Opinião

Ligando os pontos da pandemia
Teoria de redes também estãosendo aplicada a  atual pandemia. Entre as iniciativas, busco uma ilustrativa.
Por Peter Schulz - 22/07/2020

No meio da pandemia de Covid-19 apareceram as dicas dos antigos jogos de papel e caneta, como o jogo da velha e batalha naval. Nessa coleção temos também os jogos de ligar todos os pontos sem levantar a caneta e passar duas vezes pelo mesmo caminho. Nas dicas de jogos que estãopor aa­, geralmente da¡ para ligar os pontos depois de coa§ar um pouco a cabea§a, mas nem todos tem solução. O jogo de ligar os pontos mais famoso éo das sete pontes de Ka¶nigsberg (atual Kaliningrado). Vejam o mapa da cidade na ilustração com seus distritos interligados pelas sete pontes sobre o Rio Pregel. O jogo consistia em encontrar um jeito de passar por todos os distritos, atravessando todas as pontes apenas uma vez e voltar ao ponto de partida. Impossí­vel, como demonstrado pelo grande matema¡tico alema£o Leonard Euler em 1736[I]. Para entender o problema matematicamente, o mapa da cidade foi transformado em uma rede, ou, como preferem os matema¡ticos, um grafo. Os distritos viram pontos (os nosda rede) e as pontes as ligações (ou arestas da rede). A demonstração de Euler éconsiderada o primeiro teorema do que depois foi chamado de Teoria das Redes[II], que ganhou impulso no século XX e hoje éuma ferramenta de uso interdisciplinar, mas vamos com calma.

A cidade de Ka¶nigsberg e suas pontes transformadas em uma rede ou grafo

Quando penso em redes, primeiro vão a  lembrana§a aquelas fixas a s traves dos gols, ou das quadras de va´lei e taªnis ou das cestas de basquete. Sa£o as redes mais simples, as chamadas redes regulares e a ilustração de um detalhe de uma rede de gol, mostra literalmente os ingredientes essenciais de uma rede: seus nose as ligações entre eles. Embora importantes, as redes regulares são exceções, a maioria das redes pelo mundo afora são de outros tipos.

Os galhos de uma a¡rvore, por exemplo, formam uma rede de distribuição dos fluidos necessa¡rios para sua sobrevivaªncia. E usando os galhos de uma a¡rvore como analogia temos um modelo simplificado para a rede de relacionamentos sociais, como a rede de Bethe[III] na terceira figura, em que uma pessoa imagina¡ria (o “na³â€ central na imagem, ou o “tronco” da a¡rvore) conhece três pessoas (“galhos”) e cada uma delas conhece apenas três pessoas também, uma da “camada” anterior e duas de um pra³ximo ca­rculo, que podemos chamar de grau, e assim sucessivamente. Lembrando, as relações socias são bem mais complicadas, pois cada na³, perda£o, pessoa, tem um número diferente de conhecidos ou amigos e as pessoas de diferentes camadas podem se relacionar com outras da mesma camada e o na³ central pode ter uma conexão direta com alguém la¡ da quinta camada. Mas esse modelo simplificado já traz um monte de informações para entender as grandes redes complexas reais. Por exemplo, essas a¡rvores sempre com o mesmo número de galhos saindo dos maiores representam uma média. Imaginemos no exemplo, que cada ser humano conhea§a em média 45 pessoas (conhece o nome, sabe o que faz, tem o whatsapp, etc), quantos seres humanos estara£o conectados por apenas seis camadas (ou graus)? Um pouco de matemática chega a um número superior a sete bilhaµes, ou seja, o número de habitantes humanos da Terra.

Em Teoria das Redes, o exemplo do para¡grafo acima se chama “rede de mundo pequeno”. Diferente da rede de ruas em uma cidade, na qual temos que atravessar um sem número de esquinas, quando se vai de um canto da cidade ao extremo oposto. Nãochega a ser espantoso se lembrarmos do famoso experimento do psica³logo Stanley Milgram nos anos 1960, que por meio de envio de cartas formulou a ideia dos seis graus de separação (entre quaisquer humanos do planeta), ou seja, devido a existaªncia de conhecidos comuns a duas pessoas que não se conhecem[IV]. Mundo pequeno éuma das caracteri­sticas de redes sociais, que não são nada regulares. No final dos anos 1950, os matema¡ticos Paul Erda¶s e Alfranãd Ranãnyi criaram o primeiro modelo de redes aleata³rias, mas as redes sociais não são nada aleata³rias e sim do tipo “livre de escalas”, ou seja, existe uma ordem na formação das redes: nos(ou pessoas) altamente conectadas tem a tendaªncia de se conectar mais do que aqueles com poucas conexões. Uma rede livres de escala tem uns poucos nos(também chamados de vanãrtices) hiperconectados e um número crescente daqueles com quantidade decrescente de conexões. Um exemplo simples: a rede de transporte aanãreo: uns poucos aeroportos com milhares de voos para dezenas ou centenas de lugares e uma vasta maioria de pequenos aeroportos a s moscas a maior parte do dia.

As redes são caracterizadas por diferentes parametros como o número de nose de suas conexões (pode haver inclusive mais de uma ligação entre dois vanãrtices, por exemplo: o número de disciplinas que conectam um estudante com um professor osnesse semestre eu ministrei duas disciplinas para vários estudantes que estavam matriculados em ambas) e daa­ a conectividade de uma rede. As ligações podem ser direcionais ou não, como as ruas de ma£o única ou de ma£o dupla. Importante também saber qual éo caminho mais curto em uma rede e qual éa distância média entre os diferentes nós. Ou ainda a centralidade (algo como importa¢ncia) de cada vanãrtice e se existem componentes (pedaço s da rede) quase isolados do resto, ou se a rede éaltamente conectada como um todo (componente gigante, no jarga£o tanãcnico). Pelos exemplos dados acima - as ruas de Ka¶nigsberg, os galhos de uma a¡rvore ligados ao tronco, as relações sociais, o tra¡fego aanãreo e relações de ensino-aprendizagem - pode-se inferir que redes são ferramentas importantes para estudar e entender uma grande número de fena´menos e, de fato, isso pode ser visto em um livro de livre acesso de Albert-La¡szla³-Baraba¡si[V], que, alia¡s, foi quem identificou as redes livre de escala e ficou famoso quando escrutinou uma das redes mais presentes no dia-a-dia já  no final do século passado: a internet.

Entre essas aplicações, uma das mais importantes éa rede de transmissão de doena§as. Se for uma rede livre de escala, temos que identificar os super transmissores, identificar os laa§os “mundo pequeno”, que levam uma epidemia de umpaís a outro ou de um estado ao seguinte. Todas as pessoas suscetíveis a  doença não estãoconectadas da mesma forma. Uma vez conhecida a rede potencial de transmissão de uma doena§a, aplicam-se os modelos epidemiola³gicos[VI] de modo mais preciso: podemos estimar a evolução da taxa de conta¡gio de uma população com mais acura¡cia e, então, propor ações de controle e enfrentamento mais precisas, saber com maior certeza o quanto deve durar o distanciamento social, qual o impacto sobre o serviço de saúde e como e quando sair do isolamento. Sobre isso o livro de Baraba¡si traz um capa­tulo especial (capa­tulo 10) para o leitor interessado. Exemplos de epidemias passadas, nos quais podem ser reconhecidos os elementos abordados acima, seguem em duas ilustrações. A primeira éa representação da rede de transmissão de HIV na cidade de Colorado Springs hábastante tempo[VII], na qual os infectados são os pontos vermelhos e as transmissaµes são representadas pelas arestas azuis. Observa-se nessa figura algumas caracteri­sticas do modelo simplificado dado pela rede de Bethe, mas com ligações extras entre os “galhos da a¡rvore”, e percebemos que uns infectaram mais que outros, e vários não infectaram ninguanãm.

Um segundo exemplo, entre muitos outros, éretirado do instigante artigo de Dirk Brokmann e Dirk Helbing em que analisam as propagações da epidemia de SARS em 2003 e da pandemia de Influenza H1N1 em 2009[VIII]. A figura escolhida éuma simulação da propagação da SARS a partir de Hong Kong. A figura éengenhosa. A parte superior éuma rede de lugares com “distâncias efetivas” crescentes a partir do epicentro (Hong Kong) em diferentes tempos. Os nosda rede (lugares atingidos) estãoem vermelho nos períodos de prevalaªncia local da pandemia. Na parte de baixo da figura a localização desses pontos na rede em um mapa-maºndi. Atenção para um detalhe: “distância efetiva” não édistância geogra¡fica, que édiminua­da pelas conexões aanãreas!

Simulação em rede da difusão da epidemia de SARS em 2003 (Brokmann e Helbing, 2013)

Teoria de redes também estãosendo aplicada a  atual pandemia. Entre as iniciativas, busco uma ilustrativa. Um grupo de pesquisadores de diferentes departamentos de Demografia, Antropologia, Sociologia e Ciências Pola­ticas, de Oxford e de Zurique, aplicam modelos de rede para simular as melhores estratanãgias de distanciamento social após o lockdown.[IX] Como se constra³i uma rede assim? Com dados, muitos dados! Para saber como éa rede de transmissão para a Covid-19 são necessa¡rios testes e mais testes, além de rastreamento das pessoas que entraram ou não em contato com os contagiados testados. Isso éfeito em váriospaíses, mas não aqui. Depende de uma rede importante, a governana§a de umpaís, altamente conectada e efetiva, preocupada com todos os seus vanãrtices em muitospaíses. Aqui, no entanto, um vanãrtice central, o do ministro da saúde, estãovago hámais de dois meses, enquanto alcana§amos a triste marca de 80 mil mortes e mais de dois milhões de infectados. Outros vanãrtices importantes são ocupados por membros que deveriam estar em outros grafos. Assim são contamos com duas redes: a da solidariedade e a da colaboração cienta­fica, que resiste, apesar dos ataques, entre outros, da mais infame das redes, a das Fake News.

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Peter Schulz
Foi professor do Instituto de Fa­sica "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente éprofessor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira.

 

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