A interferaªncia da Unia£o na autonomia das universidades, repita-se, équestãopolatica, que revela graves litagios de natureza constitucional, atéagora denunciados e impedidos pelas instituia§aµes democra¡ticas.

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Abrevassima vigaªncia da MP 979, que deu poderes ao ministro da Educação para indicar reitores pro tempore nas universidades federais, sem consulta a comunidade nem elaboração de listas traplices, durante a pandemia de covid-19, éapenas mais um capatulo no conjunto inesgota¡vel de irresponsabilidades e esca¡rnios do governo federal em relação a educação pública e aos cidada£os brasileiros. Nãose tratou apenas de ignorar, sem constrangimentos, as normas constitucionais da autonomia universita¡ria e da gestãodemocra¡tica do ensino, ou de apresentar medida provisãoria que não atende a s exigaªncias de urgência e releva¢ncia, mas também o de justificar a MP com a lei 13.979, que estabeleceu medidas de proteção da coletividade durante a pandemia da covid-19. Nada hána lei que fundamente a indicação de reitores bia´nicos, atéporque as consultas a comunidade universita¡ria para elaboração de listas traplices são feitas por via eletra´nica. Isso significa que os princapios constitucionais da legalidade, moralidade e impessoalidade da administração pública também foram ignorados, pisoteados, enxovalhados pelo governo federal, para não falar, hipoteticamente, do desrespeito ao princapio da eficiência, considerando-se que os eventuais reitores pro tempore dançariam conforme a música do Ministanãrio da Educação.
Deu no que deu: manifestações da sociedade e dos meios acadaªmicos, ações de inconstitucionalidade ajuizadas, parlamentares mobilizados, todos perplexos com a desfaztez do governo. Rapidamente, o presidente do Congresso devolveu a MP ao Executivo, devido a sua manifesta inconstitucionalidade. Na sequaªncia, o presidente da República editou a MP 981, revogando a MP 979; a revogação teve como consequaªncia adicional, provavelmente não intentada, impedir eventuais discussaµes acerca dos efeitos juradicos da devolução. O desfecho negativo para o governo era previsível, embora pudesse variar no tempo em função do caminho adotado para derrubar a MP. a‰ pouco plausavel que assessores juradicos do Planalto não o soubessem ou não tenham alertado o ministro e o presidente sobre a inconstitucionalidade da medida. Por que, então, baixa¡-la?
No começo de junho, a MP 914 que dispunha sobre a indicação de reitores para as universidades federais perdeu a vigaªncia, por decurso de prazo, não sendo possível reedita¡-la, na mesma legislatura, por determinação da Constituição. Mas esse fato, por si são, não justificaria, de nenhum modo, a edição da MP 979. A perda da eficácia da MP 914 restaurou a vigaªncia do art. 16, da Lei 5.540/68, com redação da Lei 9192/95, que trata, justamente, da nomeação de reitores; não se estava, portanto, numa situação de anomia ou de lacuna legislativa. Outras justificativas seriam políticas: se, por um lado, a MP facilitaria passar a boiada, de outro, apresentava-se como compensação oscom alto grau de discricionariedade ospara o ministro que havia perdido o rico Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação para o Centra£o. Tambanãm épossível que o intuito fosse atribuir ao Legislativo ou ao Judicia¡rio o a´nus de negar a Weintraub o que ele mais queria: o controle das universidades federais, locais de “balbaºrdia†e de “plantações de maconhaâ€, como já ensaiado no malfadado projeto Future-se. Ao que tudo indica e a julgar por suas declarações, a lição não foi aprendida: o ministro não desistiu da indicação dos reitores das universidades federais, nem esconde seus preconceitos e hostilidade com a atividade acadaªmica em geral, especialmente na área de ciências humanas. Balana§ando no cargo, já hálgum tempo, segue impa¡vido, com o apoio do que háde pior no governo.
Cogitações a parte, o fato éque numpaís de pouca e recente tradição acadaªmica, ébaixo o grau de entendimento da autonomia como condição inerente a s atividades de ensino e pesquisa, especialmente porque a atuação auta´noma das universidades públicas sempre se dara¡ em face do Estado, que as financia, o que evidentemente não justifica as atitudes do ministro da Educação. Durante o Impanãrio, a oferta do ensino superior no Brasil foi centralizada pelo governo, sem supervisão e com baixo investimento paºblico, mas com autonomia docente no interior das faculdades. Apa³s a proclamação da República, a primeira lei que concedeu autonomia dida¡tica e administrativa aos institutos federais de ensino superior éde 1911 e antecedeu a própria criação de universidades no Paas. Atéa edição da atual Constituição de 1988 osque prevaª a autonomia universita¡ria em seu art. 207, cinco Constituições (1891, 1934, 1937, 1946, 1967), uma Emenda Constitucional (EC no. 1/69), seis reformas do ensino superior e diversos decretos federais definiram e regulamentaram a autonomia universita¡ria. Nesse período, a participação da comunidade acadaªmica na eleição de dirigentes foi suprimida entre 1915 e 1961, salvo no caso da Universidade de Sa£o Paulo, criada em 1934 em regime menos ragido que o das universidades federais, submetidas, a anãpoca, ao Estatuto das Universidades Brasileiras de 1930. A edição da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1961 modificou o panorama com a previsão de autonomia dida¡tica, administrativa, financeira e disciplinar (art. 80), incluindo a elaboração de listas traplices para escolha de reitor, o que foi mantido durante o governo militar na forma da Lei 5.540/68.
Sob o regime do art. 207 da Constituição de 1988, desenvolveram-se três estatutos juradicos de autonomia universita¡ria no Paas: o das universidades privadas, o das universidades federais e o das universidades estaduais paulistas. Se o modelo paulista se mostrou mais efetivo, devido a sua estrutura ora§amenta¡ria e financeira baseada na transferaªncia de percentual do ICMS a s suas universidades e maior autonomia administrativa, os demais palmilharam caminhos diferentes. Para as 63 universidades federais, financiadas com recursos do Tesouro Nacional e algumas fontes alternativas (convaªnios, contratos, financiamento de pesquisas), problemas diversos de natureza administrativa e financeira (regime de caixa aºnico, contingenciamento de despesas), peso da burocracia estatal e restrições inerentes ao regime de direito paºblico tornaram-se fatores limitantes de sua autonomia. Comparativamente, as universidades privadas desfrutam de maior autonomia administrativa e financeira em virtude do regime juradico privado, com vantagens para as instituições que optaram pelo regime mercantil. Essas diferenças demonstram que se, por um lado, não hátratamento juradico uniforme para a autonomia, por outro, a proteção da autonomia universita¡ria ainda énecessa¡ria em face de persistentes limitações, o que não éum problema juradico, mas polatico, como o comprovam as ações do ministro da Educação.
As universidades não são os aºnicos entes dotados de autonomia pela Constituição. Os entes federados, por exemplo, tem autonomia polatica; o Judicia¡rio, autonomia administrativa e financeira; os partidos polaticos, autonomia administrativa. Essas concessaµes não são feitas ao acaso, mas visando ao melhor desempenho possível das finalidades dessas instituições. Tampouco significam independaªncia ou soberania, como costumam proclamar os desafetos da autonomia, que tem suas prerrogativas enumeradas na LDB. No caso das universidades, a escolha de nomes para composição de lista traplice destinada a indicação de reitores éuma das muitas prerrogativas inerentes a sua autonomia administrativa das universidades. Atualmente, tramitam na Ca¢mara dos Deputados cerca de 100 projetos de lei e três PECs sobre as universidades e o ensino superior, dos quais pelo menos 12 tratam de eleição e escolha de dirigentes, sob diferentes enfoques, mas não para suprimir a elaboração da lista. Entre esses, dois propaµem prorrogar os atuais mandatos de reitores e vice-reitores durante a pandemia e outro autoriza o uso de meios eletra´nicos nas eleições. Todos esses projetos merecem acompanhamento e análise mais detalhada, oportunamente.
A interferaªncia da Unia£o na autonomia das universidades, repita-se, équestãopolatica, que revela graves litagios de natureza constitucional, atéagora denunciados e impedidos pelas instituições democra¡ticas. A edição das MPs 979 e 981 nada mais confirma senão desfaztez no uso desse instrumento excepcional. Enquanto isso, são faz aumentar o descaso do ministro com os efeitos da pandemia sobre a educação nacional, com aumento da desigualdade e resultados sociais e econa´micos desastrosos para esta e as futuras gerações, o que écrime, além de mostra de insanidade, insensibilidade e falta de respeito com a sociedade brasileira.
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Nina Ranieri
Professora associada da Faculdade de Direito da USP e coordenadora da Ca¡tedra Unesco de Direito a Educação