Opinião

O sequestro de nossa memória audiovisual
Neste momento desolador, sem os seus trabalhadores e trabalhadoras, de portas fechadas, nossa memória audiovisual se encontra sequestrada e trancafiada.
Por Eduardo Morettin - 15/08/2020


Doma­nio paºblico

A Cinemateca Brasileira, criada por iniciativa de Paulo Ema­lio Salles Gomes em 1946, éa instituição responsável pela preservação, documentação e difusão de nossa memória audiovisual. Ela armazena e restaura o que restou dos filmes brasileiros, bem como a coleção de telenovelas e reportagens da TV Tupi, além de milhares de documentos, como roteiros, cartazes, fotografias de cena, reportagens, correspondaªncias, livros, ca¢meras, etc. No Brasil e no exterior, inaºmeras pesquisas e centenas de filmes realizados com material de arquivo somente chegaram a bom termo em razãoda existaªncia de seu rico e bem organizado acervo, composto de 30 mil ta­tulos em 250 mil rolos de pela­culas armazenados em seus vinte laboratórios climatizados e com controle de umidade. A cinefilia e o interesse pela cultura cinematogra¡fica são fomentados a partir de mostras, cursos e sessaµes organizados com apurado critanãrio nas duas salas de projeção providas com o que háde melhor e mais avana§ado para o setor. O corpo de técnicos capacitados viabiliza a realização das diferentes frentes de trabalho, permitindo que a Cinemateca seja uma instituição viva, aberta a  riqueza, diversidade e pluralidade que caracterizam a produção cinematogra¡fica e cultural de nossopaís.

Diante do quadro atual, a insistaªncia em empregar o tempo presente para descrever sumariamente o que a Cinemateca Brasileira (CB) representa para a sociedade indica a convicção de que, apesar da gravidade da situação, a instituição sobrevivera¡. Nãosera¡ por moto conta­nuo ou por vontade dos mandata¡rios de plantão, mas pela reação da sociedade civil e da Justia§a ao festival de desacertos que a atingiu em cheio. A crise sofrida pela Cinemateca Brasileira neste ano éexemplar, infelizmente, do modus operandi do atual governo em relação a  cultura, pautado pela destruição, esgotamento e asfixia de todas as instituições que se encontram sob a sua ala§ada.

A entrega das chaves pela Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), que administrava a Cinemateca Brasileira desde 2018, ao representante da Secretaria do Audiovisual na última sexta-feira, dia 7 de agosto, ilustra a disposição geral para com o setor. Fato grave foi a presena§a, amplamente noticiada pelos diferentes meios de comunicação, de viaturas da Pola­cia Federal e de seus agentes armados com metralhadoras a fim de “garantir” que a “reintegração de posse” fosse conclua­da. Pela primeira vez em sua história, a ameaça de uso da violência pairou no espaço que épatrima´nio de nossa memória audiovisual.

Neste imbra³glio, ébom que se diga que a Acerp não teve seu contrato de gestãointerrompido por suposto va­nculo ao “marxismo cultural”. O aºnico acerto de sua gestãofoi o de manter, mesmo que em número reduzido, as trabalhadoras e os trabalhadores que mantiveram, com esfora§o e dedicação, as diversas e complexas atividades e tarefas. Dentre os desacertos, a substituição do logo criado em 1954 por Alexandre Wallner, ato simba³lico de ruptura com o passado que foi acompanhado por outro mais concreto e nocivo: a não convocação do Conselho Consultivo, órgão responsável pela observa¢ncia dos princa­pios que devem reger a CB e, como indicado em sua denominação, insta¢ncia a ser consultada no momento da escolha de um novo diretor. Em setembro de 2018, Carlos Augusto Calil, incansa¡vel defensor da Cinemateca e do cinema brasileiro, e Lygia Fagundes Telles, por meio de notificação extrajudicial ao então ministro da Cultura, já denunciavam o desrespeito a s salvaguardas que garantem a autonomia técnica, administrativa e financeira da instituição. Estas salvaguardas, estabelecidas por instrumento jura­dico quando da incorporação em 1984 da Fundação Cinemateca Brasileira pelo Estado, por meio da Fundação Nacional Pra³-Mema³ria, foram criadas justamente para impedir o desvirtuamento de suas funções preca­puas, zelando pelo seu bom funcionamento e interditando, por exemplo, a saa­da do acervo da cidade de Sa£o Paulo.

Lembro de um comenta¡rio de Tiago Batista, diretor do centro de conservação da Cinemateca Portuguesa, a propa³sito de va­deo postado em agosto de 2019 nas redes sociais: Coisas muito assustadoras que se estãoa passar na Cinemateca Brasileira... O curta de cinco minutos era aberto com o gesto de continaªncia de um deputado estadual, responsável pelo post, o então superintendente da Acerp e dois assessores, sendo um deles um coronel do Exanãrcito, cuja fala foi dedicada a  apresentação de projeto de mostra de filmes militares, proposta que não se efetivou, pois, como sabemos, o forte deste governo não érealizar e construir. A Acerp, portanto, já havia sido aparelhada com militares e pola­ticos de orientação conservadora que circulavam pela instituição, aparelhamento que vemos em muitas instituições culturais em a¢mbito federal, administradas por pessoas absolutamente despreparadas para o exerca­cio da função pública.

O alinhamento “ideola³gico” não impediu, poranãm, que o contrato de gestãomantido pela Acerp desde 2015 com o Ministanãrio da Educação fosse renovado pelo governo federal ao final de 2019. A TV Escola, também gerida pela organização social, foi a primeira a ter a sua continuidade interrompida pelo senhor que ocupava o Ministanãrio a  anãpoca. O entendimento do governo foi de que o contrato da Acerp para a administração da Cinemateca, efetivado por meio de um aditivo ao contrato principal assinado então com o MEC e o Ministanãrio da Cidadania (a confusão administrativa causada pela extinção do Ministanãrio da Cultura e a passagem de sua estrutura por dois ministanãrios, o da Cidadania e o do Turismo, em que se encontra a Secretaria Especial da Cultura e a Secretaria do Audiovisual, também contribuiu para tornar todo e qualquer processo administrativo mais moroso e ineficaz), perdia a sua validade também e, com isso, os repasses de recursos deveriam ser interrompidos, o que ocorreu já no ini­cio de 2020.

Os motivos da ciza¢nia nas hostes governistas são obscuros, como tudo o que povoa as mentes dos que hoje ocupam o Pala¡cio da Alvorada e a sede dos edifa­cios ministeriais, mas as disputas entre os grupos que estãono poder fizeram as suas vitimas: a Cinemateca Brasileira, suas trabalhadoras e seus trabalhadores.
Os compromissos financeiros junto aos fornecedores e funciona¡rios pararam de ser cumpridos háquatro meses. Em meio a  pandemia, mais de sessenta funciona¡rios e suas fama­lias passaram a sobreviver do auxa­lio obtido junto aos inúmeros movimentos de suporte e apoio que surgiram neste período. De imediato, a sociedade se mobilizou e manifestações foram organizadas em defesa da Cinemateca pela Associação Paulista de Cineastas (Apaci), que na pessoa de Roberto Gervitz encontra a caixa de ressonância de todas as demandas e questionamentos do setor, e pelos movimentos #SOSCinemateca, #SOSTrabalhadoresDaCinemateca, #CinematecaAcesa e Cinemateca Viva, que reaºne as associações de moradores da Vila Mariana. Cineastas e atores de diferentes gerações, como Caca¡ Diegues, Mariana Ximenez, Arnaldo Jabor, Walter Salles, Tata Amaral, Kleber Mendona§a e Jefferson De, dentre muitos outros, denunciam a situação de descaso com o acervo que eles, parte dos cerca de dois mil depositantes que deixaram seus rolos de filme ou HDs sob a guarda da Cinemateca, construa­ram.

No final de julho, a deputada Jandira Feghali conduziu sessão da Ca¢mara Federal intitulada “A crise da Cinemateca Brasileira ossoluções urgentes”, momento de construção de aliana§as e de formulação de propostas efetivas e concretas para que seja encontrada alguma solução de curto ou manãdio prazo. Nãohádia em que a Cinemateca Brasileira não seja motivo de nota­cia, de um post ou de um podcast. Mesmo que o assunto seja a crise, não deixa de ser alentador que as questões da preservação sejam disseminadas por Danãbora Butruce, vice-presidente da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual e doutoranda na USP, em lives do Canal Brasil, e de Teresa Cristina dedicadas ao cinema brasileiro.

Tivemos o manifesto “A Cinemateca Brasileira pede socorro”, que hoje conta com mais de 19 mil assinaturas, entre intelectuais, artistas, cineastas, associações nacionais e internacionais. Na cidade de Sa£o Paulo, em movimento liderado pelo vereador Gilberto Natalini, R$ 680 mil reais em emendas parlamentares de vereadores de diferentes partidos pola­ticos, em frente suprapartida¡ria, foram obtidos a fim de que a Cinemateca fosse salva, esfora§o conjunto que atesta a importa¢ncia da instituição para o munica­pio e a preocupação com os seus destinos.

O Ministanãrio Paºblico Federal também se posicionou contra esta situação e moveu bem fundamentada ação civil contra a Secretaria Especial da Cultura por omissão, tendo em vista que a situação da Cinemateca era e éde abandono. Solicitava também a assinatura de contrato emergencial com a Acerp e a instituição do Conselho Consultivo. Infelizmente, a ação foi indeferida pela jua­za federal que arbitrou o processo e questionada pela Advocacia Geral da Unia£o, em agravo de final de julho, entendendo que as demandas eram desprovidas de sentido. O amplo movimento de ideias ainda não contribuiu para que as duas insta¢ncias compreendessem de fato a real dimensão do problema. Entendem que a assinatura dos contratos emergenciais de limpeza, fornecimento de águae energia elanãtrica, vigila¢ncia etc., servia§os certamente fundamentais, sem os quais nenhuma instituição pode abrir as suas portas, sinalizam que a preservação do acervo estãogarantida. Confundem, na verdade, manutenção predial com a dos filmes e documentos. Desconhece-se tanto o que estãoimplicado nas tarefas do dia a dia dos arquivos fa­lmicos quanto da necessidade de técnicos especializados, com conhecimento e experiência, para lidar com as especificidades dos materiais espalhados pelos seus laboratórios climatizados. Dou um aºnico exemplo, ilustrativo dos desastres que estãoem nosso horizonte. Em 2016, três anos depois da intervenção do Ministanãrio da Cultura na Cinemateca, ponto de origem da atual crise, ocorreu no arquivo de nitrato, material de alta combustão, incaªndio que destruiu para sempre 1.003 rolos de filme. O depa³sito em que estas pela­culas estãoarmazenadas segue todas as orientações para a guarda de componentes deste tipo. Apesar de todas as precauções com a disposição física deste acervo, épreciso que um tanãcnico, periodicamente e por amostragem, mea§a a temperatura de alguns rolos a fim de se antecipar eventual processo de combustão em curso. Sem este tanãcnico, o acervo fica ao lanãu e sob os desa­gnios da natureza.

Com as chaves da instituição, a Secretaria Especial da Cultura e o Ministanãrio do Turismo esperam publicar nos pra³ximos dias o edital de chamamento a fim de que nova associação administre a Cinemateca. A perspectiva, a acreditar em tudo que estãosendo prometido, éde que em três ou quatro meses tudo esteja resolvido! Ora, se este éo “timing“, e se havia o entendimento no final de 2019 que o contrato com a Acerp seria encerrado, por que o processo de transição não foi iniciado antes? De pronto, somente posso crer que prepondera o descaso, a inefica¡cia e o despreparo para com a cultura brasileira e suas instituições. A instituição não pode esperar tanto tempo.

No momento em que escrevo este artigo, a Acerp demitiu os funciona¡rios que mantinham de forma volunta¡ria a instituição funcionando. Neste momento desolador, sem os seus trabalhadores e trabalhadoras, de portas fechadas, nossa memória audiovisual se encontra sequestrada e trancafiada. Ela precisa ser devolvida a  sociedade, e o Estado deve assumir de forma plena, respeitando as salvaguardas estabelecidas em 1984, o trabalho de preservação, documentação e difusão de nossa cultura cinematogra¡fica.

Leandro Parda­, ex-coordenador de Difusão da Cinemateca, escreveu um texto belo e comovente sobre o seu trabalho a  frente do setor e a sua percepção a respeito de tudo o que acabei de sintetizar acima. Ao final, Parda­ encerra seu relato recuperando a figura solar de Paulo Ema­lio. Eu aqui termino esta história, que tera¡ novos desdobramentos, com uma citação entremeada dos dois: permanecer, na luta, éo que importa!

Viva a Cinemateca!

(Eu não escreveria este texto sem o apoio de Almir Almas, Carlos Augusto Calil e Maria Dora Moura£o. Sem os documentos fornecidos por Calil e Dora estas reflexões não seriam possa­veis.)

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Eduardo Morettin
Professor de Hista³ria do Audiovisual da Escola de Comunicações e Artes da USP

 

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