Opinião

O que não se diz sobre o coronava­rus
a‰ surpreendente que quase não se fale das causas que tornaram possí­vel a pandemia e que vão provocando um rápido crescimento das enfermidades infecciosas em geral.
Por José Nun - 11/08/2020


Doma­nio paºblico

Assistimos a um fena´meno nota¡vel. Nunca na história houve tanta informação sobre uma praga como a que hoje dispomos sobre o coronava­rus. Estamos inundados de dados sobre sua evolução dia¡ria e sobre a busca por uma vacina. Poranãm, ésurpreendente que quase não se fale das causas que tornaram possí­vel a pandemia e que vão provocando um rápido crescimento das enfermidades infecciosas em geral. Por isso proponho que, embora leigos na matéria, tratemos de explorar juntos algumas dessas causas. Creio que estãoao nosso alcance fazer isso e, por sua vez, explicar certos motivos desse silaªncio.

Antes de tudo, a covid-19 éuma zoonose, nome que recebem aquelas enfermidades infecciosas que passam de outros animais aos seres humanos. Ainda que cerca de 75% de tais enfermidades tenham essa origem, outras são alheias a ela, como a poliomielite. Atéagora, a maior pandemia de uma zoonose foi a gripe avia¡ria (provocada por aves) de 1918, cujo conta¡gio foi alta­ssimo, especialmente entre as tropas que participaram da Primeira Guerra Mundial, e produziu mais de 50 milhões de mortes (alguns falam em 100 milhões). O segundo lugar corresponde a  Aids, cujo surgimento remonta a 1908, devido ao consumo de carne de chimpanzanãs, e se expandiu velozmente a partir dos anos 80.

Passemos agora a  covid-19, munidos de uma informação relevante. Estima-se que existam 6.600 espanãcies de mama­feros, das quais nada menos que 1.100 são morcegos. Nãoapenas isso, mas os morcegos superam em número a soma dos membros de todas as outras espanãcies juntas. Por que esse dado importa? Porque háconsenso entre a maioria dos especialistas de que os morcegos estãona origem da atual pandemia.

Existe um precedente importante que éa enfermidade de ebola, que ainda precisa de uma vacina. A primeira eclosão documentada do va­rus se deu ao mesmo tempo no Zaire e no Suda£o, em 1976, transmitido pelos chamados “morcegos da fruta”, e sua taxa de mortalidade era e éelevada­ssima. Em 2014 registrou-se a maior eclosão da história, que chegou a  Europa e aos Estados Unidos e levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a decretar uma “emergaªncia pública sanita¡ria internacional” para prevenir uma pandemia no mundo.

Menciono isso porque a questãose liga não apenas ao consumo humano desses mama­feros (na China, por exemplo, proliferam os mercados e restaurantes que oferecem o “sabor selvagem” de todo tipo de espanãcies viventes), mas a um processo que cresceu fortemente no último par de décadas: o desmatamento, sobretudo na áfrica Central e na Amaza´nia. Seus efeitos são maºltiplos e muito graves. No caso dos morcegos, estes se amontoam nas a¡rvores que ficam em péoscom que se mesclam e produzem conta¡gios entre diversas espanãcies osou buscam refaºgio em aldeias e povos, onde entram em contato com seres humanos. Além disso, abrem-se Espaços onde se acumula a águae se multiplicam os mosquitos, com o que ossegundo estudos realizados na regia£o amaza´nica –, a cada aumento de 4% no corte, o paludismo cresce em pelo menos 50%. Por sua vez, libera-se o dia³xido de carbono que a madeira retanãm, contribuindo assim, de modo decisivo, para o tema­vel aquecimento do planeta, que se encontra em pleno curso. Obviamente, tudo isso não acontece de maneira casual, mas, com a cumplicidade dos governos de plantão, épromovido tanto pelas empresas que exploram a madeira como pela indústria agropecua¡ria, em especial a dedicada a  criação de gado, a¡vida por terras.

A emergaªncia de agentes patógenos como a covid-19 se conecta também com o alta­ssimo desenvolvimento da criação industrial, em grande escala, de animais domanãsticos como frangos e porcos, destinados a satisfazer a  demanda crescente de uma população mundial que, tempos atrás, se tornou majoritariamente urbana. O resultado éque eles ficam amontoados e se lhes aplicam pesticidas, antivirais e, mais ainda, antibia³ticos que aceleram a sua engorda (a maioria dos antibia³ticos que se produzem atualmente no mundo se dedica a esse fim). A consequaªncia éque se debilita ao extremo o sistema imunológico desses animais, convertendo-os em criadouros de muitos dos va­rus e bactanãrias que, depois, chegam a nós.

Esses pesticidas, antivirais e antibia³ticos são produzidos por umas poucas grandes corporações multinacionais, com um enorme poder econa´mico e pola­tico. Basta dizer que tanto elas como suas subsidia¡rias e a indústria farmacaªutica gastam fortunas nos mais diversos meios de comunicação e não tem nenhum interesse em favorecer discussaµes em torno do contexto em que pode se originar uma pandemia como a atual.

Caso se fizesse isso, logo se perceberia algo que éduro de aceitar: infecções como essas não são as que nos buscam, e sim que somos nosquem as convidamos a vir ao destruir a vida silvestre, não controlar adequadamente a produção dos alimentos que consumimos e, em termos mais gerais, não deter uma mudança climática de efeitos devastadores sobre a natureza.

Por onde passa a solução? a‰ a³bvio que, no imediato, por encontrar uma vacina contra a covid-19. Mas, se não tomamos consciência do contexto mais amplo em que se deve situar a aparição do coronava­rus, tudo indica que novas pragas de virulência similar continuara£o a se desencadear. E isso não são pela morbidade e mutabilidade do covid-19, mas porque os especialistas calculam que hámais de 300 mil va­rus de mama­feros que ainda nem sequer se conhecem.

Nãose trata de uma predição apocala­ptica, mas de uma proposta de que nos envolvamos num debate a fundo sobre nosso futuro e as transformações estruturais que exige. Se a vocêparece que éuma tarefa que nos supera, faa§o uma pergunta: vocêcraª que émelhor deixa¡-la em ma£os de ditadores, demagogos e dirigentes pola­ticos preocupados apenas com o curto prazo e geralmente sustentados por não poucos daqueles que nos tem traa­do atéaqui?

JoséNun foi amigo do socia³logo e professor da USP Florestan Fernandes (1920-1995), com quem conviveu no ini­cio dos anos 70 na Universidade de Toronto, no Canada¡, onde ambos atuaram como professores. O artigo acima foi publicado no dia 3 de agosto de 2020 no jornal Clara­n, da Argentina. Tradução de Roberto C. G. Castro.

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


JoséNun
Advogado, escritor, ensaa­sta e ex-ministro da Cultura da Argentina (2004-2009)

 

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