de tudo isto: o racismo. Por isto, o episãodio do assassinato de George Floyd em Minneapolis, Estados Unidos, levou a onda de protestos no mundo todo contra o racismo. Um protesto que expressa um represamento de sentimentos de consternação tendo em vista o crescimento significativo de assassinatos de jovens negras e negros nas periferias, que este ano, mesmo em tempos de isolamento social, cresceu mais de 50%.
A equação que se coloca éesta: crise no modelo neoliberal do capitalismo, nos modelos institucionais (liberais e autorita¡rios) evidenciados pelo aspecto estrutural da desigualdade que éo racismo. Por isto, a agenda antirracista, antifascista e antineoliberal tendem a confluir. Evidente que nem todos tera£o esta leitura. O editorial do jornal O Globo de 31 de maio, que propaµe uma “concertação polatica†envolvendo o pra³prio Bolsonaro (apelando para um bom senso de quem nunca o teve), as falas de figuras como Ciro Gomes de que “não éhora das pautas identita¡rias†ou argumentos ressentidos de liderana§as do PT contra a frente antifascista apontam os limites da branquitude normativa em levar adiante a luta antifascista. Nãofoi a toa que quem fez o discurso antifascista mais emocionante nestes dias foi o ativista negro Emerson Balboa oscriticando o fascismo e evocando Malcolm X. O protagonismo mais consequente da luta antifascista éda população negra, atéporque esta sequer viveu em uma ordem democra¡tico-liberal. Nos Estados Unidos, Martin Luther King, no seu famoso discurso Eu tenho um sonho, diz que os afro-americanos receberam um “cheque sem fundo†da democracia liberal. No Brasil, a democracia nunca chegou para o povo preto da periferia.
Falar de antifascismo sem antirracismo éfalar nada.
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Dennis de Oliveira
Professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) e pesquisador do Instituto de Estudos Avana§ados (IEA) da USP