Opinião

Fiquemos atentos a  banda que passa
Encher a vida de sentido éuma das buscas mais profundas de toda pessoa. Talvez seja mais imprescinda­vel que a felicidade ou o bem-estar.
Por Gustavo Xavier - 18/07/2020

Doma­nio paºblico

E cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor

Encher a vida de sentido éuma das buscas mais profundas de toda pessoa. Talvez seja mais imprescinda­vel que a felicidade ou o bem-estar. O psiquiatra Viktor Frankl, por exemplo, que viveu anos preso em campos de concentração, entre 1942 e 1945, formulou uma abordagem psicoterapaªutica baseada na identificação do sentido da existaªncia para cada indiva­duo num dado momento da vida, encontrando um ponto de apoio interior em que segurar. Nada mais coerente para quem presenciou a luta dia¡ria pela sobrevivaªncia numa das mais terra­veis experiências a s quais seres humanos foram submetidos. Ali, o que impedia alguém de se entregar a  morte era o sentido. A insistaªncia em viver e a esperana§a por ultrapassar aquele estado de coisas poderiam estar sustentadas na aspiração de reencontrar um filho, numa obra a concluir, entre outros alvos futuros. Ou seja, a vida de cada um continha um sentido ligado a algo em que sua presença era insubstitua­vel. E também ali, naquele sofrimento, na experiência singular assumida por cada um nos campos de concentração, a pessoa era insubstitua­vel. Nesses tempos, em que uma pandemia traz tanta dor, isolamento e apreensão, a necessidade de sentido aflora ainda mais explicitamente. Uma das expressaµes claras disso éa música. Mesmo antes do coronava­rus chegar ao Brasil, assista­amos a s cenas comoventes de bairros inteiros entoando canções de suas janelas e sacadas na Europa. Vizinhos unidos em coro.
E, já agora, borbulham lives de maºsicos, montagens reunindo gravações de vários intanãrpretes, teleconferaªncias em que cada maºsico toca em seu canto uma camada do mesmo arranjo, e por aa­ vai. Talvez nunca tenha sido tão atual e necessa¡ria a ressignificação de uma das mais emblema¡ticas músicas do que hoje chamamos de MPB: a canção A Banda, composta por Chico Buarque.

Adanãlia Bezerra de Meneses éuma das pesquisadoras da obra de Chico Buarque. Ela identifica em várias de suas canções a capacidade de colocar o sofrimento da vida presente em suspenso durante alguns instantes. Diz ela: “Em todos os casos, uma constante: a tentativa de superar o curso normal da vida, atravanãs da criação de um tempo ma­tico”. E logo adiante, continua sobre Chico: “Isso significa uma tentativa quase que desesperada de se estancar a passagem do tempo, atravanãs do retorno a uma tal situação que provoca provisoriamente a reintegração do indiva­duo numa determinada experiência, em que a dor humana évencida” (1).

Esse tempo distinto, que transfigura a vida cotidiana, vai ganhando densidade com os sons da banda que vem vindo, cantando coisas de amor.

Estava a  toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor

A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor

O tea³logo alema£o Paul Tillich, que viveu entre 1886 e 1965, examinou intensamente a relação da arte com a transcendaªncia. No Brasil, um dos tea³logos que seguem a trilha de Tillich éCarlos Eduardo Calvani. Ele se dedica justamente a olhar essa relação na MPB (2). E viu em Chico Buarque a expressão dessa transformação de realidades comuns em novas realidades cheias de significado.

O homem sanãrio que contava dinheiro parou
O faroleiro que contava vantagens parou
A namorada que contava as estrelas
Parou para ver, ouvir e dar passagem

Outro que identifica em Chico Buarque a mudança de realidades éo brasilianista Charles Perrone. Do fechamento/silaªncio faz-se uma travessia a  abertura/maºsica. “A infelicidade e a rotina são superadas com a presença da música”, diz ele (3).

A moa§a triste que vivia calada sorriu
A rosa triste que vivia fechada se abriu
E a meninada toda se assanhou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor

No antola³gico livro Mema³ria e sociedade: lembrana§as de velhos, de Eclanãa Bosi, uma das entrevistadas éa Dona Risoleta. Ela vai contando sua vida e, em certo momento, tocada pelo encantamento e pela tristeza, recorda as serestas de sua infa¢ncia:

“Faziam muita serenata em Campinas naquela anãpoca e a gente não tinha licena§a de abrir a janela para espiar. Relembrar uma coisa dessas étriste: vinham quatro ou cinco moa§os, um tocava violino, outro viola£o, outro cantava, e tocavam bandolim, cavaquinho, com aquela voz bonita que entrava no coração da gente e a gente ficava… quem disse que ficava dormindo?!” (4).

E com a música vai se dando isso: a gente acorda osou permanece desperto ospara alguma coisa que provavelmente vai transformar nossa vida, nem que seja por um instante. Como o Flautista de Hamelin, que com o som de sua flauta vai atraindo os ratos para o rio, assim também pode acontecer com nossas cidades interiores, que va£o ficando temporariamente livres dos roedores de nosso cotidiano.

Com a covid-19, os velhos, os hipertensos, os imunodeprimidos e tantos outros, que ficam no meio-fio entre o zelo de pessoas cuidadosas e o descaso obsceno de certos governantes e seus seguidores, veem-se refletidos em alguns dos personagens dessa rua que vaª a banda passar. Suas vulnerabilidades são convidadas a  alegria também.

O velho fraco se esqueceu do cansaa§o e pensou
Que ainda era moa§o pra sair no terraa§o e dana§ou
A moa§a feia debrua§ou na janela
Pensando que a banda tocava pra ela

Quando olhamos para o dia que amanhece, ainda que parea§a um eterno retorno ao ponto inicial, pela repetição das horas e de suas atividades confinadas, épossí­vel imaginar uma redenção. Havera¡ na nossa esperana§a uma banda prestes a passar? Parece-me que a multiplicação de lives musicais, montagens de coros virtuais e outras atrações, por vezes com composições motivadas pela crise atual, são uma meta¡fora delicada dessa a¢nsia por um enraizamento. Pois mesmo que estejamos em casa, fomos arrancados do solo da vida social tal como costuma¡vamos vivaª-la.

A nostalgia como prelaºdio do futuro

A Banda esteve envolvida numa das mais contundentes disputas da MPB. Foi no 2º Festival de Maºsica Popular Brasileira da TV Record, em 1966. Sua concorrente era Disparada, composta por Geraldo Vandrée Thanão de Barros. Ambas foram finalistas. A Banda dividiu o praªmio com Disparada depois de o pra³prio Chico Buarque comunicar ao jaºri que o devolveria se ganhasse sozinho, como conta Zuza Homem de Mello no seu livro A Era dos Festivais (5). Zuza lembra que a torcida por Disparada vinha, em geral, da plateia mais politizada.

Nessa linha, entre tantas análises realizadas ao longo de décadas, por vezes encontramos A Banda situada como música presa a  nostalgia, focada no passado, deixando tudo em seu lugar; ou como canção roma¢ntica osno sentido da visão de mundo disseminada a partir do século 18 –, em termos des favoráveis , retratando o povo sem se preocupar com a alteração de sua situação.

Mais uma vez, Eclanãa Bosi nos ajuda a reatar os fios. Ela diz em O tempo vivo da memória: “A nostalgia revela sua outra face: a cra­tica da sociedade atual e o desejo de que o presente e o futuro nos devolvam alguma coisa preciosa que foi perdida” (6).

Isso ninguanãm pode dizer que a passagem d’A Banda não fez. Uma utopia impla­cita reclama seu lugar na alegria que acompanha o trajeto daqueles sons pelas ruas do bairro imagina¡rio. Uma outra utopia osou meramente ala­vio da situação que vivemos osse anuncia nas reuniaµes musicais que colorem a internet nos dias atuais.

A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu
A lua cheia que vivia escondida surgiu
Minha cidade toda se enfeitou
Pra ver a banda passar cantando coisas de amor

A Banda se atualiza. Seu valor érecuperado de modo muito especial na situação de pandemia. Ha¡ uma afinidade eletiva entre aquela cidade da canção e as nossas cidades atuais, as externas e as internas. Nelas estãocontidas melancolias humildes, que não se encastelam orgulhosas, mas se abrem singelamente a  alegria que por ali passa. E mesmo que para o meu desencanto, o que era doce acabou, fica o legado esperana§oso que esse instante redentor deixou em sua passagem.

Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou

Sera¡ que tomou mesmo? Enquanto permanecerem as imagens mundiais dos vizinhos cantando juntos de suas janelas e sacadas, temos o direito de acreditar que algo pode ser significativamente melhor. Que o sentido da existaªncia de cada um tenha emergido. Ou, como diria Viktor Frankl: “Sempre e em toda parte a pessoa estãocolocada diante da decisão de transformar a sua situação de mero sofrimento numa produção interior de valores” (7). Talvez seja nosso ponto de apoio. Mesmo que, por hora, estejamos

Cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor.

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Gustavo Xavier
Jornalista e produtor musical da Ra¡dio USP

 

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