Opinião

Brasil: o Assassinato do Espa­rito
As universidades em va­nculo com instituia§aµes que defendem a ciaªncia, os movimentos democra¡ticos além da imprensa ainda não vendida, saira£o fra¡geis mas legitimadas na luta pela vida humana.
Por Roberto Romano da Silva - 19/06/2020


Roberto Romano concedeu palestra no Encontro de Reitores da Andifes (virtual),
quinta-feira, 18, a convite do presidente da entidade professor Joa£o Salles Pires da Silva

"Wenn ich Kultur ha¶re ... entsichere ich meinen Browning! Hanns Johst

As universidades surgem antes do Estado moderno e reaºnem pessoas que se libertaram da servida£o eclesia¡stica ou nobre imperante no feudalismo. O campus acolhe intelectos na busca do verdadeiro, do bom, do belo e do justo. Os Estados nascentes buscam técnicos nas artes médicas, engenharia, direito e disputam alunos ou professores, prometem melhores sala¡rios e bolsas. Tal procura leva Francis Bacon ao dito canãlebre: knowledge and power meet in one. Bacon enuncia com base na Raison d’ a‰tat que são hápoder efetivo e não apenas uso da força, se pola­tica estatal e conhecimentos cienta­ficos formam um bloco. Os modernos poderes estatais instalam universidades como base do poderio. Nelas surgem formas inovadoras de direito, contabilidade, arquivos, bibliotecas, laboratórios, arquitetura, engenharia e outros. Os governos que valorizam suas universidades crescem no concerto das Nações. A anãtica de tipo baconiano atinge camadas religiosas que inovam a pola­tica. Os puritanos ingleses destronam o rei, instauram a república na fée no pensamento cienta­fico. Derrotados, eles rumam a s Cola´nias americanas onde inauguram centros de ensino e pesquisa. Seus docentes praticam matemáticas, física, latim, grego, história, literatura. A partir da Europa as técnicas e as ciências atingem a¢mbito planetario. A indústria e o comanãrcio fornecem produtos tecnola³gicos confia¡veis no mercado internacional.

A colaboração entre Estados e universidade sofre abalos nos séculos 19 e 20. Na Contra Revolução conservadora que sucede o impanãrio napolea´nico surge a denaºncia do pensamento cienta­fico, a sua relativização em favor de doutrinas que acentuam a féemotiva e a disciplina. Universidades são vistas como ameaça contra os valores tradicionais. Estamos nos germes dos movimentos que, radicalizados, definem “ciências” e técnicas a serviço de doutrinas etnocaªntricas. Comea§am as ameaa§as mais graves para a vida universita¡ria internacional nos movimentos nacionalistas. Ao chegarem ao poder tais formações osnazismo e fascismo entre elesosimplodem a ordem acadaªmica e nomeiam seus adeptos nos campi. Sa£o expulsos os que impediriam tais prática s.

Ateadas as fogueiras de livros se completa o trabalho de sapa. Os nazistas aplicam verbas apenas nos setores que servem aos seus desa­gnios, reduzem onívelsuperior de ensino a  propaganda ou censura. Cientistas deixam a Alemanha por não aceitar o regime. Sete ganhadores do praªmio Nobel saem dos campi a partir de 1933. Anna-Maria Sigmund resume a situação germa¢nica, quase a mesma da brasileira de agora: “O abandono pelo Estado nazista do potencial econa´mico e intelectual (...) assim como a atitude retra³grada do IIIº Reich diante da pesquisa e da ciência arrastou em prazo espantosamente curto consequaªncia tremendas. Enquanto os nazistas no poder obstaculizavam os trabalhos de cientistas sanãrios (...) nutrindo entusiasmo por teorias obscuras (...) os fa­sicos que eles expulsaram preparavam a guerra atômica”. Nos EUA o obscurantismo explode na Guerra Fria. Com base em crena§as perseguidores da ciaªncia, das técnicas e das artes se instalam no Congresso. A intimidação macartista fere a instituição de pesquisa. Vencida na aparaªncia, a onda contra¡ria ao saber se mantanãm em jornais, ra¡dios, televisaµes financiada por liderana§as pola­tico-religiosas. Numerosas seitas guerreiam a ciência naquelepaís.

Falemos do Brasil. Menciono o ministro Celso de Mello e o perigo nazista. O solo brasileiro éregado por a¡guas totalita¡rias. O integralismo reaºne adeptos que geram herdeiros. Duas ditaduras implantam a força física repressiva que ameaça instituições, da imprensa aos campi. Para corroborar o que enuncia Mello, o primeiro signo do horror instaurado pelo nazismo éa corrosão da autoridade anãtica e cienta­fica no culto ao La­der. Dissolvendo as atividades fins dos campi, o projeto totalita¡rio mina a sua autoridade administrativa. Reitores e Conselhos perdem a direção e assumem grupos ligados aos ministanãrios. Alocações de recursos, escolhas de professores, bolsas para estudantes passam a ter como conditio sine qua non o alinhamento ao governo. A escolha dos dirigentes exige adesão aos Pala¡cios.

Na ditadura brasileira de 1964 ficou canãlebre o reitor Calmon ao dizer a um soldado: “filho, aqui são se entra por vestibular”. Era um assalto externo a  instituição. Agora o assalto vem no corte de verbas, exclusão de áreas, etc. O MEC arranca recursos das ciências humanas mas um astra³logo écondecorado. Na Alemanha nazista tudo se faz para adequar a forma acadaªmica a  do governo, estatiza¡-la no pior sentido. Para tanto éusada a fraqueza financeira das universidades após 1929 e a hiperinflação. Os recursos são la¡tego e afago na crise. No Brasil tudo éfeito para reduzir a responsabilidade governamental pelo ensino paºblico universita¡rio.

Na pandemia éclaro o ataque do poder a  autoridade cienta­fica. Como expaµe Hanna Arendt, o meio de elidir o totalitarismo estãona autoridade anãtica, cienta­fica, pola­tica. a‰ por semelhante motivo que os fascistas minam a autoridade dos campi. O deboche de ministros quando falam das ciências éarma contra o saber. O responsável pela Educação não age apenas como personagem circense. Ele despreza milaªnios de saber humano. As massas que negam a esfericidade da Terra são hordas que logo arrombara£o laboratórios e bibliotecas. Se o presidente classifica tra¡gica molanãstia como “simples gripe” e nega os saberes cienta­ficos ao impor fa¡rmacos, estamos na aurora do fascismo. Na reunia£o ministerial de abril último o ma¡ximo afastamento entre governo e saber ocorre no ensino dado a um general pelo ministro da Economia. “Li oito livros sobre cada caso de reconstrução na Europa”. Em nossas universidades o estudante que fizesse tal display de preguia§a intelectual, um microsca³pico saber, seria impedido de ir a exame de qualificação no mestrado, por pesquisa insuficiente.

A erosão da autoridade acadaªmica e dos recursos paºblicos na pesquisa e no ensino piora a fuga de cérebros.O brain drain foi combatido por autoridades universita¡rias e agaªncias de fomento a  pesquisa. No governo federal de hoje ele édolorido aªxodo de cientistas. Causa sofrimento ler nota­cias de brasileiros que lideram pesquisas de ponta no mundo. Aqui, o deserto acadêmico se anuncia. A prática de nossos ministanãrios, sobretudo o que se dedica a  Educação, também gera a morte de milhões. Sofremos o sequestro dos saberes em proveito de poderes que não alicera§am o Estado numa sociedade forte. O governo gera astenia. Entre os primeiros atos palacianos estãoa demissão de um cientista respeitado. O costumeiro no Ministanãrio da Educação éperene ataque aos saberes. Tudo lembra as falas e atos histria´nicos do poder nazista diante da ciaªncia: para seus defensores a Teoria da Relatividade seria apenas uma “conspiração judaica para reduzir os alema£es a  escravida£o”. Aqui, a ciência éposta como conspiração contra o Brasil. Cito a fala da ministra dos Direitos Humanos (!): “A igreja evanganãlica perdeu espaço na história,perdemos o espaço na ciência quando deixamos a teoria da evolução entrar nas escolas, quando nosnão questionamos (...) e aa­ cientistas tomaram conta dessa área”.

Uma pandemia édita “gripezinha”. Quem em institutos de pesquisa respeita¡veis denuncia a corrosão da natureza édemitido e caluniado pela mais alta autoridade dopaís. A crise médica ilumina triste misanãria social: 60% dos munica­pios não possuem águae esgoto dignos do nome. Mesmo o Rio de Janeiro recebe águaoriunda de esgotos. Nãoexiste Plano de educação das massas brasileiras para o trabalho tanãcnico de ponta. O empresariado não aplica recursos em inovação tecnologiica preferindo, conforme o jornal Valor Econa´mico, usa empréstimos oficiais em ta­tulos do governo norte-americano. Parecem ilusãorias as advertaªncias de especialistas em Ciência, Tecnologia e Inovação. Em nota técnica sobre pesquisa e desenvolvimento, preparada para o Ipea em janeiro de 2020, Priscila Koeller suspeita que os dispaªndios em Pola­tica e Desenvolvimento brasileiro podera£o se reduzir a na­veis inferiores aos do ano 2000.  

Na saúde os cortes no SUS deixam quase inerte um sistema excepcional. Dois ministros da saúde saem por não aceitar “receitas” de cura fornecidos por via pola­tica, boicote da quarentena, guerra contra prefeitos e governadores. Tudo ruma para agravar a luta contra a ciência e os cientistas. Sairemos da pandemia com taxas minguadas de investimento em C/T. Universidades perseguidas pelo ministanãrio que deveria protegaª-las ficam sem poder pagar pesquisadores, docentes, funciona¡rios: estara£o prontas para serem privatizadas. Além da perseguição oficial existem mais desafios para os que administram universidades. Mesmo com o fraco entusiasmo de nossos empresa¡rios para resguardar os servia§os paºblicos, atéa pandemia impostos iam para os cofres do Executivo, distribua­dos penosamente aos campi. Mas o que fazer quando os mesmos impostos chegam aonívelmais baixo? Escutemos a tributarista Claudia Roberta de Souza Inoue: “a‰ certo que a redução das atividades nos diversos setores também implicara¡ uma queda na arrecadação, afetando as contas públicas. Poranãm, como conciliaremos o pagamento dos tributos a vencer nas competaªncias futuras que coincidira£o com os pagamentos dos tributos adiados se a crise continua atingindo a todos e se temos uma projeção de queda de 4,7% do PIB ao longo de 2020? A crise estãogerando uma recessão quase sem precedentes, de alto impacto no cena¡rio tributa¡rio, exigindo a adoção de medidas especialmente para o momento pa³s-pandemia”. Muitos empresa¡rios brasileiros e não dos menores tem ojeriza por pagar impostos. Se cai a economia “normal”, caem mesmo os impostos. Sem eles chega a umníveldrama¡tico o investimento em P&D, C/T, universidades, laboratórios. Pouco sobra para inovação tecnologiica e produção competitiva no mercado nacional e internacional. Menos impostos e parcos recursos nas ciência e técnicas: ca­rculo vicioso épouco para descrever tal queda.

Um povo enfraquecido por crimes sanita¡rios e sem plano nacional de educação técnica, dificilmente sobrevivera¡ a doenças coletivas, pois endemias novas podem ocorrer em data próxima. A ma£o de obra brasileira reduzida a imenso exanãrcito de reserva sem amanha£ no mundo tanãcnico pode assistir a morte de milhões. Mesmo os setores que tomam vias de comanãrcio exterior como o agronega³cio e repetem a monocultura, por motivos ideola³gicos estãoameaa§ados. Para combater a China o governo usa diplomacia de empréstimo dos EUA e conspira sob a batuta de um astra³logo e do... ministro da Educação. Em manobra conta¡bil foi retirado do Bolsa Fama­lia milhões de reais. Apa³s pressaµes, a verba retorna (atéquando?) ao seu fim. E num instante desesperador não se pensou em aplicar tais recursos na saúde, educação, universidades. A maquiagem do número dos mortos pelo Covid entra no marketing do terror.

“Enquanto o governo despreza o conhecimento, a Alemanha destina 2,8% de seu PIB (3,677 trilhaµes de da³lares segundo dados de 2017) em pesquisa, e anuncia para os pra³ximos três exerca­cios a aplicação de 14,6 bilhaµes de euros anuais em tecnologia. Em 2018 os EUA aplicaram US$ 476,5 bilhaµes e a China (...), US$ 370,6 bilhaµes em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D). Enquanto isso o governo brasileiro corta de forma dra¡stica recursos dos ministanãrios da Educação e da Ciência e Tecnologia e Inovação (…).O MCT&I, além do corte de algo como 40% de seu ora§amento, foi punido com a redução bolsas do CNPq e das aplicações de fomento . Por preconceito ideola³gico e limitação cognitiva o governo investe contra a universidade pública e gratuita, responsável pelo melhor ensino superior, pela melhor pós-graduação e por 90% da pesquisa”. (Roberto Amaral).

Ra³seas profecias não escondem o cena¡rio pavoroso a ser vivido por 200 milhões de seres humanos. A licena§a para que particulares importem e usem armas poderosas evidencia que se prepara um confronto de mila­cias e democratas. O governo estãolonge da cultura, pois depende dos reva³lveres, ele apaga o saber. Com promessas de ditadura obscurantista vem a ameaça de usar as Fora§as Armadas contra a cidadania. O quanto écorrosivo o governo no campo universita¡rio pode ser visto na Medida Provisãoria de 10/06/2020. Ela permitiria ao ministro da Educação escolher reitores. Tudo sem consulta a docentes, funciona¡rios, estudantes. Assim os donos provisãorios do poder retomariam a pola­tica dos regimes totalita¡rios. O tristemente hista³rico discurso de posse pronunciado pelo reitor Martin Heidegger, que assume o princa­pio nazista do Fa¼hrung, exemplifica a deletanãria intervenção ideola³gica no a¢mbito universita¡rio. Crises são oportunidades para dissolver instituições, praticar o assassinato do espa­rito. O fascismo manifesta loucura. Mas como em Hamlet no seu dela­rio hámanãtodo. O ataque e o cerco a s bases universita¡rias segue a lógica da força bruta.

Magna­ficos Reitores, sois representantes de cientistas e professores aos milhares e, por tal motivo,  alvos imediatos. Desejo a todos, pleno sucesso na tarefa tormentosa de honrar a autoridade anãtica e acadaªmica dos campi. O projeto obscurantista serávencido. Mas perguntamos o custo em existaªncias e saber. As universidades em va­nculo com instituições que defendem a ciaªncia, os movimentos democra¡ticos além da imprensa ainda não vendida, saira£o fra¡geis mas legitimadas na luta pela vida humana. O governo estara¡ em minaºscula nota ao péda pa¡gina na história dos crimes. Analistas insistem em colocar a folha de parreira sobre o poder federal. Eles falam em prática “populista ”. Deixemos as camuflagens. Falemos de fascismo porque “fascista éalguém com profunda identificação com um determinado grupo ou nação em cujo nome se predispaµe a falar, que não da¡ a ma­nima para os direitos de outros e estãodisposto a usar os meios que forem necessa¡rios –inclusive a violência ospara atingir suas metas” (Madeleine Albright, Fascismo, um alerta, citado por Ruy Samuel Espa­ndola in Marcelo Peregrino, da Democracia de Partidos a  Autocracia Judicial). O governo não da¡ a ma­nima para o direito a  vida dos cidada£os. O saber énegado por ele na espiral violenta em que suas hordas se engolfam contra todos os que não dobrarem os joelhos para o La­der e seus caºmplices. ašltima palavra: lembro o nome do Magna­fico Reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo. E a  Universidade Federal de Minas Gerais, violentada em sua dignidade acadaªmica e também anãtica, por quem dever a respeitar e proteger.

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Roberto Romano da Silva
Professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayra³s, 1979), “Conservadorismo roma¢ntico” (Editora da Unesp), “Silaªncio e Rua­do, a sa¡tira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Raza£o de Estado e outros estados da raza£o” (Editora Perspectiva). 

 

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