Fomos surpreendidos por mais uma atitude (talvez devesse dizer mais um golpe) do atual governo contra as Humanidades: o corte das bolsas de iniciaa§a£o cientafica do CNPq para nossa área.
Cortesia
Na semana retrasada, fomos surpreendidos por mais uma atitude (talvez devesse dizer mais um golpe) do atual governo contra as Humanidades: o corte das bolsas de iniciação cientafica do CNPq para nossa área. Ou melhor, as bolsas não foram cortadas, pois elas sera£o oferecidas desde que os jovens alunos pesquisem temas que não são de sua área, o que torna o fato mais grave, pois significa uma tentativa de esvaziar o sentido de nosso trabalho.
Nãoéfa¡cil nem produtivo (no melhor sentido) argumentar contra uma polatica pragma¡tica ou oportunista (de desprezo a cultura), em nome de valores que não estãono universo dessas figuras que, mesmo falando em alta tecnologia, veem o mundo com a estreiteza do balca£o de secos & molhados; confesso mesmo que nem eu seria das pessoas mais autorizadas a argumentar nessa direção (prefiro lembrar as várias e importantes considerações de colegas da faculdade neste mesmo jornal). Afinal, quanto vale para essa mentalidade o trabalho de ensinar ao aluno o sentido que uma meta¡fora possa ter num verso; o sentido que um verso possa ter num poema; o sentido de um poema numa obra; e a obra como testemunha de um tempo (de umpaís) de fezes e maus poemas. Enfim, mudemos de assunto.
No semestre passado, tive oportunidade de participar de um evento ocorrido no prédio de Letras da faculdade, comemorativo aos 60 anos das relações diploma¡ticas entre Brasil e Coreia do Sul, coordenado pela professora Yun Jung Im, docente responsável pela área de Estudos Coreanos da FFLCH, com a presença de algumas dezenas de estudantes de langua e literatura coreanas da faculdade, mostrando o trabalho que a professora Yun tem feito.
O evento contou com a participação do Instituto de Tradução Litera¡ria da Coreia e a presença de três escritores que estãofazendo a atual literatura coreana: o poeta Kim Ki-taek, autor de Chiclete (7Letras, 2018), apresentado num belo texto pela professora e colega de departamento Viviana Bosi, além da leitura muito boa de alguns poemas pelos alunos presentes; o romancista Kang Byoung Yoong, autor de Pepino de alumanio (Topbooks, 2018), cujo romance foi apresentado também por uma aluna do curso e, posteriormente, discutido pelo jornalista da TV Globo alvaro Pereira Jaºnior, que, como bom jornalista, resolveu fazer a apresentação na forma de uma entrevista com o autor; e finalmente, Park Min-gyu, romancista e contista premiado, cabendo a mim apresenta¡-lo. Trata-se de um autor ainda não publicado por aqui, mas tive acesso a dois contos traduzidos, um deles pela própria professora Yun, e outro por um grupo de estudantes supervisionados pela professora.
Além dos dois contos mencionados, tive acesso também a um depoimento de Park Min-gyu sobre sua obra, fazendo parte de um caderno organizado pela professora e pelo instituto mencionado, distribuado aos presentes. Nele, Park Min-gyu fala de algumas cenas e seres que o levam a escrever, coisas vistas no dia a dia ou mesmo em imagens da madia. Se tiver que resumir essas imagens, ao lado de uma ou outra situação de beleza, o que mais sobressai no depoimento são imagens de um mundo violento: violência do Estado contra o povo, das instituições contra os indivaduos, e da pessoa contra a pessoa.
Fica claro no depoimento que o que o faz escrever éainda a capacidade, mesmo depois de tudo que vimos e presenciamos atéaqui, de estranhar o mundo, de não o aceitar como suporta¡vel e denunciar o absurdo. E, por fim, escrever a partir do maior dos absurdos, o fato de estar neste mundo exercendo a “profissão de terra¡queo†sem saber por que nem para quaª.
Para comentar brevemente os dois trabalhos, o primeiro dos contos chama-se “Ah sim? Sou girafaâ€, que conta a história de um estudante de colanãgio tanãcnico e trabalhador informal de meia-idade os“zanzando de bico em bico†–, cujo emprego principal consiste em ficar empurrando as pessoas para dentro do vaga£o do metra´. No começo, o “empurrador†estranha a prática e se sente constrangido em ter de apertar as costas das pessoas; mas seu “treinador†lhe ensina como resolver o problema: “Nãopense naquelas pessoas como pessoas. Pense que são coisas como carga. Entendeu?â€, o que acaba ajeitando a situação; ademais, o supervisor faz um discurso aos empurradores, mostrando que eles “eram o cerne da economia nacionalâ€.
Como o ha¡bito naturaliza tudo, o empurrador foi aprendendo bem o ofacio. No inacio, ria sem parar quando via um rosto amassado contra o vidro da porta; depois, foi deixando de achar graça e começou a ficar incomodado com a cena. Um dia, um idoso éejetado com força para fora do trem, assim que a porta se abriu: era seu pai. Quando o pai se recompaµe ajeitando o na³ da gravata, mesmo sem conseguirem olhar-se nos olhos, ocorre um momento epifa¢nico ligando pai e filho: “E, por um a¡timo, por um tempo tão curto que daria apenas para ajeitar a gravata, uma corda passou por entre nosatando-nos num na³ que jamais iria se desfazerâ€.
A partir de então, o narrador comea§a a referir-se ao pai com uma sanãrie de imagens poanãticas, que contrastam com a prática desumana do trabalho: primeiro, ao empurrar o pai num vaga£o muito lotado, diz que “naquele momento, quase que inaudavel, algo como um sopro discreto pareceu vazar do seu ta³raxâ€. Quando a ma£e fica doente, no hospital o pai olha para o filho em silaªncio: “Era uma expressão oca, escura oscomo um avestruz que de repente perdera os movimentos de uma perna no meio da pradariaâ€. Novamente, ao empurrar o pai na manha£ fria de outono, veio-lhe a ideia de um “ganso selvagem, que de repente solta um choro no vento frio da manha£ e se vaiâ€. Finalmente, ao fora§a¡-lo (cada dia mais magro) para dentro de um vaga£o lotado, diz que teve de “suportar a onda de toda a humanidade, e a toda hora me dava de cara com o papai que mais parecia um ramo de alga flutuando sobre elaâ€.
Numa manha£ de inverno rigoroso, o pai pede ao filho que não o empurre e deixe para coloca¡-lo no pra³ximo trem; o filho atende ao pedido. Entretanto, depois desse episãodio o pai desaparece, e o narrador não o encontra mais, mesmo saindo a campo para saber de seu paradeiro em todos os lugares possaveis. Se já havia aparecido a atmosfera insãolita no desaparecimento do pai de maneira inexplica¡vel, irrompe desta vez propriamente o fanta¡stico com a volta do pai.
Certa manha£ de primavera, depois de seu turno e enfastiado com a vida que levava os“Por que raios levamos essa vidinha… num lugar desses†–, estãosentado num banco pra³ximo a estação olhando para o canãu com a cabea§a tombada para trás, sentindo a terra girar, quando surge seu pai, vestindo um terno alinhado e transformado numa girafa, a que ninguanãm em volta presta atenção. Tocado pela presença paterna, comea§a a chorar e a dar notacias para o pai, pedindo que ele volte para casa, pois a situação iria melhorar, agora que um “um tal de Moody’s†subiu um degrau de “nossa categoria de credibilidadeâ€. O pai (a girafa), entretanto, olha-o com a mesma pupila cinzenta do homem “fra¡gil†que “vivera almoa§ando marmita pontualmente dia após diaâ€. Como o elefante gauche de Drummond, a girafa surge aos olhos do narrador com uma impressão tamida e de placidez, mas desinteressada, “num mundo enfastiado†e “que já não craª nos bichosâ€.
Mas éno segundo conto, chamado “Kasaªuteraâ€, que esse cara¡ter insãolito e ira´nico se radicaliza. O título do conto faz referaªncia a um bolo de massa leve que se assemelha ao pa£o-de-la³. Trata-se de um jovem e solita¡rio narrador, que agora se paµe a tecer comenta¡rios sobre a importa¢ncia da geladeira para a vida humana, pois com ela, de fato, o homem encontrava uma maneira de preservar a vida. O aºnico problema, conforme o narrador, éter de suportar o barulho que a geladeira faz, tão barulhenta que o narrador tem certeza de que ela era um hooligan na vida passada que voltou como geladeira para esfriar a cabea§a. A referaªncia não égratuita: trata-se do episãodio da final da Liga dos Campeaµes de 85, em que um dos mais belos espeta¡culos do esporte mundial acabou em barba¡rie. A referaªncia antecipa muito do tema do conto.
Obcecado pelo barulho da geladeira, comea§a a estudar os princapios e a história da refrigeração, chegando a uma conclusão importante: “Graças a geladeira, pela primeira vez na história, a humanidade vence a luta contra o apodrecimento. Foi uma vita³ria fanta¡sticaâ€. Mais do que isso, diz que o século XX não éo século da Guerra Fria e, sim, o século da refrigeração, chegando a outra conclusão importante: visto do a¢ngulo da geladeira, como este mundo écontaminado!
Se o primeiro conto era uma mistura de lirismo e fanta¡stico, este segundo segue outro registro de estilo, misturando desta vez fanta¡stico e satarico. De fato, toda a primeira parte do conto, tecendo vários comenta¡rios sobre a importa¢ncia da geladeira, já cria a atmosfera insãolita e satarica que se acentua a partir de agora. Diz então o narrador que tudo depende do modo como se usa a geladeira, e que, a partir daquele momento, ele iria utiliza¡-la “de maneira mais nobreâ€, como um “dever para com a humanidadeâ€.
O propa³sito e a importa¢ncia do fato estavam resolvidos; mas o problema era o critanãrio de seleção das coisas a serem preservadas. Pede alguns conselhos: o dono da cervejaria que frequenta sugere experimentar de tudo; a locata¡ria da quitinete, que ele deveria preservar somente as coisas preciosas; o jovem biblioteca¡rio, que pelo bem da humanidade deveria aprisionar la¡ os males do mundo, comea§ando pelos Estados Unidos; o dono da loja de discos, que ele deveria guardar um elefante. No final das consultas, resolve “tacar [na geladeira] tudo o que pudesse se tornar mau ou tudo o que fosse preciosoâ€. Sendo assim, escolhe como primeira coisa a preservar As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, o que diz muito do estilo do conto; e ao depositar o livro num gesto ritualastico, diz que para o bem da humanidade, Gulliver estaria preservado por um longo tempo.
Depois de guardar algumas obras preciosas, atémesmo o barulho da geladeira se torna um som agrada¡vel. Certo dia, ele percebe uma mudança insãolita e vaª, literalmente, que a refrigeração éalgo maravilhoso. Coincide com a visita do pai, que vem contar que estava atolado em davidas, que o filho herdaria essa davida contraada com os amigos do country club, e seria melhor portanto vender tudo que pudesse.
O narrador chega a conclusão de que essa coisa chamada “pai†éum mal para a humanidade e, sem titubear, resolve coloca¡-lo na geladeira; a ma£e, que aparece logo em seguida, tem o mesmo destino. E comea§a então a encher a geladeira de muita coisa: quase dois milhões de desempregados, algumas centenas de moradores de rua, congressistas, o pra³prio presidente, o alto escala£o da polacia, diretores de fa¡bricas, universidade, metra´, empresa de jornal, McDonald’s etc. E tudo com o mesmo critanãrio do inacio: ou era algo precioso a ser guardado, ou “um mal do mundoâ€. A segunda categoria acaba pesando bem mais.
Na última noite do ano e do século, o narrador vai tarde para casa, depois de beber bastante com dois amigos na cervejaria, lugar a salvo de sua geladeira. Já quase meia-noite, abre a geladeira e vaª que ela havia se transformado em algo caa³tico como o pra³prio mundo, sem conseguir distinguir mais uma coisa da outra. Com o frio da madrugada entrando pelas frestas e o pensamento a s voltas com um mundo que não parava de se reproduzir e produzir destruição, o narrador já cansado acaba caindo num “sono longo e lindo [que] avançou pelo hemisfanãrio norte do meu cérebroâ€, com camelos no deserto “olhando os meteoros que caaam desenhando grandes caudasâ€.
O último dos segmentos éo de número 7, equivalendo ao primeiro dia do novo século, em que também descansaria esse pequeno deus satarico, que tentou reordenar o caos na sua pequena ma¡quina do mundo refrigerada. Acorda com uma sensação de algo novo, mas que não fazia sentido: percebeu que a geladeira não fazia mais barulho nenhum: “Meu coração despencou. O que aconteceu com o mundo? China? Amanãrica? E os meus pais! Eu puxei a porta da geladeira para abri-laâ€. E encontra a geladeira vazia. Mas no centro havia uma fatia do bolo que da¡ título ao conto, que o narrador apanha com cuidado como se “estivesse lidando com um mundo [que] se tornou unoâ€. O bolo, “quente, macio e perfeitamente quadradoâ€, de “aroma doce e delicado […] era um gosto capaz de perdoar todas as coisasâ€. E para a própria surpresa, enquanto mastigava o bolo macio e quente, comea§a a chorar.
Se na leitura do outro conto a poesia de Drummond nos ajudou a perceber o vanculo do narrador com a girafa, talvez aqui também seu poema “Um boi vaª os homens†pode nos ajudar a entender o vanculo do narrador com a fatia de bolo (e o animal): ao morder a massa doce, ela não desperta nele nenhuma cadeia de memória involunta¡ria e, sim, o choro, como algo que apontasse para o inicio de tudo e, no mesmo passo, lhe trouxesse a sensação de ter descoberto novamente “os segredos do fenoâ€, como diz o boi no poema. Ha¡ uma nostalgia funda nessa imagem de um narrador melanca³lico (a sa¡tira éprova disso) e nosta¡lgico da inocaªncia perdida. O resto não ésilaªncio: éreunia£o de ministros.
Voltando ao evento de onde partimos, um momento especial estava reservado para o fim. Ao final de sua breve fala ospois simpaticamente Park Min-gyu dissera que estava quase afa´nico por ter bebido muito no dia anterior –, o escritor disse aos presentes, vendo tantos alunos brasileiros interessados na cultura e literatura coreanas: “Quando eu terminar de falar, vocaªs va£o me aplaudir, mas sou eu que devo aplaudir vocaªsâ€. E assim se fez: Park Min-gyu aplaudiu os presentes e foi muito aplaudido por todos.
De fato, foi emocionante ver aquelas dezenas de jovens interessados em outra literatura e outra cultura, que da£o sentido a sua vida, sem qualquer apelo de mercado, e felizes pela oportunidade de se encontrarem com alguns de seus autores queridos, num evento propiciado pela literatura osesse lugar sempre privilegiado para o encontro com o outro que, afinal, somos nós.
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Por Ariovaldo Vidal, professor do Departamento de Teoria Litera¡ria e Literatura Comparada da FFLCH-USP