Convido o leitor a retroceder uns 2.500 anos, porque creio que se surpreendera¡. Espera-nos ali Tucadides. Quem éele? Um ateniense que desde então disputa com Hera³doto o título de fundador da história escrita.

Em graus diversos, segundo as idades e os lugares, estamos preocupados com a aparição e a difusão da covid-19. Diariamente, agitam-nos com cifras, e a maioria dos debates gira em torno de uma questiona¡vel oposição entre a saúde e a economia. Falta, poranãm, outro tipo de reflexa£o. Por isso, e já que o confinamento nos impede viajar no Espaço, proponho que viajemos no tempo. Convido o leitor a retroceder uns 2.500 anos, porque creio que se surpreendera¡. Espera-nos ali Tucadides. Quem éele? Um ateniense que desde então disputa com Hera³doto o título de fundador da história escrita. No ano 431 a.C. rebentou uma grande guerra entre Atenas e Esparta. Tucadides tomou parte ativa nela, mas caiu vatima da praga que aa§oitou Atenas em 430 a.C., liquidando a quarta parte da população. Sem embargo, conseguiu recompor-se e voltou a combater. Sa³ que a frota que comandava foi vencida e o condenaram ao exalio. Isso permitiu que ele viajasse e escrevesse sua monumental Hista³ria da Guerra do Peloponeso, que ficou inconclusa mas o tornou justamente famoso, dando razãoa sua advertaªncia: “Minha obra não éum texto pensado para satisfazer a um paºblico imediato, mas para durar para sempreâ€.
Brinda-nos nela uma das melhores descrições de uma epidemia que se conhece. Ao examinar minuciosamente seus sintomas, Tucadides ratifica sua aspiração. Ele o faz, diz, “para que os médicos possam reconhecaª-la se voltar a ocorrerâ€. Vejamos algumas passagens do seu texto.
A gente osconta-nos osmorria como moscas. O medo do conta¡gio levou a que ninguanãm quisesse ter o outro perto. “Alguns fogem da cidade e rumam para seus campos; outros se fecham em suas casas e não deixam ninguanãm entrar. Todos se evitam. Sua última esperana§a émanter a distância (…), mesmo de seus parentes mais pra³ximos, seus pais, seus esposos ou esposas e seus filhos.†Atémesmo abandonam-se os ritos funera¡rios e os mortos são enterrados ou incinerados de qualquer maneira.
Cito uma observação particularmente aguda: “O resultado final de uma epidemia pode ser o mesmo que o de um terremoto; mas numa epidemia a gente vaª como a morte avana§a diante de seus olhosâ€. a‰ uma batalha na qual “são o inimigo estãoativo†e ninguanãm sabe se vai durar um par de meses, um ano ou mais.
Havia uns poucos que, como ele, se recuperavam e se sentiam muito felizes, “porque ninguanãm éatacado duas vezes pela enfermidade e, se isso ocorre, o segundo ataque nunca éfatalâ€. Daa que “seu entusiasmo ao curar-se era tão grande que imaginavam que não morreriam de nenhuma outra enfermidade no futuroâ€.
Se não bastasse o exposto para comprovar a atualidade do retrato de uma praga trazdo dois milaªnios e meio atrás, uma reflexa£o de Tucadides mereceria ser explorada em profundidade ainda hoje: “Nenhum medo de deus ou das leis humanas pode ter um efeito dissuasivo. Quanto aos deuses, da¡ no mesmo taª-los adorado ou não, uma vez que os bons e os maus morrem indiscriminadamenteâ€. E no que concerne a s leis humanas, “ninguanãm espera viver o suficiente para ser julgado e castigado†e, como émuito prova¡vel que já tenham sido sentenciados, “énatural que existam aqueles que querem dar-se em vida todos os gostos que possamâ€.
Faa§amos o regresso. Mas antes notemos que, por idaªntico motivo, duas preocupações se fizeram estranhas ao grande historiador grego. Uma éa origem da praga. Tratou-se, pensava, de uma cata¡strofe natural e, portanto, a vontade dos deuses a determinou. Isso faz com que tampouco se encontre ao alcance dos humanos prevenir pestes futuras. O mesmo iria crer Lutero 2 mil anos depois, quando sua cidade de Wittenberg se viu sacudida por uma epidemia e escreveu um nota¡vel panfleto intitulado Como Escapar de uma Praga Mortal. Ele afirma ali que se trata de um castigo de Deus e que deve ser aceito porque todos somos pecadores. Ou seja, que não se deve culpar a ninguanãm e não se sabe quando nem onde se repetira¡.
Estamos hoje em melhor situação para responder a essas preocupações? Certamente sim, mas com importantes reservas. Explico-me. Antes de tudo, éa³bvio que nosso mundo éradicalmente distinto do de Tucadides. Em sua anãpoca, a maior parte da gente vivia em pequenas comunidades rurais e ocupava uma porção anfima das terras habita¡veis para a agricultura. E mais: desde então se passaram 2.200 anos atéque, em 1800, a população do planeta chegou a 1 milha£o, mas apenas 220 anos depois já se aproxima dos 8 milhões, e muito mais da metade se concentra nas cidades. Na era moderna os progressos da ciência e da tecnologia foram prodigiosos, ainda que nem sempre para bem. E hoje os grandes laboratórios desafiam os deuses em sua busca por uma vacina contra a covid-19.
Por que minhas reservas? Porque não énada casual que se aproveite o la³gico medo coletivo para canaliza¡-lo exclusivamente para a luta contra o coronavarus, evitando que se tome consciência do contexto que favoreceu sua aparição e que seguira¡ sendo uma ameaça crescente para o planeta, ainda que se consiga controla¡-lo. A vontade dos humanos substituiu agora a vontade dos deuses.
Primeiramente, a covid-19 éuma zoonose, nome das enfermidades vira³ticas que passam dos animais para os seres humanos desde que estes últimos começam a destruir seus ha¡bitats e a arruinar os ecossistemas que os abrigam. a‰ que ingressamos numa era antropocaªntrica que provocou uma brutal devastação da vida silvestre. Desse modo, ao esgotamento dos recursos naturais se soma uma perda constante da biodiversidade.
A que se deve? A uma soma de fatores, liderados pelasmudanças climáticas. Segundo um informe das Nações Unidas (2018), a temperatura terrestre aumentou 1ºC em relação aos naveis pré-industriais. As consequaªncias são os incaªndios que arrasam a Austra¡lia, as inundações que sofre a Indonanãsia ou o rápido desaparecimento do artico. Qual éa causa do aumento? A crescente emissão dos chamados “gases de efeito estufaâ€, que o dia³xido de carbono (CO2) encabea§a. Em meio século, suas emissaµes triplicaram. A maior responsabilidade cabe ao uso de combustaveis fa³sseis, como o carva£o, o petra³leo e o gás, que atualmente proveem quase 2/3 da energia mundial. A isso se acrescenta o desmatamento (que libera o CO2 retido na madeira das a¡rvores), a megamineração a canãu aberto, o paulatino esgotamento de esponjas naturais, como os oceanos, e o descontrolado crescimento urbano, com todas as suas sequelas. Agora se sabe que cada meio grau de aumento da temperatura incrementa a frequência e a intensidade das tormentas, os incaªndios, as inundações e as secas, que destroem os ecossistemas e expulsam os animais, que invadem povoados e cidades.
Tambanãm com relação com as zoonoses, o bia³logo Robert Wallace aponta a criação industrial de animais, isto anã, um sistema agropecua¡rio que da¡ lugar a reprodução de varus e bactanãrias muito resistentes, que os seres humanos retransmitem. Em uma palavra, as gerações futuras se surpreendera£o de que os grandes interesses econa´micos e polaticos do Ocidente e do Oriente estejam conseguindo limitar a covid-19 um debate mais amplo sobre as transformações de fundo capazes de preserva¡-las de novas cata¡strofes. E éde aplaudir que tantos jovens estejam analisando já essas questões. Gostemos ou não, nossa incerteza ésemelhante a de 2.500 anos. “O verdadeiro, o terravel inimigo éo erro no ca¡lculo e na previsãoâ€, escreveu Tucadides.
*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva
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JoséNun
Advogado, escritor, ensaasta e ex-ministro da Cultura da Argentina (2004-2009)