Opinião

Cidades brasileiras e a covid-19
A gestãode nossas cidades estãosendo testada no seu extremo com a pandemia do coronava­rus. A covid-19 éum grande desafio para elas, e as políticas adotadas de forma emergencial devera£o ser avaliadas quando a sua disseminação arrefecer.
Por Alex Abiko - 25/06/2020

Doma­nio paºblico

Temos acompanhado com muita preocupação as últimas nota­cias a respeito das flexibilizações em relação ao isolamento social que estãosendo adotadas no Paa­s e nas cidades brasileiras. As recomendações divulgadas pelos poderes paºblicos ora estãosendo acatadas pela população, ora são desobedecidas, pois cada indiva­duo as interpreta conforme a sua consciência, a sua compreensão da situação e as suas possibilidades econa´micas e sociais.

Cada um de nosestãoa cada momento tendo que avaliar o que seria o melhor para si, a sua familia e também para os que estãoem seu entorno e a sociedade, acompanhando as diretrizes locais, estaduais e federais e a evolução dos números nem sempre reais dos infectados e dos a³bitos, que continuam subnotificados.

Neste cena¡rio de indefinições em que não se sabe ao certo o que nos espera, cabem algumas reflexões que tera£o um impacto quando a pandemia arrefecer e quando nos pusermos a tarefa de atuar sobre as nossas cidades para que elas estejam melhor preparadas para enfrentar problemas semelhantes aos que estamos vivenciando no momento.

O artigo publicado como research article pelo jornal Urban Studies em 31 de mara§o deste ano por Creighton Connolly, Roger Keil e S. Harris Ali, “Extended urbanisation and the spatialities of infectious disease: demographic change, infrastructures and governance”, contribui para o entendimento da presente situação, e lana§a algumas questões acerca da presente situação.

A primeira questãolevantada pelo artigo, sustentada em algumas pesquisas já realizadas, éque existe uma relação entre as doenças que eclodiram recentemente e o crescimento da população nas diferentes regiaµes do planeta onde isso aconteceu. Muito provavelmente esta situação tem ocorrido nas cidades e particularmente nas suas chamadas áreas de urbanização estendida, ou seja, na ocupação de territa³rios rurais não ocupados anteriormente por atividades humanas. Isso foi observado nos surtos de ebola, Mers, Sars e covid-19.

A segunda questãoestãorelacionada com o papel da infraestrutura como vea­culo de disseminação das doena§as, incluindo aa­ as redes de transportes, as redes de águae coleta de esgotos, e os sistemas de coleta, tratamento e deposição de resíduos sãolidos. Estas infraestruturas foram desenhadas e construa­das para favorecer a loga­stica necessa¡ria para a melhoria de nossas vidas, mas também representam canais por meio dos quais a disseminação de doenças se potencializa.

Finalmente háque se considerar a governana§a existente nas cidades que contemplam os seus sistemas de saúde, tanto a saúde preventiva como a curativa, e as diversas prática s que relacionam as políticas públicas com aspectos de higiene, salubridade e bem-estar. Cabe nesta questãoquestionar o quanto, no Brasil, as legislações urbana­sticas, particularmente as leis municipais do Plano Diretor e do Zoneamento, levam em consideração esses aspectos. No entanto cabe lembrar que as epidemias/pandemias não obedecem aos limites territoriais das cidades e dos munica­pios e que portanto seria necessa¡rio envolver governos regionais, metropolitanos, estaduais e federais nessa governana§a.

Para além do artigo mencionado, a  guisa de contribuição para o debate e na tão esperada pa³s-pandemia, cabe mencionar alguns aspectos a serem levados em consideração no desenho de políticas públicas no Paa­s.

Iniciamos mencionando a importa¢ncia de termos eficientes sistemas de informação pública, transparentes, atualizados e ao mesmo tempo que preservem a privacidade dos cidada£os. Uma referaªncia reconhecida mundialmente éo sistema existente na andia, que registrou digitalmente mais de 1,2 bilha£o de cidada£os em menos de uma década. Esse éum importante instrumento para a elaboração de políticas públicas inclusivas no Brasil,país heterogaªneo, desigual e com tantos problemas a serem resolvidos, e que necessitaria ser implantado com urgência.

A seguir deve-se mencionar o papel da educação, do ensino e da pesquisa, que foram revelados de maneira única no Paa­s, nestes quatro meses de pandemia. Todos os envolvidos nesses processos foram obrigados a se engajar nesse movimento de viabilizar da melhor forma possí­vel atividades a distância que fossem eficientes, com todas as dificuldades técnicas, econa´micas e de conhecimento envolvidas.

A intensa mobilização identificou dificuldades, gargalos, limitações e oportunidades aºnicos. O conhecimento das dificuldades enfrentadas e dos ganhos obtidos podera¡ alavancar iniciativas que sera£o incorporadas aos novos processos educacionais em todos os na­veis e também no desenvolvimento de pesquisas colaborativas com centros e laboratórios espalhados em váriospaíses.

Do ponto de vista urbana­stico stricto sensu, existe e continuara¡ a existir uma grande daºvida no Brasil: o adensamento das cidades devera¡ continuar a ser incentivado como propaµe o chamado urbanismo sustenta¡vel? Ou a pandemia nos trouxe a lição que devemos nos distanciar procurando ocupar discretamente os Espaços das cidades? Para alimentar essa discussão, como exemplo, Singapura, Hong Kong e Seul não sofreram proporcionalmente mais com a covid-19 se compararmos com outras localidades, apesar de suas elevadas densidades populacionais, pois estabeleceram ra­gidas políticas de afastamento social e implantaram sistemas de monitoramento da expansão da contaminação de sua população.

No entanto, cabe registrar que densidades muito elevadas no Paa­s são observadas nas inaºmeras favelas que, segundo o IBGE, abrigam 6% dos brasileiros, ou seja, algo como 12 milhões de habitantes, acrescidos dos moradores de loteamentos clandestinos, número difa­cil de ser contabilizado, mas que corresponde pelo menos ao dobro, ou seja, 24 milhões de pessoas. Esses ambientes urbanos são caracterizados por sua informalidade e pela precariedade de sua infraestrutura, notadamente abastecimento de a¡gua, coleta de esgotos e de drenagem. A existaªncia dessas caracteri­sticas de elevada densidade e de caraªncia de infraestrutura facilita a disseminação da atual pandemia.

Sem daºvida a gestãode nossas cidades estãosendo testada no seu extremo com a pandemia do coronava­rus. A covid-19 éum grande desafio para elas, e as políticas adotadas de forma emergencial devera£o ser avaliadas quando a sua disseminação arrefecer.

Estamos vivenciando uma severa crise sanita¡ria, econa´mica e social e devemos estar atentos para que esta dura experiência nos sirva de lição e que consigamos melhorar os nossos mecanismos de planejamento e de gestãourbanos, pois, conforme os epidemiologistas, infelizmente existe uma grande probabilidade de que novas epidemias venham a ocorrer.

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Alex Abiko
Professor titular da Escola Politécnica da USP

 

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