Opinião

Cotas merita³rias
Para entrar no curso superior brasileiro não basta ter as condia§aµes intelectuais suficientes para cursa¡-lo (manãrito como compreendo), mas ter uma quantidade máxima possí­vel de pontos, relativo aos concorrentes, em determinado curso.
Por José Machado Moita Neto - 19/08/2020


Foto: Reprodução de Cartaz / USP

O ensino superior paºblico brasileiro sempre trabalhou por cotas, pois não tem a quantidade de vagas suficientes para admitir, por manãrito, todas as pessoas que desejam ascender a estenívelde instrução. O conceito de manãrito atualmente aplicado não estãoligado ao maior ou menor conjunto de conhecimento, habilidades ou atitudes que são necessa¡rias para cursar com aªxito algum curso superior, mas sim a uma performance sobre um conjunto de conhecimento que integram o ensino manãdio. Portanto, para entrar no curso superior brasileiro não basta ter as condições intelectuais suficientes para cursa¡-lo (manãrito como compreendo), mas ter uma quantidade máxima possí­vel de pontos, relativo aos concorrentes, em determinado curso.

Os diversos tipos de vestibulares existentes no Brasil, atualmente o ENEM éo maior e mais conhecido, são sem sombra de daºvidas também um instrumento de medida indireta de manãrito, pois ao medir conhecimentos anteriores do aluno, apontam para uma maior probabilidade de aªxito futuro no curso superior. A necessidade de maximizar pontos sobre os concorrentes fazem do vestibular um instrumento que mede muito mais do que conhecimentos anteriores e desgastam o pra³prio instrumento de medida, tal como usado hoje. Sou cartesiano aponto de afirmar que o instrumento de medida tem condição de avaliar quem atendeu ou não os conteaºdos propostos ao ensino manãdio mas não acredito que possa ordenar estes alunos em sua competaªncia. 

A pontuação do vestibular tem uma granularidade que mede a estabilidade emocional do aluno no momento da prova, mede algum problema de saúde que o tirou da escola no ensino manãdio por alguns dias, mede os episãodios de depressão e ansiedade que se passou durante os anos preparata³rios, mede as paixaµes juvenis dos primeiros amores, mede a harmonia do lar, mede a paixa£o do jovem por esportes ou música, mede tudo do contexto em que vive aluno, inclusive sua condição socioecona´mica. A quantidade de pontos obtido no vestibular mede muita coisa além do conhecimento e, portanto, se tomado como indicador classificata³rio, torna-se um perigoso sistema de seleção sociocultural e não intelectual dos alunos. A pontuação do vestibular éum indicador de manãrito apenas para apontar quem tem ou não condição de fazer um curso superior, mas não para classificar milimetricamente os candidatos. a‰ pelos mila­metros que a injustia§a social entra também dentro da universidade pública.

Ha¡ maneira de resolver esta injustia§a perpetrada pelo vestibular? Sim. Basta que seja tomado como um indicador qualitativo de manãrito. As instituições tem condições de informar qual a pontuação ma­nima necessa¡ria para fazer com aªxito um curso superior. Isto significa que todos estariam aprovados se atingissem o valor ma­nimo de pontos e não seriam classificados por seus pontos excedentes. Nos pontos excedentes estãomontada uma ma¡quina de exclusão que não pode ser utilizada para acesso a universidade pública. Os critanãrios para estabelecer a pontuação ma­nima podem ser globais ou por cursos. As maneiras de estabelecer são as mais variadas possa­veis. Apenas para desviar a atenção, faa§o uma sugestãoinusitada dentre as possa­veis: cursos com duração de 3 anos, 500 pontos; duração de 4 anos, 600 pontos; duração de 5 anos, 700 pontos; duração de 6 anos, 800 pontos.

a‰ claro que isto não vai resolver outro problema. Adequar a quantidade de aprovados ao número de vagas que a instituição oferece. Nãoexistindo mais a classificação dos aprovados (proposta aqui defendida), a própria instituição teria que ter suas políticas próprias de seleção. Nãoseria mais baseado no manãrito acadaªmico. O manãrito se esgotou no vestibular na qual quem atendeu o valor ma­nimo de pontos foi considerado com a capacidade intelectual para fazer o curso de graduação (aprovado). Ha¡ diferentes maneiras de pensar a questãoda seleção de aprovados. Uma faculdade privada para fazer uma analise da capacidade financeira do potencial aluno ou de sua familia de bancar o estudo e, baseado nisto, tomar a decisão entre aqueles que tendo manãrito, também tem condição de pagar seu curso. Uma universidade pública não deve usar este critanãrio. 

O critanãrio mais simples seria o sorteio das vagas para cada curso pretendido. Deste modo, após o vestibular e seleção por sorteio da universidade, tera­amos três tipos de alunos: Os reprovados, os simplesmente aprovados e os aprovados e sortudos. Os reprovados depaµem contra o sistema educacional que o enganou. Disse que ele estava apto a entrar na Universidade e ele não atingiu o escore ma­nimo. Os simplesmente aprovados não tera£o a ilusão de fazer cursinhos, são apenas azarados, tem manãrito, mas faltaram-lhes vagas no ensino superior paºblico. Eles compreendera£o que precisam fazer uma luta pola­tica para que aumentem as vagas nas universidades públicas. No ano seguinte, se submetera£o a novo sorteio. Eles não levara£o a carga de incompetentes, apenas de azarados e a sorte pode mudar. Os aprovados e sorteados que fazm um bom curso, antes que a sorte mude.

O critanãrio de sorteio pode parecer estranho, pois a ilusão de manãrito foi uma construção bem feita e que todos que tem dinheiro sabem como manejá-las. Aqueles pontos excedentes que servem atualmente de classificação podem ser construa­dos ao longo dos três anos. Aquela dificuldade no portuguaªs pode ser superada em curso extra, o mesmo vale para o inglês e para cada disciplina que exija reforço, ele seráprovidenciado. Os problemas familiares são cuidadosamente evitados para não perturbar o estudante do ensino manãdio, as dificuldades do cotidiano são todas lhe removida. A redoma que pode ser construa­da com o dinheiro éfeita. Pais abastados sabem a importa¢ncia do curso superior em universidade pública (boa e gratuita). a‰ investimento. Se aquele investimento no filho não lograr aªxito no vestibular, os pais mantanãm a estratanãgia, tudo aquilo que o dinheiro pode fazer: Cursinho para tentar aprovação no ano seguinte ou fazer uma faculdade privada. Este éo atual “manãrito” que defendemos quando se defende o vestibular como instrumento de classificação e não apenas de aprovação.

O critanãrio de sorteio teria uma vantagem parcial em relação a população brasileira. A composição da universidade pública Seria mais representativa do extrato da população que chega ao ensino manãdio e o conclui. Estes hera³is, que não sucumbiram pelo caminho, teriam seus manãritos reconhecidos no vestibular e, com sorte, entrariam na Universidade Paºblica. Somente isto, quando expurgado as classificações do sistema vestibular que são excludentes, já traria uma grande diferença na composição dos cursos superiores brasileiros das universidades publicas. Um critanãrio justo de entrada nas poucas vagas das universidades públicas (manãrito e sorte) deveria ainda ser apoiado por políticas estudantis de evasão zero. As cotas reais neste sistema seriam aplica¡veis somente durante o curso para não permitir que pressão das dificuldades socioecona´micas transformasse a sorte dos estudantes pobres.  

A exclusão educacional brasileira acontece desde o primeiro ano escolar e vai atéo último ano de graduação. Aqui foi feito um recorte e mostrado como tal exclusão acontece no acesso atravanãs do vestibular a s universidades públicas. Foi dada uma sugestão. Milhares de outras sugestaµes e prática s já existem em curso. Para cadaníveleducacional énecessa¡rio pensar em soluções adequadas para superar barreiras reais e artificiais que são colocadas a população brasileira. As desigualdades, objetivamente verifica¡veis pelas medidas estata­sticas, em cada recanto de poder devem ser enfrentadas com perseverana§a e criatividade. a‰ necessa¡ria uma luta firme e permanente para mostra¡-las (desvela¡-las) e depois negociação pola­tica para supera¡-las.

 Estamos dentro do sistema capitalista e podemos achar normal que os passageiros de companhias aanãreas sejam segregados pela sua disponibilidade financeira. Nas poltronas mais espaa§adas ficam os que pagaram mais para o conforto. Os que mais gastam com passagens aanãreas ou são reconhecidos como tendo mais dinheiro por qualquer serviço de pontos e milhagens são embarcados primeiros ou tem espaço VIP de espera em aeroporto. O mesmo tipo de descarado privilanãgio, pra³prio do sistema capitalista, estãopor toda a parte. Eles são justos dentro da a³tica da empresa capitalista. Nãocontesto, pois nossa constituição não inventou algo melhor para o conva­vio entre os cidada£os de classes econa´micas diferentes.

Contudo, achar que o mesmo tipo de privilegio pode ser admitido para qualquer atividade pública éum desrespeito aos valores constitucionais. Isto significa que toda atividade pública, todo serviço paºblico, deveria ser revisitado para identificar ali quaisquer resqua­cios desta cultura de privilanãgios. Sejam as prática s, ou seja, os mecanismos intra­nsecos devem ser corrigidos. Em alguns casos não basta corrigir, épreciso reconhecer que a sociedade não atingira¡ patamares de justia§a social e de acesso aos bens paºblicos sem ações afirmativas. Todas as ações afirmativas são ações politicamente informadas e devem ser tempora¡rias. Servem para acelerar processos e reduzir desigualdades. a‰ um contraponto a privilanãgios instalados nos mecanismos ocultos de privilanãgios. a‰ um desvelamento necessa¡rio de uma situação que se pretende corrigir.

As universidades públicas hoje tem suas políticas de cotas que procuram reduzir desigualdades hista³ricas. A elite privilegiada pelo sistema anterior logo percebeu que, mesmo não mexendo nos atuais mecanismos excludentes de acesso a educação, haveria uma redução na quantidade de vagas públicas a ela historicamente destinada. Alguns ainda teimam no discurso de sua inconstitucionalidade, outras encaram o novo jogo com a naturalidade de quem se move bem no sistema capitalista, pois ainda restam alternativas dos cursinhos e das faculdades privadas. A pola­tica de cotas mudou a composição dos estudantes universita¡rios, mas o acesso fora das cotas ainda tem o mesmo cara¡ter excludente comentado neste texto.. 

Nos cursos tradicionais da elite como Medicina e Direito, a composição corresponde quase que exatamente ao estabelecido nas cotas, demonstrando que o sistema excludente que precede ao acesso a universidade continua atuante. Portanto, não se podem cessar as ações afirmativas ainda, pois voltara­amos a instalar em um sistema paºblico o sistema de exclusão que éadmissa­vel apenas no sistema privado. O que foi dito sobre os atuais sistemas de cotas seria perfeitamente concilia¡vel com a ideia de aprovação por manãrito e sorteio respeitando as cotas. Inclusive teria a vantagem atropelar o discurso de quem acredita que hoje estãoentrando cotistas sem manãrito acadaªmico.

As ações afirmativas precisam continuar, mas énecessa¡rio melhor fundamentar hista³rica e politicamente o seu conteaºdo e pensar formas mais eficazes de sua ação. Além disso, énecessa¡rio pensar com rapidez outros mecanismos de exclusão presentes ao longo de todo sistema educacional. Se hoje elimina¡ssemos os problemas de acesso no primeiro ano escolar e assim sucessivamente podera­amos abandonar as cotas universita¡rias em 12 anos. 

O universita¡rio de uma universidade pública, cotista ou não, tem um papel social e comunita¡rio que deve exercer em sua vida e dele conscientizar-se durante a graduação. Talvez seja a hora de rever as atividades complementares de todos os cursos nesta direção. De chamar egressos a contribuir com a instituição pública. A ma­dia revela a cada dia atitudes grotesca de desrespeito ao cidada£o comum por quem fez um curso universita¡rio e hoje ocupa alguma posição de poder. Talvez mais chocados ainda ficasse ao verificar que a formação superior destes poderosos aconteceu na Universidade Paºblica.

Para quem gosta de polemizar, aviso que abro ma£o de todas as minhas sugestaµes sem abrir ma£o de qualquer das ideias que as fundamentaram. A universidade pública vive uma diversidade de crises, a mais falada éa da falta de recursos financeiros. Contudo, a maior crise da universidade éser mero reflexo da sociedade excludente que vivemos. Isto podemos mudar sem dinheiro.

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


JoséMachado Moita Neto
Ex-professor titular da Universidade Federal do Piauí­ e Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Na­vel 2

 

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