Opinião

A anãtica do distanciamento social (e por que não descarta protestar)
Travis Rieder, bioanãtico de Hopkins, discute as complexas questões anãticas que envolvem o distanciamento social e os protestos
Por Travis N. Rieder - 27/06/2020


Protestar contra o racismo sistemico e a brutalidade policial levanta considerações anãticas importantes durante uma pandemia que são pode ser controlada atravanãs de distanciamento social efetivo, escreve o bioeticista e fila³sofo Travis Rieder. IMAGEM CRa‰DITO: WILL KIRK / UNIVERSIDADE JOHNS HOPKINS

O distanciamento social ficara¡ conosco por um tempo . Embora opaís já esteja "reabrindo", o va­rus SARS-CoV-2 não desapareceu e éprova¡vel que o contato pra³ximo entre as pessoas leve a novos surtos. Assim, a mensagem de saúde pública do dia écontinuar o distanciamento social; isso inclui uma variedade de medidas, incluindo evitar grandes reuniaµes (especialmente em ambientes fechados), ficar a mais de um metro e meio de distância dos demais e usar coberturas para o rosto.

Os anãtica de distanciamento social parece, portanto, suscepta­vel de ser com a gente por algum tempo, também. Quando comecei a escrever este ensaio, pessoas preocupadas com a saúde pública estavam argumentando que o distanciamento social émoralmente exigido e expressando consternação com as fotos de festeiros e frequentadores de praia que surgiram após o fim de semana do Memorial Day. Apenas algumas semanas depois, no entanto, a atenção se voltou para as manifestações nacionais contra o racismo e a brutalidade policial, apoiadas não apenas por figuras de destaque da saúde pública, mas pela própria OMS .

Então, o que fazer com o distanciamento social? Devemos fazer isso ou não? A questãoébastante complexa, pois existem vários tipos diferentes de razões para o distanciamento social - algumas mais fortes que outras. Meu objetivo aqui, então, éduplo. Primeiramente, este ensaio ira¡ definir os tipos de razões para se distanciar e sugerir que uma das razões mais comuns ébastante não-padrão- o que chamo de "razãocontributiva". Terminarei então observando como pensar cuidadosamente sobre as razões pelas quais se deve distanciar socialmente também pode nos ajudar a pensar sobre a anãtica dos protestos durante a pandemia de Covid-19.
 

Dois tipos familiares de razaµes

Razaµes de autossuficiaªncia

Muita atenção estãosendo dada a “se vocêdeve sair ou ficar em casa” durante a pandemia do COVID-19 éprincipalmente uma investigação de razões prudenciais. As pessoas querem saber qual éo seu risco pessoal e, portanto, querem saber como, de uma perspectiva interessada, devem agir. Essa éuma questãoimportante, embora tendamos a dar a s pessoas uma ampla latitude na determinação de quais riscos valem a pena correr e em benefa­cio deles. Para os fins desta investigação, mencionei amplamente essa categoria de razões para coloca¡-la de lado. O núcleo da anãtica do distanciamento social diz respeito a  moralidade interpessoal, ou ao que devemos a outros indivíduos ou a  sociedade.

Razaµes individuais-outras

A razãomoral candidata mais a³bvia para praticar o distanciamento social éproteger outros em particular a quem alguém tem uma obrigação direcionada. Os ava³s são o papel comum aqui , como dizem os cra­ticos de banhistas e festeiros: "Vocaª pode não valorizar sua própria vida, mas pelo menos proteger sua ava³!" Ou alguma variação disso. A ideia ésimplesmente que épreciso proteger pessoas em particular vulnera¡veis ​​que possam infectar.

Essa éuma razãoperfeitamente compreensa­vel com a qual estamos bastante conforta¡veis ​​em trabalhar. Se vocêse expor ao va­rus aumenta o risco de transmitir o Covid-19, o que eleva o risco de outras pessoas de morbidade ou mortalidade graves, então vocêtem um motivo para não fazaª-lo. A força precisa desse motivo provavelmente depende de alguns fatos empa­ricos - em particular, qual a probabilidade de vocêse tornar um vetor de doença e qual a probabilidade de causar danos significativos.

O problema éque não éa³bvio o quanto perigoso épara um indiva­duo em particular violar os requisitos de distanciamento social. Eu tenho um risco aumentado de ficar doente, o que me da¡ um risco aumentado de transmitir o va­rus a uma pessoa vulnera¡vel. Mas também posso optar por não me envolver com outras pessoas devido a  sua vulnerabilidade, comprometendo-me a não visitar parentes idosos, por exemplo. Isso não eliminaria o risco, mas poderia diminua­-lo.

Além disso, a sociedade nos permite fazer muitas coisas que arriscam prejudicar os outros. Isso inclui o distanciamento social precedente durante a temporada regular de gripe, o que pode, éclaro, ainda nos levar a transmitir um va­rus que mata alguém . Onívelde risco édiferente, com certeza. Mas para aqueles que pensam que o distanciamento social éobrigata³rio durante essa pandemia, mas nem mesmo recomendado durante as temporadas comuns de gripe, parece implausa­vel que a diferença (relativamente pequena) na imposição de risco possa realmente ser o que explica uma diferença moral tão significativa.

Tudo isso me leva a acreditar que nem as razões de auto-consideração nem as de outras pessoas estãofazendo todo ou quase todo o trabalho de explicar por que devemos nos distanciar socialmente. Além disso, muitas das razões apresentadas no discurso paºblico são de um tipo diferente e - francamente - mais complexo. 

a‰tica contributiva

Quando o novo coronava­rus realmente se estabeleceu nos EUA, surgiram gritos de “achatar a curva” e “retardar a propagação do va­rus” para entender o que precisa¡vamos fazer. Como esses são objetivos coletivos, a mensagem para os indivíduos geralmente preocupa-se em contribuir para um esfora§o coletivo - por exemplo, de acordo com a Casa Branca , vocêdeve "fazer sua parte para retardar a propagação do coronava­rus".

O desafio dessa mensagem éque provavelmente éimpossí­vel para qualquer indiva­duo fazer uma diferença significativa no formato da curva ou no número reprodutivo do va­rus (o R0). Como resultado, enfrentamos questões difa­ceis sobre qual obrigação ou razãoum indiva­duo tem para contribuir para um esfora§o coletivo. Perguntas semelhantes podem ser vistas na literatura recente sobre anãtica emmudanças climáticas: o comportamento individual de emissão de uma pessoa não contribui significativamente para a mudança climática, portanto, não estãoclaro como alguém pode ser obrigado a reduzir sua pegada de carbono.

Alguns argumentaram que, apesar das aparaªncias, os indivíduos que fazem uma diferença significativa para os danos macia§os como as alterações climáticas ou animal agricultura-vocêsão tem que fazer o certo matemática moral. Por exemplo, Shelley Kagan argumentou que, se vocêtem uma pequena chance de fazer uma grande diferença, a utilidade esperada de sua ação pode ser suficiente para fundamentar uma obrigação. Se Kagan estãocerto sobre isso, a s vezes podemos ter razões utilita¡rias para fazer pequenas contribuições para grandes esforços coletivos. No entanto, outros fila³sofos como Mark Budolfson , Julia Nefsky e Bob Fischer, levantaram desafios poderosos aos argumentos do estilo "matemática moral". E assim, por uma questãode completude (e alia¡s, de acordo com minhas próprias simpatias), assumirei aqui que os objetores estãocorretos e que a utilidade esperada não resolve o problema para nós.

Isso me leva a s duas categorias finais de razaµes, que fazem parte do que Justin Bernstein e eu chamamos (em um artigo publicado em a‰tica, Pola­tica e Meio Ambiente ) de “anãtica contributiva”. No contexto dasmudanças climáticas, argumentamos que os indivíduos tem razões para fazer (muito pequenas) contribuições individuais para os esforços coletivos. Embora os detalhes dos casos sejam diferentes, acho que tipos semelhantes de razões - razões que não dizem respeito a  imposição direta de riscos - estãono cerne do cena¡rio moral de cada caso.

Razaµes baseadas na justia§a

Os apelos a  justia§a parecem adequados para justificar intuições e discursos sobre a anãtica do distanciamento social em dois aspectos. Primeiro, considerações de justia§a ressoam com parte da linguagem de nosso discurso paºblico que nos chama a 'fazer nossa parte' por distanciamento social. E segundo, considerações de justia§a entendem algumas de nossas reações a queles que não se distanciam socialmente. Se muitos de nosse distanciam socialmente em prol da saúde pública, mas algumas pessoas não, aqueles que suportam o custo do distanciamento podem razoavelmente ficar com raiva dos free-riders.

No entanto, apesar desses recursos atraentes, hápelo menos um grande desafio em afirmar que as razões baseadas na justia§a nos obrigam a distanciar-se socialmente, o que diz respeito ao significado moral da não conformidade generalizada. vocêdeveria ser o ota¡rio que obedientemente fica em casa? De modo mais geral, se a conformidade generalizada com uma regra iria produzir um benefa­cio em toda a comunidade, mas não ha¡, de fato, o cumprimento generalizado, torna-se menos a³bvio que os indivíduos tem uma obrigação com base em justia§a para cumprir com essa regra.

Então, para realmente fazer bom sobre o recurso a  justia§a, seria preciso saber não são o grau de cumprimento de uma regra ésuficiente para gerar obrigações de equidade, mas também atéque ponto as pessoas que realmente cumprir as recomendações de distanciamento social. E, embora longe de serem perfeitos, os dados limitados que temos sugerem que, em muitas comunidades, não houve distanciamento social generalizado.

Como resultado, não estãoclaro se cada um de nostem uma obrigação baseada na justia§a de se distanciar socialmente. Terminarei, no entanto, sugerindo que existem muitos outros motivos para gerar razões contributivas.  

Razaµes Coletivas-Outras

Razaµes coletivas - outras - são considerações que favorecem fazer contribuições individuais muito pequenas para algo de bom, mesmo em face do descumprimento generalizado. Va¡rias razões foram apresentadas na literatura filosãofica, das quais observarei apenas algumas.

Julia Nefsky sugeriu que os indivíduos podem ter motivos para (de maneira não supanãrflua) ajudar um esfora§o coletivo a obter algum bom resultado macia§o ou impedir um dano macia§o, mesmo quando os indivíduos não fazem diferença. Embora muitas vezes pensemos que um ato não éútil se não faz diferença, ela rejeita essa visão. Aplicado ao distanciamento social: mesmo que sua permanaªncia em casa não diminua significativamente o R0, seu distanciamento pode ser parte do que leva a esse objetivo. E se for, vocêtem um motivo para ficar em casa.

Outra lógica se concentraria menos em diminuir a propagação e mais em dar um bom exemplo ou mudar normas informais. Mesmo que outros ainda não estejam fazendo sua parte, talvez vocêtenha razões morais para dar um bom exemplo ou contribuir para o surgimento de normas que favorecem, digamos, o uso de uma ma¡scara.

Um tipo diferente de lógica enfoca menos a ação e mais o cara¡ter. Assim como Dale Jamieson argumenta que a anãtica énecessa¡ria para a anãtica individual em resposta a smudanças climáticas, talvez existam virtudes particulares necessa¡rias para responder a outras crises massivas de saúde pública. Violar o distanciamento social sem uma boa razãopode tornar a pessoa egoa­sta, descuidada ou idiota . Embora esse movimento seja claramente mais fa¡cil para um tea³rico completo da virtude, qualquer um pode reconhecer que as atribuições de cara¡ter são uma parte importante de nossas vidas morais.

O que esses motivos tem em comum éque eles consideram valiosa a participação ou a parte de um esfora§o coletivo, mesmo que seu esfora§o individual não faz uma diferença significativa. Se isso éverdade - como eu penso que é-, temos muitas razões para contribuir com vários esforços coletivos e, portanto, em um mundo relevante como o nosso, uma parte substancial da anãtica estãodeterminando como responder a essas inaºmeras razaµes.

Razaµes para protestar durante uma pandemia

Na primeira versão deste ensaio, procurei apenas distinguir entre tipos de razãoe, assim, concluir que a anãtica do distanciamento social ébastante mais complicada do que alguns pensam ser. Então o mundo mudou rapidamente. Apa³s os eventos das últimas semanas - após o assassinato brutal de mais negros pela pola­cia, os protestos em resposta e a brutalidade policial contra manifestantes - não pude publicar esse ensaio como estava escrito. Comentar a anãtica do distanciamento social sem discutir a natureza das razões pelas quais as pessoas realmente tem que se distanciar socialmente (ou não) seria irresponsável.

Concluo, portanto, investigando não classes abstratas de razaµes, mas razões reais - em particular, razões para protestar quando também temos razões para não nos reunirmos. Recentemente, houve um desfile de especialistas acusando especialistas em saúde pública de hipocrisia por apoiar os manifestantes. Resumindo: os comentaristas estãocorrendo para condenar os "liberais" por nos dizerem primeiro que fiquemos em casa, mas depois elogiando os manifestantes por promoverem a justia§a social. Embora não seja necessa¡rio o paisagismo que fiz acima para responder a essa cobrana§a, acho que pode ser útil.

Os melhores argumentos para uma obrigação moral estrita de distanciar-se socialmente dependem do risco de prejudicar alguém em particular (razões de um indiva­duo para outro) e justia§a. Eles invocam princa­pios morais familiares que plausivelmente geram um dever. Se ir a um protesto fosse realmente equivalente a matar o vova´ ou violar normas estritas de justia§a, pode-se ser obrigado a não ir. No entanto, sugeri que, no caso do distanciamento social, éimprova¡vel que o risco de danos a outras pessoas seja suficiente para fundamentar um dever; e os requisitos de justia§a dependem de umnívelde conformidade que pode não existir nos Estados Unidos (especialmente não com o passar do tempo, e os estados se aproximam da reabertura total). Assim, parece-me que grande parte da anãtica do distanciamento social depende de razões contributivas.

O motivo dessas razaµes, poranãm, éque éimprova¡vel que elas gerem uma obrigação. Considere o número de danos e benefa­cios macia§os com os quais podera­amos estar contribuindo a qualquer momento e vocêpercebera¡ que somos bombardeados por razões contributivas. Se uma razãopara não contribuir com danos macia§os e sistema¡ticos fundamentasse uma obrigação estrita, nunca seria permitido queimar combusta­veis fa³sseis. Minha opinia£o sobre a anãtica do distanciamento social, então, éque não somos obrigados a fazaª-lo, mas temos várias razões a favor, o que significa que se devemos nos distanciar socialmente dependera¡ do tipo e peso de razões opostas.

E éisso que os cra­ticos dos protestos perderam: as razões que favorecem o protesto podem obviamente superar as razões da distância social. Mas não preciso fazer esse argumento; outros - que são mais profundamente afetados pelo racismo e pela violência policial - já o fizeram. Aisha Langford, por exemplo, explicou sucintamente a  Vox como o perfil de risco-benefa­cio do distanciamento social mudou nas últimas semanas: “Para pessoas de cor e negra, o custo de não fazer algo émuito maior do que potencialmente obter um va­rus. " Como negra nos Estados Unidos, ela continuou: "Se eu ficar quieta e não fizer absolutamente nada, poderia morrer porque existo".

E, em um poderoso ensaio para o New York Times , Roxanne Gay esclarece por que éperfeitamente razoa¡vel que os negros na Amanãrica não se concentrem a laser na pandemia neste momento:

Eventualmente, os médicos encontrara£o uma vacina contra o coronava­rus, mas os negros continuara£o a esperar, apesar da futilidade da esperana§a, por uma cura para o racismo. Vamos viver com o conhecimento de que uma hashtag não éuma vacina para a supremacia branca. Vivemos com o conhecimento de que, ainda assim, ninguanãm estãovindo para nos salvar. O resto do mundo anseia por voltar ao normal. Para os negros, o normal éexatamente o que desejamos ser livres.


Ajudar a impedir a propagação de um va­rus mortal éobviamente valioso. Mas também estãolutando para acabar com o racismo sistemico e a brutalidade policial. E o testemunho daqueles que são os mais afetados por esses estãonos dizendo que não podem esperar atédepois da pandemia para pedir educadamente a  sociedade que pare de espanca¡-los e mata¡-los.

Uma anãtica do distanciamento social deve permitir que esse tipo de razãode ponderação seja feita. Muitos de nós, na maioria das vezes, provavelmente tem mais motivos para se distanciar socialmente enquanto o Covid-19 estãoconosco. Parece importante dizer isso. Mas essas razões provavelmente não fundamentam obrigações estritas e, portanto, são mais facilmente superadas do que outras razões morais familiares. E isso também parece importante a dizer.

Seria bom se fosse a³bvio como se deve agir na era dos coronava­rus; mas a anãtica do distanciamento social, como tantas outras coisas, serásutil e difa­cil.


*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Travis Rieder
Fila³sofo e membro do corpo docente do Berman Institute of Bioethics 

 

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