Opinião

O STF e o Direito do Trabalho: as três fases da destruição
A decisão monocra¡tica divulgada no último dia 27 de junho, referente ao a­ndice de correa§a£o de danãbitos trabalhistas , éa etapa mais recente desse
Por Cristiano Paixão e Ricardo Lourenço Filho - 02/08/2020


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O Direito do Trabalho estãosendo reescrito no Brasil. Os autores do texto, contudo, não estãonas fa¡bricas, escrita³rios, lavouras, lojas ou canteiros de obra. Quem comanda a nova ordem éessa entidade abstrata que se convencionou denominar "mercado", cujas visaµes informam uma sanãrie de decisaµes proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos anos de 2016, 2018 e 2020. No que diz respeito aos direitos sociais, e particularmente ao direito do trabalho, o STF tem sido um verdadeiro agente desconstituinte.

A decisão monocra¡tica divulgada no último dia 27 de junho, referente ao a­ndice de correção de danãbitos trabalhistas , éa etapa mais recente desse "ativismo judicial da destruição".

O protagonismo do STF se revela em três conjuntos de decisaµes.

O primeiro deles relaciona-se ao direito de greve de servidores paºblicos. Em dois casos julgados em 2016 (uma decisão monocra¡tica e um aca³rda£o do Plena¡rio), foi inteiramente subvertido o sentido do texto do art. 9º da Constituição da República, que estipula o direito de greve, "competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercaª-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender".

No primeiro precedente (Reclamação nº 24.597/SP), foi determinado que uma greve de trabalhadores do Hospital das Cla­nicas da Faculdade de Medicina de Ribeira£o Preto da Universidade de Sa£o Paulo fosse imediatamente paralisada. No segundo caso (RE 693.456-RJ), decidiu-se, com repercussão geral, que o administrador paºblico tem o dever de proceder ao corte dos sala¡rios dos servidores em greve assim que a paralisação se iniciar.

As decisaµes privam do direito de greve determinadas categorias de servidores paºblicos e, para as demais, impaµem o desconto salarial assim que o movimento paredista for desencadeado. Como escrevemos a  anãpoca , éo mesmo racioca­nio utilizado na teoria do direito penal do inimigo. Para evitar que o "mal" (a greve no setor paºblico, na visão do STF) se concretize, adotam-se medidas que combatam, "na raiz", qualquer movimento de paralisação, inviabilizando, em termos práticos, o exerca­cio do direito.

Essa inversão do sistema de proteção do trabalho, em que a greve anã, de ina­cio, pressuposta como algo a ser evitado, ocorreu num período de plena vigaªncia de uma Constituição democra¡tica, que assegurou o direito de greve. A partir das decisaµes do STF, a repressão tornou-se um imperativo a todo administrador paºblico que se deparar com a deflagração de um movimento paredista.

Passemos a  segunda onda de decisaµes precarizantes do STF em relação ao mundo do trabalho. Elas ocorreram em 2018.

Uma delas compreende a chamada terceirização, que nada mais ésenão a locação de ma£o de obra, por meio da qual o trabalho humano éadmitido como objeto da atuação empresarial. Ao invanãs da relação bilateral empregado-empregador, na terceirização háuma empresa intermedia¡ria que fornece a ma£o de obra e obtanãm lucro por meio dessa atividade. Isso significa maior precarização da situação do trabalhador. A prática , inicialmente vedada pela jurisprudaªncia do Tribunal Superior do Trabalho, acabou por afirmar-se em alguns campos do mercado, especialmente servia§os de limpeza e conservação. O TST, por meio de sua Saºmula nº 331, adotou então uma solução intermedia¡ria, que privilegiou a distinção entre atividade-fim e atividade-meio da empresa como critanãrio definidor para a licitude, ou não, da terceirização.

Esse critanãrio foi derrubado em julgamento realizado pelo Plena¡rio do STF (ADPF 324 e RE 958.252-MG). O Supremo deliberou que a diferenciação entre atividade-meio e atividade-fim não mais poderia ser utilizada como definidora da licitude da intermediação de ma£o de obra. Em termos práticos, o STF decidiu pela liberação completa da prática da terceirização. E apontou que a previsão constitucional da livre iniciativa e da livre concorraªncia garante a locação da força de trabalho e sua negociação como mercadoria, a despeito do sistema de proteção laboral também assegurado na Constituição.

Ainda no ano de 2018, outra decisão viria abalar a organização sindical brasileira. A Lei nº 13.467/2017 decretou o fim da contribuição sindical obrigata³ria, que havia sido recepcionada pela Constituição de 1988 e continuava a ser um dos lastros da organização sindical. Va¡rios problemas se colocaram com o fim abrupto de tal receita, feito de modo apressado e sem dia¡logo social na sua apreciação, entre eles a perda da principal fonte de arrecadação dos sindicatos profissionais, que sofreram um enorme impacto com o novo quadro. Mas o STF validou a mudança legislativa, sem considerar sua própria jurisprudaªncia quanto a  natureza tributa¡ria da contribuição sindical, que, por disposição constitucional, são poderia ser modificada mediante lei complementar.

Um terceiro conjunto de decisaµes viria em 2020, já em decorraªncia da pandemia da Covid-19. E seus efeitos são devastadores, especialmente diante do quadro de crise social e econa´mica desencadeada pelo surto do coronava­rus.

Uma das medidas provisãorias baixadas pelo governo, a de nº 936, estabeleceu a possibilidade de redução de jornada e sala¡rio dos trabalhadores por meio de acordo individual. Ocorre que a Constituição da República éclara ao impor a necessidade da negociação coletiva (com a titularidade do sindicato profissional) nessas situações. Mesmo assim, em julgamento de medida cautelar, o Plena¡rio decidiu pela validade do preceito, diante da situação de emergaªncia trazida pela pandemia. O STF optou pela especulação ad terrorem em detrimento da Constituição: a prevalaªncia do acordo individual seria a medida adequada para minorar os efeitos da crise econa´mica e evitar o risco de demissaµes em massa. a‰ o sacrifa­cio dos trabalhadores em suposto benefa­cio da sociedade como um todo.

Reiterando o entendimento manifestado no julgamento dos casos de terceirização, o STF decidiu julgar constitucional a Lei nº 13.429/2017, que concedeu ampla liberdade aos empregadores na locação de ma£o de obra. Ficou referendada, assim, a utilização irrestrita da terceirização, o que atraira¡ situações de crescente desigualdade e discriminação, com trabalhadores "pra³prios" e "terceirizados" no mesmo ambiente de trabalho, exercendo as mesmas funções, mas com rol substancialmente diverso de direitos e garantias. A decisão foi analisada com profundidade em recente artigo elaborado pelos professores Renata Dutra e Vitor Filgueiras.

Atendendo a um pedido da representação do sistema financeiro nacional, a decisão, em ação declarata³ria de constitucionalidade, impediu a conclusão de julgamento, no Pleno do TST, em que já havia maioria de votos pela aplicação do IPCA como a­ndice de correção moneta¡ria, ao invanãs da TR (que estãozerada desde setembro de 2017).

O STF conta com precedentes em que reconheceu que a TR éinadequada como critanãrio de preservação do valor moneta¡rio e que sua utilização caracteriza desrespeito a  garantia constitucional do direito de propriedade. A decisão monocra¡tica proferida na ADC 58 traz, no entanto, dois riscos.

O primeiro, imediato, éa paralisação dos processos na Justia§a do Trabalho, com prejua­zo significativo para milhares de cidada£os que tiveram seus direitos judicialmente reconhecidos.

O segundo éa possibilidade de que os direitos trabalhistas recebam do STF o tratamento de cranãditos de segunda classe, para os quais o inadimplemento não enseja a reparação que preserve seu valor original. Isso significaria que a proteção constitucional do direito de propriedade não vale para os trabalhadores. a‰ a mesma lógica que vem sendo trilhada desde 2016. Para o STF, a Constituição garante direitos trabalhistas desde que seja do interesse do mercado. a‰ importante frisar que as decisaµes aqui mencionadas não contaram com a unanimidade do tribunal. Ha¡ ministros que tem sistematicamente votado contra tal orientação. Uma maioria coesa, entretanto, tem prevalecido, o que resulta nessa sanãrie de decisaµes precarizantes proferidas pelo STF.

O processo de desconstitucionalização tem como resultado a formação de um direito do trabalho de exceção. Institui-se, no mundo do trabalho, um espaço de não aplicação da Constituição.

Em meio a uma emergaªncia sanita¡ria de enormes proporções, o futuro do Brasil parece incerto. No que diz respeito aos trabalhadores, o futuro também parece preca¡rio e ameaa§ador. Alguns sinais de resistência e mobilização, todavia, surgem no horizonte, e merecem ser acompanhados com atenção. Um deles éa organização de uma categoria de trabalhadores fortemente marcada pela precarização e ausaªncia de direitos: os entregadores, motoqueiros, mensageiros que são responsa¡veis pela circulação de bens e mercadorias nos nossos tecidos urbanos. Comea§a a surgir em Sa£o Paulo um coletivo de entregadores antifascistas. E uma greve geral foi marcada para o dia 1º de julho de 2020 .

Podemos qualificar essa mobilização como uma prática que tem uma dimensão constituinte , de luta por reconhecimento de condições ma­nimas de dignidade. A pauta principal do movimento éo fornecimento de alimentação e instalações sanita¡rias.

Mas, por outro lado, como procuramos enfatizar neste artigo, o STF, no campo do direito do trabalho, vem praticando um ativismo judicial da destruição, que ataca diretamente um dos núcleos da Constituição - os direitos sociais. Com decisaµes dotadas de efeito vinculante e eficácia para todos, o tribunal tem sido um agente da desconstitucionalização . O quadro nos mostra que o futuro do mundo do trabalho no Brasil estãoem disputa. Como evidenciado pela mobilização dos entregadores, os atores do mundo do trabalho tem uma grande tarefa a  sua frente: lutar contra as pressaµes desconstituintes impostas desde 2016 e encontrar soluções novas, inclusivas e emancipata³rias para todos aqueles que vivem de seu pra³prio trabalho.

Cristiano Paixa£o - Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UnB. Procurador Regional do Trabalho em Brasa­lia. Mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UFSC). Doutor em Direito Constitucional (UFMG). Esta¡gios pa³s-doutorais em Hista³ria Moderna na Scuola Normale Superiore di Pisa e em Teoria da Hista³ria na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris). Coordenador dos grupos de pesquisa "Percursos, Narrativas, Fragmentos: Hista³ria do Direito e do Constitucionalismo" e "Direito, Hista³ria e Literatura: tempos e linguagens" (CNPq/UnB). Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministanãrio da Justia§a (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Ana­sio Teixeira de Mema³ria e Verdade da UnB.

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Ricardo Lourena§o Filho
Juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Regia£o; Doutor e Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasa­lia - UnB; Professor do Instituto Brasiliense de Direito Paºblico

 

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