Opinião

Ciência e tecnologia em um mundo de ponta-cabea§a
As crises, em geral, revelam o pior e o melhor das sociedades. Nas atividades de Ciência e Tecnologia (C&T) não poderia ser diferente.
Por Glauco Arbix - 21/07/2020


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Tudo indica que o século XXI tera¡ de renascer após a pandemia. Apesar dos imensos avanços da ciência e da tecnologia (C&T), a humanidade foi surpreendida por eventos hámuito anunciados, mas nunca levados suficientemente a sanãrio por autoridades depaíses desenvolvidos e emergentes. A atual crise gerada pela covid-19 já deixou em seu rastro pelo menos três grandes marcas: a primeira estãocravada no alto custo em vidas e sequelas que feriram populações imensas em um curto espaço de tempo. Somente no Brasil as mortes superaram o patamar dos 70.000 a³bitos e continuam crescendo; a segunda responde pela aguda recessão e consequente diminuição do emprego, de sala¡rios e de renda, fechamento de empresas e desorganização da economia, com aumento das desigualdades e da pobreza; a terceira estãoligada a  corrosão institucional e a  disseminação do medo e da perplexidade na sociedade.

A enorme onda de insegurança que percorre ospaíses afetara¡ de modo duradouro o modo de se viver e trabalhar, com impactos de longa duração na economia mundial, particularmente danosos aospaíses em desenvolvimento como o Brasil. As decisaµes de hoje desenhara£o os contornos das sociedades para as próximas gerações, que tera£o de aprender a conviver com a incerteza. Essa nova realidade tera¡ especial significado para a educação, para a produção de ciência e a tecnologia. E exigira¡mudanças substantivas de nossas escolas e universidades.

Pelas vias da traganãdia, o mundo ficou sabendo que, em abril de 2020, a pandemia tomou conta de mais de 200países e matou 17 pessoas por minuto. Atéjunho, a crise havia empurrado para a pobreza extrema cerca de 60 milhões de pessoas. O impacto no emprego éo maior desde a 2ª Guerra Mundial, com perdas de mais de 10% de horas agregadas de trabalho, o equivalente a mais 300 milhões de trabalhadores em jornada integral.

Ca¡lculos da Rede de Pesquisa Solida¡ria para o Brasil deram uma pequena amostra da dimensão do impacto: (i) Um quarto dos trabalhadores brasileiros (23,8 milhões de pessoas) foram identificados como vulnera¡veis em razãoda pandemia. Ou seja, trabalhadores que já perderam a condição anterior de estabilidade de renda; (ii) Mais de 70 milhões de pessoas (cerca de 80% da força de trabalho) experimentam algum tipo de vulnerabilidade em meio a  pandemia.

As crises, em geral, revelam o pior e o melhor das sociedades. Nas atividades de Ciência e Tecnologia (C&T) não poderia ser diferente.

Um dos maiores desafios para o Brasil seráa superação das disfuncionalidades de um governo que abdicou da tarefa de dirigir o Paa­s para o combate a  pandemia. A comea§ar pelas atividades erra¡ticas e desequilibradas da presidaªncia da República, pela instabilidade que gerou no Ministanãrio da Saúde e pelo incentivo a uma equipe econa´mica que ascendeu vilanizando o setor paºblico e se vaª obrigada a executar políticas de estado que não estãoentre suas competaªncias. A degradação da C&T imposta pelo governo éuma das faces da inadequação pola­tica e institucional que corra³i o Brasil de hoje, um paradoxo flagrante iluminado pela atividade de milhares de pesquisadores que transformaram as universidades em epicentros da busca acelerada de soluções para a covid-19.

A pesquisa cienta­fica brasileira projetou-se como uma das primeiras no mundo a sequenciar o genoma do va­rus e a replica¡-lo em laboratório, o que permitiu a realização de testes em todo o Paa­s. Redes de pesquisadores foram criadas e as universidades, a comea§ar pela USP, se mobilizaram em todos os campos e áreas, nas exatas, biológicas e nas humanidades. Institutos como o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), a Fiocruz, o Instituto Butantan, a Faculdade de Medicina da USP, o Instituto de Ciências Biomédicas se concentraram na busca de novos tratamentos e medicamentos. A Rede de Pesquisa Solida¡ria, que reuniu mais de 70 pesquisadores, nasceu do encontro de instituições como a USP, o Cebrap, o Centro de Estudos da Metra³pole, o Hospital Albert Einstein e o Incor, e foi apoiada por centros como o Instituto Betty e Jacob Lafer, o Instituto Tide Setubal, o Ethos, o Naºcleo Afro, a Fundação Ford, e também por empresas como a InLocco e a Great Place to Work, para citar algumas. Integrou a ampla mobilização nacional que se pautou pela recusa da indiferença e pela defesa da vida.

A velocidade da resposta permitiu entrever o enorme potencial que o Brasil possui para a geração de conhecimento voltado para o desenvolvimento do Paa­s. Mas épreciso foco, financiamento esta¡vel e definição de prioridades, pois sem o apoio paºblico de longo prazo e educação de qualidade o Paa­s colhera¡ apenas solua§os cienta­ficos e tecnola³gicos.

Se écerto que, no curto prazo, o combate a  pandemia exigiu a utilização de toda a capacidade cienta­fica dispona­vel, no mundo e no Brasil, no longo prazo, éimperativo que os esforços alcancem expressão institucional, única forma capaz de garantir longevidade e proteção contra os humores e oscilações da pola­tica e da falta de estratanãgia para C&T.

As crises passam, por mais dolorosas que sejam. Mas as instituições podem permanecer e indicar caminhos sãolidos para uma inflexa£o no metabolismo das universidades e na pesquisa brasileira. Para isso, além do esfora§o para a elaboração de políticas de longa duração, éfundamental que as universidades se abram para o debate e para a reflexa£o sobre suas prática s e estruturas, a comea§ar por seu relacionamento com a sociedade e a comunicação entre faculdades, institutos e departamentos. A estanqueização reinante não ajuda a pesquisa atual que anã, essencialmente, multidisciplinar e multi-institucional.

A busca dessa interação e o sentido social que permeou a pesquisa em meio a  crise deram sentido aos pontos elencados a seguir:

A cooperação irrompeu com força, em especial pela estatura dos desafios colocados pelo coronava­rus, que são podem ser equacionados com a interação e fusão de estratanãgias diferenciadas.

A pandemia quebrou algumas prática s não desejadas, mas que sempre estiveram presentes na atividade cienta­fica. A transparaªncia e a precisão metodola³gica diante das pressaµes da covid-19 tornaram difa­ceis a preservação de Espaços “secretos”, de “laboratório paºblicos apropriados por grupos de profissionais” e de contenção do fluxo de informações, em geral voltados para inibir potenciais competidores.

Assim como o va­rus, a pesquisa foi levada a superar as fronteiras nacionais, em contraste com o discurso nacionalista rasteiro de vários governos, a comea§ar do brasileiro e com visaµes provincianas que represam a inteligaªncia na academia.

A profusão de bancos de artigos veiculados publicamente antes da revisão por pares para publicação em revistas cienta­ficas indexadas éa marca desse período. Esses bancos viveram uma explosão de artigos de pesquisadores do mundo todo que escolheram a abertura a  cra­tica de seus trabalhos como forma de acelerar o fluxo de conhecimento.

Ao interagir fortemente com as demandas da população na busca de instrumentos efetivos de combate a  pandemia, a comunidade cienta­fica deu sinais claros de que épossí­vel abrir um novo capa­tulo na história da C&T.

Nada serátranquilo, uma vez que o mundo e o Brasil estara£o mais pobres, com as finana§as exauridas, provavelmente marcados pela inflação, desemprego e com o agravamento das desigualdades sociais, principal obsta¡culo ao desenvolvimento.

A construção de um novo ambiente para a C&T no Brasil, com financiamento adequado e estabilidade, capaz de formar novas e vibrantes gerações de cientistas, depende da qualidade das respostas que prevalecera£o na sociedade.

Trata-se, hoje, de uma disputa em aberto, que exigira¡ muito desprendimento e competaªncia das universidades, do setor paºblico e privado e das conclusaµes do debate na sociedade.

Como as universidades, centros de pesquisa e a comunidade cienta­fica estara£o posicionadas neste novo ambiente? Sera¡ que as prática s de cooperação intensa e a internacionalização sera£o encarnadas em instituições ou se dissolvera£o com a crise? Atéque ponto as universidades se mantera£o conectadas a  sociedade?

Respostas difa­ceis pedem tempo de maturação, um tempo que o Paa­s não tem. Por isso, quanto antes o debate se iniciar, melhor. O que se sabe éque os caminhos tradicionais de saa­da para a crise estara£o vedados ou repletos de obsta¡culos. Nessas condições, ninguanãm melhor do que os profissionais da ciaªncia, que tem no conhecimento inovador sua matéria-prima, para desbravar novos territa³rios, elevar o patamar de impacto social da atividade de pesquisa e consolidar a sintonia com o esfora§o de milhões de brasileiros que buscam uma vida mais decente. Nãoa  toa, o pa³s-crise tem encontro marcado com todos aqueles que possuem disposição para repensar a educação, o sistema de saúde, o modo de trabalhar e de se viver em nossopaís.

Um novo sistema nacional de C&T deve ser estruturado. A comunidade de pesquisadores de todos os cantos do Paa­s precisa se reunir, debater e propor um novo modo de se fazer ciência no Paa­s. Um Encontro Nacional de Cientistas, de todas as áreas e regiaµes, pode dar voz e unificar esse esfora§o.

O impacto da covid-19 desvelou a extrema vulnerabilidade do planeta, que sofre com asmudanças do clima e com o cortejo de enchentes, secas, migrações, falta de alimentos e de a¡gua, que apenas ocasionalmente incomodam a consciência de planejadores e governantes. A pandemia expa´s ao mundo e aos brasileiros umpaís marcado por umnívelinsustenta¡vel de desigualdade econa´mica e social. Mas mostrou também que háenergia e disposição para um encontro com a humanidade.

A ciência que investiga e joga luz no irreconheca­vel tem condições de ocupar um lugar de destaque no esfora§o da sociedade, seja por seus manãritos, seja pela capacidade de apontar caminhos mais sauda¡veis e civilizados para todos.

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Glauco Arbix
Professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, coordenador do Observatório da Inovação do IEA e integrante da coordenação da Rede de Pesquisa Solida¡ria

 

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