Opinião

Que as brasas convertam-se em chamas de esperana§a
Ex-diretora escreve sobre o incaªndio no Museu de Hista³ria Natural e Jardim Bota¢nico e o seu precioso acervo
Por Mônica Meyer - 24/06/2020


Sala de triagem no Museu, onde o acervo resgatado épreparado para a reserva técnica provisãoria - Roganãrio do Pateo / UFMG

O incaªndio nas salas do acervo tanãcnico do Museu de Hista³ria Natural e Jardim Bota¢nico (MHNJB) da UFMG, ocorrido na manha£ do último dia 15, éuma forte representação simba³lica do atual esta¡gio da educação e da cultura brasileiras. O (des)governo Bolsonaro cortou as verbas para as universidades federais, exterminou programas de bolsas de iniciação e de pesquisa e agora ameaça a autonomia acadaªmica. Seu desejo éacabar com a comunidade cienta­fica, com as pesquisas, com o ensino e com a extensão universita¡ria.

Em meio a  pandemia, instaurou-se o pandema´nio. O acervo arquiteta´nico, hista³rico, arqueola³gico, paleontola³gico, antropola³gico, biola³gico éum patrima´nio brasileiro, memória nacional, raa­zes de culturas genua­nas e singulares. As salas da reserva técnica do Museu atingidas pelo fogo transformaram-se em escombros e cinzas. Restaram as paredes. Esses ambientes integravam uma edificação que remonta a s primeiras quatro décadas do século passado, quando ali funcionava o Instituto Agrona´mico.  

Além da destruição desse ima³vel hista³rico, certamente houve perdas importantes no acervo osesse prejua­zo ainda estãosendo avaliado. Felizmente, uma parte do acervo que estava em Sa£o Paulo e a outra em exposição no pra³prio Museu foram salvas. Recordo-me, ainda, que, durante minha gestãono Museu, o Herba¡rio Melo Barreto, instalado naquelas salas, foi transferido, com o apoio do Departamento de Bota¢nica, para o Herba¡rio do ICB, que apresenta condições fitossanita¡rias adequadas e ambiente climatizado. Assim, essa importante coleção de exsicatas do princa­pio do século passado acabou preservada. 

Um acervo museola³gico dessa magnitude não se monta da noite para dia. Sa£o anos de trabalho e coleta persistente e sistema¡tica de pesquisadores e técnicos que vivem atualmente com minguados ora§amentos de pesquisa.


Observando de longe, não tenho uma dimensão precisa do material perdido, mas posso afirmar que, naquela sala técnica, estavam guardadas algumas preciosidades. Destaco, por exemplo, os artefatos arqueola³gicos de mais de 12 mil anos, as coleções entomola³gicas da década de 30 e 40, exemplares de arte pluma¡ria e as cera¢micas do Vale do Jequitinhonha, impregnadas de saberes milenares da cultura inda­gena. 

Outro ponto alto éa coleção Harold Walther, doada pela familia do ca´nsul inglês a  UFMG. Ela reaºne, provavelmente, o maior acervo do Homem de Lagoa Santa, com 38 cra¢nios. Essa raridade éresultado de trabalho primoroso dos pesquisadores Ana­bal Mattos, Arnaldo Artoud e Harold Walther realizado nas décadas de 30, 40 e 50 do século 20. Os primeiros exemplares biola³gicos do Museu foram doados pelo professor Ama­lcar Vianna Martins e pelo antigo funciona¡rio e colecionador do Instituto Agrona´mico, Moacyr Castilho, amante das ciências naturais. Grande parte da coleção entomola³gica veio transferida da antiga Faculdade de Filosofia, onde funcionava inicialmente o curso de Hista³ria Natural. Essa coleção preservada e guardada em arma¡rios especiais de pinho de riga, uma madeira de lei, destacava-se pela diversidade e beleza.

Um acervo museola³gico dessa magnitude não se monta da noite para dia. Sa£o anos de trabalho e coleta persistente e sistema¡tica de pesquisadores e técnicos que vivem atualmente com minguados ora§amentos de pesquisa. Em questãode minutos, as la­nguas de fogo podem lamber a história e o conhecimento para sempre.

Fa¡cil édestruir, matar, desmatar e queimar. Difa­cil éo processo de construção, e lento, o de conhecer. Fa¡cil érotular as universidades de antro de comunistas, de balbaºrdia. Difa­cil énão se acomodar e fazer com coragem uma gestãouniversita¡ria com recursos insuficientes para manter uma infraestrutura minimamente funcional ose a s vezes nem isso.

Do fogo restaram brasas. Como disse o poeta, o amor éum fogo que se arde sem se ver. Que o amor ao conhecimento e ao saber nos acalente e se transforme em novas chamas. Que a memória das traganãdias do Museu Nacional, do Museu da La­ngua Portuguesa e do Museu de Hista³ria Natural nos fortalea§am para novas batalhas.

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Ma´nica Meyer
Diretora do MHNJB no período de 1999 a 2005

 

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